Friday, March 17, 2006

ENQUANTO SOAR RUBEM BRAGA, POR AÍ, HAVERÁ ESPERANÇA...

- “Basta pensar isto:
enquanto estou escrevendo, lá fora, na rua,
passam mulheres.
Minha obrigação era descer as escadas e ir vê-las.
É um verdadeiro crime um homem ficar dentro de uma sala escrevendo,
sob a luz artificial,
quando lá fora a tarde ainda está clara e há mulheres andando.
É aflitivo pensar que a vida está correndo
e nós estamos aqui conversando.
Confesso que as vezes acho qualquer coisa de humilhante na literatura...”
R. B (Fantasio, com leveza, ver nesse RB, um singelo Rafael Bacelar)

Wednesday, March 15, 2006

O FIO DENTAL DA CARIOCA

Rafael Prosdocimi
É impressionante como algumas coisas, no mais súbito do de repente, adquirem uma substancia...Transformam-se de tal jeito, que tudo que era sólido se dissolve no ar e nada daquilo que Era, de tudo resta. É no momento que ocorrem essas mudanças estruturais que talvez possamos falar do “passado”, com segurança. Foi quando comecei a ouvir Led Zeppelin que Spice Girls e No Doubt adquiriram um aspecto cadavérico e mórbido. Apesar de que são os integrantes do primeiro grupo que possuem este aspecto. O fato é: Muda-se subitamente uma configuração do mundo, que o que não se via antes surge, e o que era mais que sensível de alguma forma vira fundo, paisagem.
O Pentium III garante o título de velharia que o II não possuía. E mesmo que, nesse caso, seja apenas uma mudança de velocidade, o que a principio, não indicaria a mudança de qualidade, acaba nos mostrando que, atualmente, quantidade de tempo diminuída, velocidade, adquire a estranha aura de qualidade. Desafio aos que tem Internet a cabo a usarem a Internet discada, e já pressinto, na realização desse experimento, problemas maiores. Suícidios, morte, destruição de computadores e coisas assim. E mesmo agora corro o risco (em se tratando de informática, nunca se sabe...), de que essas minhas linhas, sobre a Internet e sobre os Pentiums, possam vir a não fazer o menor sentido para alguém que talvez leia isso, daqui a 4 ou 5 anos.
Mas a questão que me intriga mesmo é de natureza cotidiana e banal. A utilização de fio dental. Outro dia descobri que nunca em minha vida havia usado fio dental. Nunca o utilizei da forma certa, como aprendi recentemente. Antes diria que mais compunha o ritual “limpar os dentes”, que me foi ensinado por todas as lindas dentistas que me acompanharam nessa vida, do que realmente limpava os dentes. Antes o fio percorria unicamente os espaços entre os dentes, e esse era o seu habitat no planeta Terra. Hoje, o fio percorre toda a extensão da gengiva, penetra e percorre o espaço onde a gengiva se encontra com os dentes, e entra na carne. Às vezes sangra.
A verdade é que o fio dental passa a não reconhecer a gengiva como barreira, e aí ele vai até onde se encontram os minúsculos restos de alimento escondidos lá dentro da gengiva. Uma descoberta não menos fundamental do que aquela da psicanálise. A descoberta de que sob a pálida presença da consciência, há algo que não só não se conhece como não se pode conhecer. Algo que escondido nos fundos da alma perturba todo o resto da vida. Processos que se repetem e que estão para além do nosso entender. Mas a senhora tapada (a consciência), afinal, descobre que não é senhora do seu lar. Há muito mais do que simplesmente percorrer o espaço entre os dentes. Há que se aprofundar no mistério do oculto, do que não se vê nesse espaço mínimo entre a gengiva e o dente. E tal qual ocorre num processo de análise: Às vezes sangra.
Sinto-me enganado. Quando a gente descobre como passar o fio dental aos 23 anos, surge uma dúvida cortante e essencial, que é: Será que eu não tenho que aprender a fazer tudo aquilo que achava que sei fazer? Será que faço alguma coisa direito na vida?
O Nelson Rodrigues dizia que um homem, aos 18 anos, não sabe nem dar bom dia a uma mulher, e que todo homem já devia nascer com 30 anos. Eu, que me encontro bem no meio do caminho, pressinto que dar um bom dia a uma mulher é algo muito difícil. Significa proporcionar a uma mulher um dia inesquecível, marcado em sua mente com toda a força do carinho. Um dia que tem esse pingo da Vida, que nós guardamos na última gaveta do coração e que, nos dias vazios e frios de afeto, acabamos buscando com paixão, procurando onde foi que ficou essa intensidade do tempo que não é mais.
Paralelo à descoberta das possibilidades recalcadas do fio dental, conheci aquela carioca alta e magra que se conhecia com tanto afinco e amor, que cheguei a sentir que talvez fosse melhor deixá-la ali, deitada, trabalhando sozinha. A gente se acostuma com mulheres que prezam muito o gozo de “nosotros” (a mãe, a empregada, a namorada, a virgem Maria) e quando se encontra uma mulher que liga muito pouco pelo que Falo, e faço...Acaba dando um certo receio inicial, que logo se transforma numa sublime sensação de que nunca se usou o fio dental da forma adequada.
A mudança de paradigma quebra o chão, que de repente parece nunca ter havido. Sem duvida a descoberta da carioca (não arriscaria o plural) foi mais impressionante do que a do fio dental. Más há um charme indefinível nesse pudor bem mineiro. Um certo conhecimento total dos mecanismos de funcionamento do gozo pode levar à fabricação de Pilulas Orgasmáticas das indústrias Merck, cientificamente comprovadas, e não é nada disso. O pudor que se desfaz, na velocidade precisa dos gestos imprecisos ainda ganha desse maquinismo da carioca. Mas que dá medo e é bom demais da conta sô, isso é. É por isso que vejo com apreensão essas moças e moços de um só. Há algo essencialmente experimental no amor que foge a qualquer metafísica do ente. Pois esses ficam aí, o resto da vida, achando que usam o fio dental da forma certa.
Às vezes ao passar o fio dental sangra, e dói. Mas é assim mesmo, deixe sangrar.

