Saturday, June 23, 2007

Bar I

-RAIZES SUBJETIVAS DO PROJETO REVOLUCIONÁRIO

(trecho do livro A Instituição Imaginária da Sociedade – Cornelius Castoriadis, Pp111-116 )

"Às vezes ouvimos dizer: esta idéia de uma outra sociedade apresenta-se como um projeto, mas em verdade é apenas a projeção de desejos não confessados, disfarce de motivações que permanecem escondidas para os que as utilizam. Ela só serve para veicular, em alguns um desejo de poder; em outros, a recusa do principio da realidade, o fantasma de um mundo sem conflitos no qual todos estariam reconciliados com todos e cada um consigo mesmo, um sonho infantil que desejaria suprimir o lado trágico da existência humana, uma fuga permitindo viver simultaneamente em dois mundos, uma compensação imaginária.

Quando a discussão toma tal rumo, é preciso inicialmente lembrar que estamos todos no mesmo barco. Ninguém pode afirmar que o que diz não tem ligação com desejos inconscientes ou motivações que não confessa a si mesmo. Quando ouvimos ‘psicanalistas’ de uma determinada tendência qualificar, a grosso modo, todos os revolucionários de neuróticos, só podemos nos felicitar por não compartilhar de sua ‘saúde’ de Monoprix e seria facílimos descascar o mecanismo inconsciente de seu conformismo. (...)

Tenho o desejo e sinto a necessidade, para viver, de uma outra sociedade diferente dessa que me rodeia. Como a grande maioria dos homens, posso viver nesta aqui e me acomodar-me - de qualquer forma, vivo nela. Por mais criticamente que tente olhar-me, nem minha capacidade de adaptação, nem minha assimilação da realidade me parecem inferiores ao meio sociológico. Não peço a imortalidade, a ubiqüidade, a onisciência. Não peço que a sociedade ‘me dê a felicidade’; sei que isso não é uma ração que poderia ser distribuída pela municipalidade ou pelo Conselho operário do bairro, e que, se esta coisa existe, somente eu posso construí-la para mim, nas minha medidas, como já me aconteceu, como ainda me acontecerá, sem dúvida. Mas na vida, como ela é feita para mim e para os outros, entrechoco-me com uma quantidade de coisas inadmissíveis, digo que elas não são fatais e que decorrem da organização da sociedade. Desejo e peço que antes de tudo meu trabalho tenha um sentido, que eu possa aprovar aquilo a que lhe serve e a maneira como é feito e que me permite entregar-me a ele verdadeiramente e usar minhas faculdades bem como enriquecer-me e desenvolver-me. E digo que isso é possível, com uma outra organização da sociedade, para mim, e para todos. Digo que já seria uma mudança fundamental nesse sentido, se me deixassem decidir, com todos os outros, o que tenho a fazer, e, com meus companheiros de trabalho como fazê-lo.

Desejo poder, com todos os outros, saber o que se passa na sociedade, controlar a extensão e a qualidade da informação que me é dada. Peço para poder participar diretamente de todas as decisões sociais que podem afetar minha existência ou o curso geral do mundo em que vivo. Não aceito que meu destino seja decidido, dia após dia, por pessoas cujo projetos me são hostis ou simplesmente desconhecidos e para quem não passamos eu e todos os outros, de números num plano ou peões sobre um tabuleiro de xadrez e que em ultima análise, minha vida e morte estejam nas mãos de pessoas que sei serem necessariamente cegas.

Desejo poder encontrar o outro como um ser igual a mim e absolutamente diferente, não como um número, nem com um sapo empoleirado sobre outro degrau (inferior ou superior, pouco importa) da hierarquia dos rendimentos e dos poderes. Desejo poder vê-lo e que ele possa ver-me como um outro ser humano, que nossas relações não sejam um campo de expressão de agressividade, que nossa competição permaneça dentro dos limites do jogo, que nossos conflitos, na medida em que não possam ser resolvidos ou superados, digam respeito a problemas e lances reais, envolvam o mínimo possível do inconsciente, o mínimo possível de imaginário. Desejo que o outro seja livre porquanto a minha liberdade começa onde começa a liberdade do outro, e sozinho posso no máximo ser ‘virtuoso na infelicidade’. Não espero que os homens se transformem em anjos, nem que suas almas tornem-se puras como lagos da montanha – que aliás sempre me entediaram profundamente. Sei, porém, o quanto a cultura atual agrava e exaspera a sua dificuldade de ser e de ser com os outros e vejo que ela multiplica ao infinito os obstáculos à sua liberdade.

