Thursday, October 26, 2006

VIVEM SEM MARIANA É IMPÓSSÍVEL.


Rubem Braga

Foi o timbre de uma voz, entre tantas. Voltei devagar a cabeça enquanto o amigo me falava, e procurei, sem saber porque, localizar a dona daquela voz. Mas o amigo contava uma coisa interessante, e minha atenção voltava para ele. Só, alguns instantes depois, ouvindo , entre vozes de homem, uma risada clara de mulher, é que um nome me cruzou a cabeça como um relâmpago e me ergui da cadeira: Mariana!
Ela hesitou um instante, e quando meu nome saiu de sua boca nós já estávamos de pé, e abraçados. Pobre é a vida de um homem; mas é estranho como ele desperdiça riquezas, e nem se lembra mais. Se passados tantos anos, eu tivesse ido encontrá-la sabendo que iria vê-la, e ela também esperasse me rever, talvez não houvesse essa explosão de carinho tão intensa, que parecíamos , entre os outros que nos olhavam surpresos, dois amantes que tivessem passado anos ansiando um pelo outro, e se buscando em vão. Não sei se ela sentiu, depois daquela efusão tão grande, a mesma estranheza que eu- se lhe acudiu subitamente a idéia de que antes não éramos tão amigos assim, e não achou estranha a imensa alegria do encontro. Nesse acaso dos encontros do mundo, que mistério é esse que faz se verem frias duas pessoas que se deixaram com muito carinho, e torna contrafeitos amigos de infância, mas também dá esse choque de prazer em velhos conhecidos escassamente cordiais? Ela estava bonita, talvez mais bonita que antes, mais dona de sua beleza. Há adolescentes e até moças que parecem não ser donas de suas próprias pernas, ou cujos olhos parecem um acaso, ou são inconscientes de seus ombros. Nelas a beleza parece um acidente, a que são no fundo, estranhas; aconteceram-lhe aqueles ombros. Sabem apenas que são bonitas, mas não tomaram posse de si mesmas, são um fato demasiado recente e ainda instável, como um pássaro que se balança em um galho florido. Nessa mulher madura, a beleza está morando, a beleza não é um acidente fortuito, é sua maneira de ser.
Ela conta suas histórias, eu conto as minhas, mas toda essa multidão de pessoas e fatos que houve durante esse tempo em que não nos vimos tem apenas um sentido vago. Como se agente entrasse num cinema para ver um filme qualquer e saísse, e então aquelas peripécias de amarguras e alegrias que iam nos interessando, de minuto a minuto, perdessem todo o sentido, nós dois tornando à rua da realidade. A realidade somos nós dois, amigos felizes de nos encontrarmos. E seu movimento de cabeça, o gesto de sua mão ao segurar a minha que lhe apresenta fogo para o cigarro, o timbre de sua voz longamente extraviado, mas nunca perdida em minha lembrança- tudo é um belo reino que de repente recuperei. Somo subitamente ricos um do outro, e conscientes dessa riqueza afetiva, com uma extraordinária pureza.
Quando saímos, e me atraso um momento, e a vejo assim de corpo inteiro, andando firme e suave na sua beleza, sigo-a um pouco mais devagar, para durante mais um instante ter o prazer de revê-la dos pés à cabeça, antes de lhe segurar o braço de velha amiga e lhe dizer, com uma franqueza instantânea que a fez rir: “Mariana, eu acho impossível uma pessoa viver sem você.” Ela ri e agradece – pois já estamos na idade de poder dizer e ouvir, sem ilusões, as mais simples, e belas e graves tolices.”
Agosto, 1989

Monday, October 23, 2006

QUANTO SOFRE UM ROMÂNTICO POR AMAR UMA MULHER DE VERDADE

Para fins de consenso, definiria um romântico com alguém que vê no amado, ou amada, o destino final de todo sentimento que há na vida. Como se a pessoa que se ama, fosse sua desde os momentos iniciais da existência, e tudo o que aconteceu desde a sua formação embrionária, dos tropeços infantis até as transadas juvenis, fossem meros ricocheteios, tipo fliperama, para que o amor chegasse, enfim, a você: o destino final. E agora fossem ambos começar a viver de verdade. E é isso, por mais que não seja.

