Wednesday, February 22, 2006

COMO "VINICIUS DE MORAES" SALVOU MINHA VIDA...

Aquele, sem dúvida, fora uma “dia bão”. O maior show de todos os tempos. A praia, a areia, o mar, o céu , a carioca...Toda essa mitologia, todos esses arquétipos juntos, e ainda Ron Wood, Charlie Watts, Keith Richards e Mick Jagger. Tudo isso proporcionou um clima único de celebração da vida. A vodka, odiosa vodka e a bem amada cerveja tiveram também a sua parte na história. Estive bêbado e não me lembro de muita coisa, principalmente do meio pra frente. Na verdade não lembro de nada, do meio do show pra frente. Quando me perguntam sobre a música tal, ou daquela hora que aconteceu aquilo, eu digo sempre que não sou vídeo-cassete e se quiserem saber do show que comprem o DVD, pois é o que farei. Mas lembro com sobra de detalhes do cheiro do dia. O sorriso das pessoas e essas coisas que só acontecem nessa cidade insana e mágica que é o Rio de Janeiro. Uma cidade que desloca um milhão e duzentas mil pessoas para a praia, e fica até parecendo que isso não é nada demais. Lembro apenas dessas coisas que não virão no DVD. Uma comunhão mesmo. Dizia a um amigo que aquilo ali parecia Meca ou algo similar. E foi isso: uma grande missa. Com seus um milhão e duzentos mil devotos. Sentia-me totalmente integrado à paisagem, com suas putas, seus miseráveis, seus turistas escandinavos, suas morenas e louras de carne firme, suas bichas internacionais, sua pobreza escancarada, sua exuberância geográfica.
Completamente entorpecido pelo abuso de álcool acabei não recordando e não gravando nenhuma imagem no arquivo de minha memória. Deveria ter fotografado qualquer coisa que fosse com minha retina, mas não o fiz. Estava lá menos pelo show, até porque estava a uma distância de alguns campos de futebol do palco, e via Mick Jagger como as pessoas dizem ver Deus. Na base da fé.
Tento compreender se aquilo que me acontece quando avanço a linha da sobriedade, isso que não é registrado na minha memória, se isso entra na minha vida como aquilo que sou, ou então se isso tudo não conta na minha vida, e aí posso dizer que eram as danadas das moléculas de álcool que roubavam meu juízo. Lembro com clareza do início do show, e depois não lembro de absolutamente nada. Sei que em determinado momento tentava voltar pra casa e andava. Andava procurando o caminho de casa, o caminho que é o meu da forma menos alegórica e metafórica possível. Realmente andava. Os pés doíam, e todos os caminhos eram iguais e se repetiam incessantemente. O mesmo banco, a mesma esquina dobrada. Algo me escapava e eu não conseguia achar o caminho.
Andava já há muito tempo, subia morros e descia, andava em círculos, e nada nada familiar, nada indicava uma direção. Perdido em terra estranha, terra essa que se assustou Paulo Mendes Campos na década de 60, me assustou ainda mais. Muita volúpia para toda essa minha mineirice. Caminhava em círculos e fadado a andar, seguia meu destino. E de repente eu o vi. “Vinicius de Moraes”, a placa, a rua. A rua que sabia ser perto do lugar onde estava hospedado. Pela “Vinicius de Moraes” fui pra casa. Antes disso, em algum ponto da história, perdi as minhas sandálias. Ou fui roubado. E a história se repetia.

Friday, February 17, 2006

INVEJA SINCERIOSA

Tenho uma inveja silenciosa dessas pessoas que vem do interior para estudar, ou mesmo viver, na cidade grande. Carregam nos olhos uma vontade grande de conhecer o mundo, que segundo eles, existe. Carregam também esse charme de quem vem de um outro planeta, de quem tem um lugar com nome no coração. Chegam aqui, na cidade, para explorá-la tal qual Marco Pólo ou algum outros desses famosos exploradores sobre os quais nunca li. Rompido o laço, que nos prende junto à saia da mãe, rompe-se qualquer fronteira. E eles avançam, impiedosos, e comendo pela beiradas.
Tenho inveja desse interesse que eles demonstram para com nossos vícios e hábitos e que acabarão também adquirindo, mas mantendo essa distância de quem nunca vai se acostumar com a naturalidade de uma buzina. Possuem uma espécie de ingenuidade e ambição, se lançam ao espaço, fora de suas cidades pequenas, e chegando aqui descobrem, sempre, que o lá já não é tão longe. E eu fico aqui, parado, com essa inveja sincera.