Sei, certamente , que esse desejo não poder ser realizado atualmente; nem também a revolução se ocorresse amanhã, poderia realizar-se integralmente durante a minha vida. Sei que haverá homens um dia para os quais não existirá nem mesmo a lembrança dos problemas que possam mais nos angustiar hoje. É esse o meu destino, o qual devo assumir a assumo. Mas isso não pode reduzir-me nem ao desespero, nem à ruminação catatônica. Tendo esse desejo que é meu, só posso trabalhar para a sua realização. E já na escolha que faço do principal interesse da minha vida, no trabalho a que me consagro, cheio de sentido para mim (mesmo se nele encontro, e aceito, o fracasso parcial, os prazos, os desvios, as tarefas em si mesmas sem sentido), no participar de uma coletividade de revolucionários que tenta ultrapassar as relações reificadas e alienadas da sociedade atual – estou em condição de realizar parcialmente esse desejo. Se eu tivesse nascido numa sociedade comunista, a felicidade ter-me-ia sido mais fácil – nada sei e nada posso quanto a isso. Não vou, sobre esse pretexto, passar meu tempo livre vendo televisão ou lendo romances policiais.

Será que minha atitude significa recusar o principio da realidade? Mas qual é o conteúdo deste principio? É o que é preciso trabalhar – ou então que é preciso que necessariamente o trabalho seja desprovido de sentido, explorado, contradiga os objetivos pelos quais supostamente ocorre? E esse principio valerá sob esta forma para alguém que vive de rendas? Valeria ele, sob esta forma para os indígenas da ilha Trobiand ou de Samoa? Vale ela ainda hoje, para os pescadores de uma pobre aldeia mediterrânea? Até que ponto o princípio da realidade manifesta a natureza e onde começa a manifestar a sociedade? Até onde manifesta a sociedade como tal e a partir de onde tal forma histórica da sociedade? Por que não a servidão, as prisões os campos de concentração? De onde pois uma filosofia extrairia o direito de dizer-me: aqui nesse milímetro preciso das instituições existentes vou mostrar-lhe a fronteira entre o fenômeno e a essência, entre as formas históricas passageiras e o ser eterno do social? Aceito o principio da realidade, porque aceito a necessidade do trabalho (enquanto aliás, for real, pois torna-se cada dia menos evidente) e a necessidade de uma organização social do trabalho. Mas não aceita a invocação de uma falsa psicanálise e de uma falsa metafísica, que introduz na discussão precisa das possibilidades históricas afirmações gratuitas sobre impossibilidades sobre as quais ela nada sabe.

Será meu desejo infantil? Mas a situação infantil, é que a vida nos é dada, e que a Lei nos é dada. Na situação infantil, a vida nos é dada para nada e a Lei é dada sem nada, sem mais, sem discussão possível. O que quero é exatamente o contrário: é fazer minha vida, e dar a vida se possível, pelo menos dar para a minha vida. É que a Lei não me seja simplesmente dada, mas que eu a dê a mim mesmo. Quem permanece na situação infantil é o conformista ou apolítico: pois aceita a Lei sem discuti-la e não deseja participar da sua formação. Aquele que vive na sociedade sem vontade em relação à Lei, sem vontade política, somente substitui o pai particular pelo pai social anônimo. A situação infantil é, de início, receber sem dar, em seguida fazer ou ser para receber. O que eu quero é uma troca justa para começar e a superação da troca em seguida. A situação infantil é a relação dual, a fantasia da fusão – e, nesse sentido, é a sociedade atual que infantiliza constantemente todo mundo, pela fusão no imaginário com entidades irreais: os chefes, as nações, os cosmonautas, ou os ídolos. O que eu quero é que a sociedade deixe enfim de ser uma família, falsa além do mais até o grotesco, que ela adquira sua dimensão própria de sociedade, de rede de relações entre adultos autônomos.

Perseguiria eu a quimera de querer eliminar o lado trágico da existência humana? Parece-me mais certo que quero eliminar o melodrama, a falsa tragédia – aquela onde a catástrofe chega sem necessidade, onde tudo poderia ter-se passado de outro modo se apenas os personagens tivessem sabido isto ou feito aquilo. Que pessoas morram de fome na Índia, ao mesmo tempo em que na América ou Europa os governos instituam penalidades para os camponeses que produzem ‘muito’ – é uma farsa macabra, é o Grand Guinol onde os cadáveres e o sofrimento são reais, mas não é a tragédia, não existe nisso nada de inevitável. E se a humanidade perecer um dia sob os efeitos de bombas de hidrogênio, recuso-me a chamar isso de tragédia. Chamo de imbecilidade. Quero a supressão do Guignol e da transformação dos homens em fantoches por outros fantoches que os ‘governam’.”

