Friday, September 15, 2006

RUA DA BAHIA

PAULO MENDES CAMPOS
A vida é esta, descer Bahia e subir Floresta. Quem não morou em Belo Horizonte, ao ouvir o mineiro suspirar num momento de cansaço e bobice – a vida é esta. Descer Bahia e subir Floresta – não há de entender, perdendo-se em noções de selva e Estado. Nada disso. A vida é descer a rua da Bahia, que tinha dois ou três quarteirões de cidade grande, de prazer; depois que se atravessava o estirão da avenida Afonso Pena, a Rua da Bahia caía em declive desagradável para o vale das estações de estrada de ferro, ficava desolada, comprida e estéril, acabando por subir sem fôlego e sem esperança o bairro da Floresta. Era a vida.
Mas a Rua da Bahia, com seus dois quarteirões comerciais, era a rua. Sem a vastidão da Avenida, onde a alma provinciana ainda não se acomodava, contentando-se de admirá-la, a Rua da Bahia era naquele trecho o lado feérico dos habitantes, a fantasia, a inquietação. Quem desejasse um cigarro de fumo fresco ou a extravagância dum charuto, ia pra lá. Quem desejasse um bilhete de loteria- você ainda era criança e Giacomo já vendia sortes grandes- ia pra lá. Quem sentisse um súbito desejo de sorvete, uma tentação de chope, um alvoroço de empadinha quente, um arrepio de moça bonita, um abismo de mulher casada, uma nostalgia de livro francês, ia tudo pra lá. Todos iam para a Rua da Bahia. Todos a subiam ou desciam, disfarçando a ansiedade, na esperança dum olhar, um encontro, uma aventura, um pecado, o mundo. Pois pela Rua da Bahia desfilava o tédio de Belo Horizonte, mas só o tédio que ainda reagia, o tédio vital de Madame Bovary, o tédio que aguarda o toque de anjo capaz de transformar esta fade et morne existence em deslumbramento e delícia. Desconfio que raras vezes o anjo deu o ar de sua graça na Rua da Bahia a fim de arrebatar uma alma e leva-la numa euforia de esquinas celestiais. A mim, pelo menos o anjo quando muito me serviu umas vagas promessas de felicidade, trocadas pouco depois por alguns cálices de Madeira R, uma empadinha de camarão, outra de palmito.
Mas, como todo mundo enquanto vivi, nunca deixei de percorrer a Rua da Bahia, única rua de Belo Horizonte que dava a impressão de poder conduzir-nos para fora do espaço moral de Belo Horizonte – uma chateação colante e quase indolor naqueles tempos. Contam mesmo a história patética dum repórter maduro que, fechado o jornal, subia devagar a Rua da Bahia, seus passos ocos ressoando no silencio espetacular de Minas Gerais , seus olhos de dromedário espreitando as casas todas, na esperança de que uma janela se abrisse e uma senhora deslumbrante o convidasse para entrar. Pois durante anos a fio as janelas da Rua da Bahia permaneceram herméticas como a virtude. No cemitério do Bonfim o jornalista repousa de suas andanças. A vida é esta.
Mas tinha uma coisa na Rua da Bahia diferente e indescritível. Essa reluz na minha memória com as mil perturbações do mistério. É a Suíça. Ficava do lado direito de quem desce, depois do Trianon e antes do café Brasil. Era uma loja pequenina de balas, bombons, chocolate. Tudo ali (falha-me o advérbio) era sacrossantemente limpo. Era o asseio do asseio. A inocência materializada numa loja de doces. A castidade da matéria. Menino turvo, não reconhecia a limpidez, a inocência, a castidade. Sendo assim, que fazer para comprar um bombom? Eu parava na porta intimidado. Depois violentava meu sentimento de culpa e pisava com meus sapatos sujos os ladrilhos imaculados do Suíça. Se não tivesse me carregado força para dentro, que teria sido de mim? Teria sem dúvida ficado à porta da limpeza que disfarça e suaviza a brutalidade do prazer.
Como me fascinava a Suíça com vidros nítidos, as madeiras lustrosas, os ladrilhos encerados, o aroma que só podia ser o da candura! Como eu me contrastava atropeladamente com a linguagem daqueles objetos purificados! Transpunha aquelas portas como o pecador entra no paraíso: confuso, humilhado, mas impelido pela certeza de que todos nós buscamos o céu em tudo.
As proprietárias eram duas senhoras gordas suíças, duas ou três, ainda mais limpas do que a própria casa, gordas, coradas, os olhos dum azul filtrado pelos séculos. Os cabelos, esses eram duma alvura que só existia em bonecas...suíças.
E eu lá. Diante das duas, ou três, senhoras de idade mais iluminadas que jamais encontrei. Não digo espiritualmente, porque disso nada entendia, mas que aquelas bonecas maduras eram materialmente iluminadas, vestidas duma carne que já nos faz pensar na leveza da alma. E eu lá. Com a minha carne carne, complicada de gânglios e glândulas, entranhas, artérias latejantes, instintos sombrios, joelhos escalavrados, vigoroso e triste. Saúde eu tinha, mas era um menino contagiado pela própria força que os outros bloqueavam. Por isso mesmo vivia subindo e descendo a Rua da Bahia.