Nesse sentido o relacionamento só existe entre dois, e todas as outras pessoas são paredes. Por isso dizia Hannah Arendt que o amor não é só apolítico, mas anti-politico. Pois quando se ama uma pessoa, destina-se todos os afetos e vontades a essa pessoa, esquecendo-se do mundo. Amar, para nós românticos, é ter na pessoa amada o único porto possível na vida, e sentir que se é também esse único lugar de aconchego. Sempre tive ódio das mulheres que se colocam a disputar homens como se fossem esses cavalos. Machos e fêmeas me inspiram tédio e preguiça. Como diria o Tom Jobim, sacanagem mesmo é amar. O amor é platônico, e encontra nas carnes e córneas materialidade, esbarrão possível frente ao inenunciável.

Por isso a ilusão é tão necessária. Ela acomoda o que a gente sente e não consegue dizer. A idéia de princesas e príncipes. E a ilusão é achar que esses dois últimos parágrafos fazem algum sentido. O melhor, para quebrar a ilusão, é colocar nos colchetes da vida variáveis várias, diversas incógnitas, e proceder com equações do tipo 3x=y, ou 2z= w/7...Ou seja enunciar que houve mais vida nos anos anteriores, e que na função amor de tal menina, você agora desempenha papel de variável tal, sempre passível de substituição e comparação com uma outra variável dessa mesma função. Isso sem dizer das comparações torpes, tipo tamanho de coisas. E o além pior são as quantificações. Tipo quantas variáveis passaram pela sua cama? Como entender que 1 mulher vale às vezes todas as outras, ou simplesmente não valem nada frente a você? E então procedimenta-se o desencanto. E, as vezes, uma palavra basta para romper esses castelos de areia, frágeis e fundamentais para se ir levando. E a ilusão, veja bem, é só aparência mesmo, mas a essência tem que ser real. O amor existe, independe da ilusão. A ilusão é o mal que persegue os românticos, ou os religiosos falsamente convertidos em pessoas céticas e racionais. O romantismo é a parcela de encanto que devolvemos ao mundo. E a ilusão sadia é essa acompanhada do amor real. Peço a ilusão por ser um romântico, e não por amar simplesmente. Frente a dois olhos não suportaria nunca uma leve comparação. Não as faço.

Cada mulher carrega em si as marcas dos gozos mais difíceis e cruéis; carregam nos contornos do corpo o abandono corrente, a mordida que dilacerou não apenas matéria; carregam todo o sofrimento do encontro e mais ainda do desencontro. E isso se apreende de ver e olhar. Não é necessário dizer. Essas aulas são dadas em silêncio.

Chamem-me de moralista, inseguro, iludido, medroso, frágil. Mas preciso de encanto. Preciso de pão e não de carboidrato. Nada pior do que evocar um “y” quando se está nua com o “x” a lhe admirar o traço dos seios. Amar uma mulher real dói muito às vezes. A mulher real tem passado e não acredita nos meus belos primeiros parágrafos. Preciso da ilusão, preciso ver nos olhos só o eu refletido, e ver no “eu”, o tudo. Se a mulher não consegue me manter nesse lugar, o amor se torna algo doloroso. Aí surgem os fantasma da duvida, a preocupação das performances, as questões materiais que afastam sempre o supremo gozo. Surgem os outros, surgem adversários quando estes não fazem o menor sentido...a traição mesmo sempre começa antes...

Sofri um bocado quando ela perguntou “Com quantos variáveis você já enfrentou a função sexo?”. Não pela vergonha da resposta (não a tenho) ou algo do gênero, mas o de pensar o porquê dessa pergunta? O que ela quer saber com isso? Bom, se isso aqui é sexo, isso já não é mais nada para mim. A função sexo entrou na minha vida pouquíssimas vezes. E ela se diferencia da outra função, amor, pelo sono que se tira depois do ato, ao lado da mulher; pela leveza do pensamento; pela vontade ingênua de ver nessa mulher deitada, a mãe dos meus filhos. Sexo implica em pensar que horas ela vai embora, e mais, “porque ainda não foi”. Sem querer dar uma de Jabor, sexo se define pelo ato, mas amor explode e se espalha por todos os entornos e tonalidades que a vida subitamente adquire.