Friday, June 22, 2007

CAIXA DE RESSONÂNCIA


Só há causa naquilo que manca, como só há atenção e cuidado para a criança que chora. As que choram mais alto serão atendidas primeiro, por favor. Psicólogos? Não, somos, de fato, apenas policiais. Defendemos a intocável, inabalável e certeira senhora Vida, e o senhor “Tempo É Dinheiro”, muito ocupado que são esses dois. Nossa função, clara e límpida, é a suja produção dessa monótona repetida e triste realidade. Não atrapalhar nem as pessoas importantes (e o que fazer com as não-importantes?), e nem as coisas que devem naturalmente ocorrer (mas quais... meu Deus?).

O rio que não mais existe, pois passará ali, agora, ou amanhã, uma estrada larga e com financiamento internacional, faz chorar uma velha que pescou lambaris e piaus e que quer cobrar do senhor governador do Estado, ou presidente, os 7 lambaris de outrora. Ele diz poder pagar 1.000 reais, mas ela insiste em querer 7 lambaris, nem mais, nem menos. Ela está indignada com a ordem natural das coisas que baixam avenidas e estradas onde passavam rios. Chamem rápido uma psicóloga pra conversar com aquela dona ali. E lá vou eu, achando que faço da vida meu picadeiro, improvisando meus dedilhados nas relações humanas frescas e existenciais. E a moça, a senhora, perdão, depois de conversar comigo se mostrará logo iludida por um passado que definitivamente não há, nem houve. Não ouve. Você não ouviu. Viu choro, e desespero pueril, quando havia argumento. Nós, psicólogos sociais, especialistas dos problemas humanos, não pensamos em qual tipo de problema nós somos especialistas. Nem qual o repertório de soluções que nós temos. Principalmente, nós que iremos ocupar as equipes técnicas, mas sempre inter ou multidisciplinares dos que decidem sobre as vidas dos pobres, pra ser correto e direito, e também direto. Nós que nos preocupamos com o social, e que iremos ocupar as secretarias de saúde, educação e trabalho, e as ongs, terceiros (quase segundos) setores, e OSCIPS (haja malabarismo institucional), seremos responsáveis pelo silêncio consentido entre as partes daqueles que não cabem mais parte alguma, a não ser ficar calado. Àqueles aos quais a vida se sustenta sobre a manutenção de índices sociais que devem garantir a reeleição de alguém ou uma nova candidatura a um cargo mais elevado. Esses índices sempre passíveis de serem testados, em CNTP, há um quartil abaixo. Nosso trabalho é garantir esse mínimo. Garantir que a pessoa em questão vá entender, “pelamordedeus”, que nesse lugar onde você construiu sua casa, passará uma avenida larga e grande que vai trazer benefícios pra todo mundo na cidade (incluir números e cifras, e rápido), que por fim, se houver mais uma resistência, resta a ameaça de chamar o advogado e rever a legalidade do terreno dessa dona que “se diz” proprietária, e por ai vamos testando a racionalidade desse povinho, mas olha o politicamente incorreto. Ou seja, nosso objetivo é o silencio, o consenso sem discussão, o apagamento de discursos, o abaixamento da poeira toda que ta aí, grudada nas relações, na vida nossa de todo dia. Seja, na escola, na prefeitura, nos projetos sociais. Muito bom, acordar pela manhã e dizer: o sistema ta funcionando, a sociedade, se reproduz como espécies no cio, a não ser por aquelas pessoas ali que fazem barulho, e aí vocês já sabem... chamem os psicólogos... Se não funcionar chamem a polícia (essa segunda linha de combate).

Há dias, e haverá muito mais, no qual teremos a certeza do poder de vida que temos, não como magia, mas como possibilidade de fazer falar muitos mundos no mundo, nas relações. Veremos que nossa apoliticidade, nosso relativismo, nossa primazia do privado, assenta-se num absoluto desprezo pelos sujeitos outros do mundo, revela a nossa assinatura bela e plástica nos tratados mais preconceituosos e discriminatórios dos projetos de modernidade. Saberemos, portanto, que nunca houve barulho. Há falas e discursos menos e mais articulados com uma ou outra questão. Veremos que os discursos requerem recolocação numa cadeia tal, interrompida exatamente por nós, e que o lugar que ocupamos é exatamente esse, o da interrupção. Somos represas. Não deixamos os sujeitos e suas palavras passarem. Proponho funcionarmos como uma caixa de ressonância. Fomos colocados estrategicamente nos lugares no qual há barulho, se há barulho, há problema, há questão, há conflito. Proponho deixarmos reverberar, ressonar todo esse barulho nos seus termos, nas suas perguntas, nos seus anseios. Que o sistema social democrático e plural lide com os belos sons que vem da rua e que nós só vamos silenciando, pela vida a fora.