Friday, March 10, 2006

IRONIA

Rafael Prosdocimi
“A vida é a arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida” – Vinícius de Moraes

Havia senão o amor, a esperança dele. Desistia momentaneamente de achar que a esperança seria algo ruim, o maior dos vícios segundo Nietzsche. Esse sentimento que paralisa o corpo e nos faz esperar. Na verdade, sentia uma cálida presença, uma proteção, mas que não era, em absoluto, o amor. Era isso sim: a esperança. Gostava dela, de ficar nos bares até o momento em que tínhamos que ir embora sem nem mesmo querer. E os beijos, os olhos essas coisas. Sentia sim um tesão, reprimido e meio rouco, mas sentia.
Ela se dizia cansada de ver os nomes de seus homens passados, em listas que poderiam ser até mesmo de coisas a se comprar no supermercado. Eu gostava dela, mas toda minha arrogância e hipocrisia, já prediziam que nada haveria ali de acontecer. Seríamos nomes na lista de cada um. E nos buscávamos, talvez mais pela esperança e pelo medo de nos perdemos na esquinas da vida, do que pela certeza de nos querermos juntos. Ela teve a força de me fazer encontrar com a vida, com a vontade, com o encontro do caminho perdido que há em segurar uma mão, segurar um ventre, e puxar, encostando corpos.
Como o velho filósofo do filme “A Excêntrica Família de Antonia” interpretava meu papel na desolação e na companhia dos livros. Procurava meu mofo, meu escuro. Minha caverna, onde buscaria lento apodrecer. Era só esse o papel que me caberia naquele filme, ou na minha vida. A amargura, o ressentimento, o bolor. O suicida. Passava os dias em casa, buscando nas minhas abstrações qualquer espaço ou cadeira que me coubesse. Fugia da vida e de todos. Lia Vinicius de Moraes como se eu fizesse parte das encenações do poeta e não fosse, isso sim, a sua própria antítese. O próprio evitador das paixões e da vida. E ela apareceu tímida, fruto de um desejo cotidiano dentro de um ônibus numa manhã qualquer. Deveria ter ficado no cotidiano como muitas e todas as outras, mas passou a me encontrar nas cerimônias das quartas de bar. Ou segundas e terças. E a gente se regava e florescia no álcool e nas palavras. E sorríamos; e pra mim havia nela uma ingenuidade singela, de quem não finge quase nada. Eu gostava disso, combatia minha hipocrisia.
No meio dos um milhão e duzentos mil de Copacabana, no maior show de Rock’n Roll da história, com inocência, convenci-me de que a veria ao acaso. Ficaríamos juntos, abraçados naquele limbo que pode ser, às vezes, o Rio de Janeiro. O céu, o mar, o espetáculo e eu nos braços dela, isso tudo formava meu sonho de uma noite de verão. Havia tanta cegueira em imaginar esse encontro, que o número um milhão e duzentas mil pessoas era pura abstração matemática. E não a encontrei. Mergulhei no álcool buscando aquilo que ela poderia me dar. Aconchego. Afoguei.
Uma semana depois era carnaval. A vontade de encontrá-la existia muito, apesar de fingir pra todos que não. Fantasiava pra mim mesmo que não queria encontrá-la, porque o carnaval é a época de encontros casuais com mulheres aleatórias, que devem nos dar seu desejo e depois desaparecer na tal quarta-feira. Virar cinzas. Mas no fundo queria tanto vê-la, que acreditava pouco nessa minha mentira. Estávamos na mesma cidade por vários momentos e não a vi. Talvez ela havia me visto e se escondeu atrás de braços e troncos, ou mesmo árvores. Não a encontrei. Mas voltei do carnaval aliviado. Aquela exuberância de mulheres, cores e barulhos havia acabado. Voltaria para os braços dos livros, da minha poeira sadia. E também para os braços dela nos bares silenciosos das quartas-feiras.
As minhas cinzas duraram não só a quarta, mas também a quinta-feira. Na sexta sai a fazer coisas para minha mãe. Nessa cidade de 2,5 milhões de habitantes peguei meu carro e parti. É engraçado que, muitas vezes, quando saio de carro, tenho a forte impressão de que o que vejo do outro lado do vidro sou eu estampado na rua. Como se andar de carro fosse a metáfora de percorrer os caminhos de minha vida, um percalço solitário pelos labirintos do que chamo “eu”. Foi o que senti hoje. Caminhava silencioso, lentamente. Parado num sinal olhei pra frente e estranhamente a vi, linda e leve atravessando a rua. Uma buzinada, um aceno que não ocorreu nem no Rio nem no carnaval se esboçou em minha mente. O meu carro metafórico via ali aquela mulher como uma alegoria. E eu buzinaria e ela olharia e me daria um sorriso.
Passeava não pelas ruas de Belo Horizonte, nem mesmo via carros, ou placas e árvores, via a cada esquina o pouco de mim que existe nesses caminhos. O esboço daquela buzina ficou preso na mão que ela dava afetivamente para um outro homem. E ela que ontem me dizia estar doente e de cama, tinha na face o rosado da vida curtida da satisfação contida numa paixão. Eu engoli meus secos...Olhei-a atravessar a rua e ir embora como uma metáfora. E sozinho no carro fiquei ainda mais. Fui embora pra casa.
No caminho ainda vi a avó de minha primeira namorada subindo a rua. Cansada e velha. Ela era eu.