Saturday, February 11, 2006

O morro não é dos Malandros

Rubem Braga (1936)
Em qualquer morro do Rio já se ouve, hoje, um ronco, um barulho de tambor surdo, uma voz cantando uma coisa esquisita. Há qualquer coisa lá por cima e não é sem tempo. Eles estão se preparando, estão começando a se preparar. Os exércitos do samba fazem os primeiros exercícios antes de marchar sobre a cidade. Lá vem samba.
É preciso gostar do samba e para gostar do samba é preciso conhecer o samba. Porque a verdade é que muita gente não gosta das mesmas condições. Está visto que há samba e há samba. Do partido alto e do partido baixo. E de muitas variedades. É provar. Não é decente falar em samba sem falar em Noel Rosa. Ele faz sambinha repinicado, desses que se podem cantar com o auxílio de uma caixa de fósforos. Mas faz também o outro samba, o samba alto, o samba para a multidão mestiça chorar, o grande samba.
Para gostar desse grande samba não é preciso achar que ópera é música para boi dormir, como definiu um meu amigo. Um sujeito que gosta de ópera e não gosta de um samba de Cartola, da Estação Primeira do Morro de Mangueira, é um sujeito que não gosta propriamente de ópera, gosta apenas do Teatro Municipal. Não convém esperar que um samba de Cartola chegue a ser conhecido por uma cantora qualquer que o vá ganir pelo microfone de qualquer PR. O melhor é tomar um ônibus Méier, descer ali na rua São Francisco Xavier, atravessar o viaduto e subir o morro. Aí, sim. Um samba é um samba, é qualquer coisa de muito.
Não é só na Mangueira. Em qualquer morro e mesmo em qualquer canto pobre da cidade. Houve um tempo em que só se falava em Favela. Hoje o samba se espalhou. Há um por aí que canta as glórias do morro de São Carlos: "No morro de São Carlos / Tive um trono / As negras me velavam o sono / Numa corte imperial."
E o cantor compara a mulata que fugiu a Maria Antonieta, "fazendo muita falseta," e ele mesmo a um rei Capeto abandonado que acaba infeliz, guilhotinado pela saudade da referida senhora.
Mas se eu citei Cartola é porque nele se encontra um sentimento tão profundo e primitivo que a letra de repente nem quer dizer nada e acaba dizendo coisa como diabo. Ele é talvez melhor que o famoso Paulo da Portela e o samba parece mais puro. Reparem só nessa letra: "Semente de amor eu sei que sou / Desde a nascença / Mas sem ter vida e fulgor / É minha sentença."
Isso na voz de negro, entre o coro das mulatas, é qualquer coisa de fundo, de triste, de uma desgraça preta mesma, preta como o soluço de uma cuíca.
Mas parece que estou estragando o samba, transcrevendo assim um pedacinho sem música, sem a voz, sem os surdos, as cuícas, os tamborins, as mulatas, o morro...
Só indo lá mesmo. E é preciso acabar de uma vez essa história de que morro é terra de malandro. Eu, que já fui várias vezes a vários morros e já morei vários meses em Copacabana, sou capaz de jurar que nos apartamentos da areia há mais malandros que nas casinhas de lata velha lá de cima. A grande maioria da população do morro é de trabalhadores, sujeitos que pegam no duro todo dia, que vivem suando. A malandragem existe mais no samba que na realidade.
O batente é o mais comum. Malandros não teriam, por exemplo, capacidade para organizar uma escola de samba. Para isso é preciso ter o espírito, a disciplina, a força de vontade de um trabalhador. E os morros estão cheios de escolas onde pode haver cachaça, mas há muita alegria, bastante respeito e, às vezes, uma disciplina quase militar. Já esse nome de escola implica uma idéia de hierarquia, de cooperação, de ordem, de método de que um verdadeiro malandro não é absolutamente capaz.
Quando falo que nas escolas de samba há muita alegria, não quero que se confunda alegria com bagunça. Ali não há cerimônia, mas também não há gandaia solta. E de resto ninguém pode esquecer a função quase religiosa que o samba tem no morro. Uma religião sem Deus, mas com sacerdotes, noviças, rito, tristeza, esperança. Mesmo porque não é preciso ser campeão de folclore para sentir como o samba recebeu e ajeitou a fluência de certas orações de macumba.
O cavalheiro que se dispõe a ir a um morro, mesmo com a sua senhora, irmã, noiva, namorada, tia ou bisavó, não necessita levar uma boa metralhadora nem mesmo uma pistola de gás lacrimogêneo. A sua bolsa e a sua mulher não correm tanto perigo. A sua mulher, pelo menos, na sua descida do morro lhe dirá que foi tratada infinitamente com mais respeito do que quando passava pela Avenida, sábado de tarde.
Um amigo meu foi há tempos a um morro. Havia bebido demais e no fim da festa estava naquele estado em que tudo gira e se confunde em torno de nós, e, mais ainda, dentro de nós. Em pleno caos alcoólico, meu amigo deixou de saber o que estava fazendo. Acordou no dia seguinte numa cama ao lado de um mulato de uma mulata que o haviam rebocado até ali por caridade e ainda lhe deram café e dinheiro para o ônibus que o conduziria aos seu luxuoso apartamento de Ipanema.
Vamos, portanto, para o morro ouvir as primeiras cuícas do carnaval do ano que vem. Não precisamos levar armas. Levemos ouvido e coração, para ouvir e para sentir. Não aprenderemos música. Mas sentiremos coisas que são tristes e belas e que é bom sentir. Aprenderemos sentimento.

Friday, February 03, 2006

É rapaz...

As cores do dia desapareciam no cinza do meu coração. Passava e por onde ia tudo apodrecia. Para mim o deserto parecia vivo, o deserto se estendia a frente confortável e alegre. Os cáctus retorcido, as pedras, os bichos rastejantes. Sentia-me no caminho certo, no caminho que precisava seguir, no caminho que eu merecia. Aos pouco achava meu canto nessa casa. E o vento, ah o vento do deserto, soberano, o vento que sussurra ao ouvido: " O tempo não existe".
Era isso que via de meu Cadillac.
A estrada convidando a partir, e quando a estrada nos convida assim, com todo esse apelo, importa pouco o nome dos lugares. Ir pra casa, sempre. Ir pra casa, mesmo quando se foge de lá, como agora. Sempre estamos indo pra casa, disse alguem mais triste que eu. Se chegamos algum dia...sinceramente duvido. Mas haverá desertos, mulheres estúpidas, cervejas quentes, corpos frios, mal cheiro, tédio, relógio parado e gasolina barata e cara. E se atropelar um cachorro no caminho, seguir, e então pensar, sempre, que poderia ter sido uma vaca.