Fica a ilusão. A necessidade de ver na mulher que me ama a fatalidade desse ser. Sem hipocrisia. Sem mentira. Eu preciso da ilusão, e sei disso. Mas a cada dia que passa é difícil mantê-la. Há muito pragmatismo ao redor. Logo as pessoas vão jogar no Excel as transas e as performances, tal qual as estatísticas dos jogos de futebol.

Bem sei que sexo é bom sim. Mas a ilusão da eternidade, isso... é outra dimensão. E é lá que quero estar. Que me perdoe a minha parcela materialista.

Tuesday, October 10, 2006

“Infelizmente não temos trilhões...”

RAFAEL PROSDOCIMI
Imagino que tenha sido isso que passou pela cabeça de Alckmin e Lula nos momentos anteriores ao debate. Devem ter colocado todos os seus acessores a pesquisar se não haveria, por acaso, algum lugar no qual poderiam enfiar a tal magnética cifra. Já se imaginavam, aqueles gestos de um mau teatro, aguardando o momento certo para então dizer: “3 Tri..Lhões de reais de blábláblá”.
Infelizmente parece que era apenas com isso que se preocupavam os candidatos (além é claro de jogar lama um no outro). Preocupavam-se apenas com números altos, que no início até agradam mas em determinado momento acabam nos anestesiando e perdem qualquer sentido. E então se comete o absurdo, como Alckmin, que em determinado momento comparou 9% com 700 milhões... mas 9% do quê, e de quanto ora bolas? Como comparar 9% com 700 milhões?

Fico triste porque os números saem das bocas dos candidatos, “Bi..Lhões”... “Mi...Lhões”..., disso daquilo, sendo que entre a fala de um e a “suposta resposta” do outro, pipocam números mais desafiantes. Mas o que realmente esses números significam, qual a relação deles com a proposta que ambos teriam para o Brasil (o que deveria ser o mais importante), isso eles não dizem. E o pior é que quando a fala passa de um para o outro, ambos se contradizem, um diz que o outro mente, e ...fica por isso mesmo. Você resta aí, sentado no sofá, com grandes números suspensos no ar. Parece que os candidatos jogam números ao léu, à cata de espectadores que se identifiquem intimamente com eles (com os números). Isso satisfaz o pequeno contador que existe na cabeça de cada um (deve ser o que pensam). E com isso vão-se comparações esdrúxulas, argumentos antagônicos que se “desdobram como cartas de baralho”, simples e fáceis (apesar de opostos) quando o que falam deveria representar questões políticas fundamentais, projetos coletivos, encarnações de algo para alguéns. Bem, se há duas representações sobre o mesmo fenômeno, sendo que são contraditórias, que sejam então analisadas e dissecadas. Isso se alguém ali acredita em realidade. Ou será que eles só acreditam mesmo em estatística?