Sunday, March 05, 2006

PEQUENA CRIANÇA QUE DORME NO COLO DA MÃE

Vai pequena criança, aproveite o mais gostoso sono da vida, que é esse seu, recostada no ombro espaçoso e aconchegante de sua mãe. Pequena menina, este será o ultimo desses sonos. A partir de amanhã, você começará a notar que sua mãe já está cansada disso tudo, e também amanhã você estará um pouquinho mais pesada para que essa mulher te carregue. Hoje, enquanto dormia, você não viu como ela limpava com a mão direita o suor do próprio rosto, enquanto com a esquerda, já dormente, te segurava. Olho para você, pequena criança que dorme no colo da mãe, e sinto uma inveja permeada de uma pena, de uma aflição enorme. Perseguirá no resto de sua vida a procura desse sono, desse aconchego, tentará em vão voltar ao colo da mãe, sem nem mesmo saber que é isso que buscas.
E amanhã quando acordar, pequena criança, verás que és negra, verás na negritude que vem de sua mãe, todo o seu futuro sofrimento. Seu sofrimento porque homens, como eu, irão tentar te colocar onde bem entenderem, irão te negar o amor, e querer o seu sexo, te negando os olhos e a palavra de carinho. Pequena criança que dorme no colo da mãe, amanhã você não entenderá porque te tratam mal, todos esses homens e mulheres que só querem de você uma boa faxina, um movimento preciso e subalterno, esses que querem seu silêncio, quando você luta por sua vida. Sua palavra, sua boca, seus preciosos momentos. Mas eles, nós, não ligamos pra você. Sua mãe hoje te olha com receio de tudo aquilo que terás que agüentar, tudo aquilo que ela mesma suporta sabe-se lá como. É quando ela te tens no braço, desse jeito, e vê algo na doçura de sua face, que tudo se torna mais fácil de suportar e ela continua a andar, respirar e viver.
Pequena criança que você cresça esperta, inteligente e batalhadora. Que você se negue a encaixar nos nomes que esses homens brancos lhe dão, que você se chame como bem entender. Não seja a minha pequena criança que dorme no colo da mãe, por favor, seja quem bem quiseres. Diga ao mundo que você, é isso tudo que você é, e não acredite nos homens que sempre te chamarão daquilo que eles querem que você seja, mesmo quando parecerem bons e gentis. Só não desista nunca de voltar a esse sono no colo de sua mãe, mesmo que seja certo que você nunca mais o encontre.

Thursday, March 02, 2006

FOI CARNAVAL...

Dia de Graça
Composição: Candeia


Hoje é manhã de carnaval (ao esplendor)
As escolas vão desfilar (garbosamente)
Aquela gente de cor com a imponência de um rei, vai pisar na passarela(salve a Portela)
Vamos esquecer os desenganos (que passamos)
Viver alegria que sonhamos (durante o ano)
Damos o nosso coração, alegria e amor a todos sem distinção de cor
Mas depois da ilusão, coitado
Negro volta ao humilde barracão
Negro acorda é hora de acordar
Não negue a raça
Torne toda manhã dia de graça
Negro não humilhe nem se humilhe a ninguém
Todas as raças já foram escravas também
E deixa de ser rei só na folia e faça da sua Maria uma rainha todos os dias
E cante o samba na universidade
E verás que seu filho será príncipe de verdade
Aí então jamais tu voltarás ao barracão