Acho estranho que um comentarista, após o debate, disse que foi um bom debate, felizmente após essa infeliz colocação, o jornalista se redimiu, e colocou os critérios adotados em seu julgamento, para dizer: “Foi um bom debate do ponto de vista televisivo”. Sem dúvida, fosse o Faustão x Ratinho, não teria sido melhor, nem mais televisivo. Um debate no qual os adversários destrincham golpes no ar, golpes que não encontram o coração do inimigo, porque ficam a cortar o ar, o abstrato, o nada. Ambos apenas ficaram esperando escorregões aleatórios e gratuitos do adversário.
E quando Alckmin pergunta sobre a política externa, a questão do gás da Bolívia, e então Lula, dá uma resposta fundamentalmente democrática (e não mera máscara de capitalista querendo entrar em baile de carnaval) de que o país não vai invadir, acabar com a Bolívia, que esse não é o jeito dele, que as coisas são conversadas, que esse é o jeito dele fazer política. E coloca as coisas nos seus termos. E isso não significa que nada deve ser feito pelo direito da Petrobrás em ter seus investimentos garantidos. O que o Lula diz nessa hora, é o seguinte : “sabe esse jogo aí, esse que vocês estão fazendo, não é esse o meu jogo”. E isso é que é política, recriar as regras do jogo. Repetir o mesmo é sintoma, doença e não política. Acho estranho, portanto, que Lula siga a lógica de jogar números no debate. Deveria, isso sim, destrinchar qualquer desses números. Mostrar que de fato no seu governo o Brasil exportou mais, empregou mais gente, diminuiu a pobreza e “desenvolveu” o país.
Não entendi também porque não explorar o que está envolto na facção criminosa mais organizada que vimos agir no Brasil nos últimos anos, coincidentemente no estado de São Paulo, coincidentemente o estado mais rico do país, e coincidentemente o estado de Alckmin. E ele compara isso à violência nas outras capitais. Violência é uma coisa, crime organizado, com a força que o PCC mostrou é outra. Pois o PCC implica em relação com o estado, já que esse era o alvo das ações, prédios e agente públicos. Particularidades do PCC que mereciam um trabalho mais aprofundado. Mészaros diz que: “Quando os conflitos já não podem ser ocultados, são tratados meramente como efeitos divorciados de suas causas”, pois há de se mostrar as causas do surgimento dessa facção. Como ela age, como ela constrói laços de solidariedade, como ela se aproveita da ausência do estado, de uma situação social absurda e ali, vai costurando relações de lealdade e solidariedade (mesmo que perversas) e amarrando os sujeitos. Lula deveria abordar essas questões. Ou apenas aprofundar em qualquer uma. A retórica e a necessidade da média (e da mídia), fazem Alckmin construir um discurso que tem que colocar coisas antagônicas no mesmo balaio, tenha que escolher cara e coroa ao mesmo tempo, e isso não é possível. Por trás do discurso deveria Lula descascar a realidade envolta na proposta de governo de Alckmin, que é trabalhar muito para construir mecanismos que permitam ao mercado funcionar adequadamente. A inclusão por “via mercado”, é a mentira mais suja da história, pois o mercado se assenta sobre a desigualdade, a necessidade da desigualdade, e portanto da exclusão...
O que me entristece, ao final, é que tudo parece teatro, depois as pessoas batem palma, e parece que é isso mesmo. E não é. E isso não aparece, essa farsa generalizada, isso sim um grande desrespeito. Coisas são ditas aleatórias, no velho e bom, ao gosto do freguês. E eu não sou freguês, nem empregado, nem amigo, nem companheiro.

Tuesday, October 03, 2006

MEUS SATÉLITES

Algumas frases musicais adquirem tanta beleza, sem explicação, que ficam me orbitando e produzindo sensações que não se explicam nos em-sis. Fica a frase rondando nas minhas horas, buscando um sentido escondido entre o décimo-terceiro e o décimo-quarto minuto das 9 horas. Não sei explicar, nem entender, dessas frases que só tem em comum o fato de se repetirem em minha mente muitas vezes, produzindo sempre o mesmo efeito (beleza bem vagabunda), até que então passa. Representam a abertura ao mundo que a poesia, a sempre nossa poesia apropriada, arte produz. “Ela não sabe/ Quanta Tristeza/ Cabe numa solidão...”. E a frase é só isso mesmo. Mas, já adianto, só faz sentido com a música.
Já foram outras frases, outros sentidos, outros setembros. Mas foram sempre essas coisas. “Que prazer tem bater se ela não vai ouvir, que prazer tem sorrir se ela não vai sorrir também”. “Foi como tudo na vida que o tempo desfaz, quando menos se quer, uma desilusão assim faz a gente perder a fé, e ninguém é feliz viu, se o amor não lhe quer, mas enfim...”. “Convence as paredes do quarto e dorme tranqüilo sabendo no fundo do peito que não era nada daquilo”. “Acontece que já não sei mais amar, vais chorar, vais sofrer e você não merece, mas isso acontece...”. “Passado é um pé no chão e um sabiá, presente é a porta aberta, e o futuro é o que virá”. E mesmo a já famigerada, “você me ligou naquela tarde vazia e me valeu o dia”. São frases a toa que não encontrarão espaço orbital em nenhuma outra alma além da minha. E isso me deixa feliz. Saber que um sujeito olhou pra noite, fumou um cigarro, tomou uma dose de uísque, e terminou uma música, com a frase: “Ela não sabe/ quanta tristeza/ cabe numa solidão.” Dizer que foi Vinicius que escreveu isso seria recorrer ao óbvio. Quantas palavras bastam para um sujeito assinar sua vida no mundo?
Essas frases musicais dizem –me todas as coisas além daquelas que seus autores nunca pensaram. Como situar esse “mas enfim...” para ver se você entende aqui o que falo. As frases que orbitam dizem tanto da gente, e dizem tanto também do que a gente quer dizer da gente, que é melhor calar.