Monday, June 11, 2007

BASTIDORES I

Mas...Me diz aqui, foram 7 ou 6 Km?

Sei lá cara, mas vão pôr 7, tem essa coisa de ser um número canibalismo...

Canibalismo... ce é retardado mental né...é cabalístico, pô...piada...

Pois é então. Ficou assim: “João Hélio, de 6 anos de idade foi arrastado por 7 km! E você não fez nada!!”

Olha só...pensa comigo, eu até entendo que você queria mobilizar as pessoas e tal. Eu sei que é importante aquela dona da esquina ver a placa e chorar e blablabla, imaginando a carne do menino ficando pelo asfalto, seus ossos raspando..

Porra bicho, que merda, pára com isso...

Olha só, que tipo de publicitariozinho de merda você é... Nós temos que aprender como afetar mais internamente todas as pessoas que verão esse anúncio. Já que é um convite para esse seminário, é bom mobilizar muita gente, e o caso do menino, é o que mais mexe com as pessoas. Eu mesmo, por mais escroto que seja, não consegui parar de chorar quando a coisa aconteceu.

Mas é muito estranho isso né...O negócio aconteceu já faz um tempo lá no Rio de Janeiro, aposto que acontece isso e pior todo dia por aí aqui do lado da gente... Mas os caras insistiram porque insistiram que nós usássemos esse caso como tema do convite. Meio bizarro ficar lembrando a morte desse menino todo dia né... Daqui a pouco a mãe vai querer receber royalties pelo nome dele sendo usado assim por qualquer imbecil... Menino morrendo de morte “punk” tem um tanto por aí...Ontem mesmo, morreu um menino lá perto de casa, na base da paulada...Parece até mesmo que foi o pai dele... ou padrasto sei lá..

Mas ele tinha quantos anos?

Ah, uns 12..

Aí, 12 já ta velho pra dá ibope.

Eu acho tudo isso muito escroto e to puto, e vão acabar logo que eu to a fim de tomar uma...

Tá. Mas achei a sua frase ruim. Sabe porque...porque a dona Luzia, desempregada, la do bairro da Piedade, não tinha como fazer nada quando o menino morreu. Então não fica bom culpar a dona Luzia, porque ela não tinha comoajudar, entendeu?

É verdade, nem pensei nisso...Acho que só importa o nome do menino mesmo, e os 7 Km... concordo contigo. Vão colocar assim: “João Hélio, de 6 anos de idade foi arrastado por 7 km! Vamos tomar alguma atitude?”. E aí...o que que ocê achou?

É..é...gostei... acho que ficou bom. Ao mesmo tempo que denuncia o absurdo propõe algo pras donas de todo meu Brasil fazerem. Ficou bom... O problema é que tem aquela caninha que chama atitude né... Aí tem sempre um gozador que fica aí falando assim, vão lá tomar uma atitude...entende...?

Num conhecia essa caninha não...Só a “providência”. Talvez a gente podia mudar. O que que você acha? Talvez, “vamos fazer alguma coisa”. Ou venha nos ajudar a pensar em alguma coisa.”

Essa última tá ruim. Parece que a gente não sabe o que fazer. A gente não, o pessoal do congresso. E a primeira pode incitar o povo a alguma coisa do tipo fazer a justiça com as próprias mãos e isso pode ser ruim pra gente.

Vão pôr aquilo mesmo. “João Hélio, de 6 anos de idade foi arrastado por 7 km! Vamos tomar alguma atitude?”. Bom, então tá, vão mandar pros caras, se eles acharem ruim, tudo bem a gente muda. Senão fica isso mesmo, certo?

Ta bom. Isso, se tiver algum problema depois a gente pensa mais nisso. E vão logo pro boteco tomar uma providencia então, ou quem sabe uma atitude, heheheh....

Sunday, June 03, 2007

TIRAR A VIDA PARA A POESIA

Rafael Prosdocimi

É ela... é ela...

Somente a poesia enche nosso peito, nossos pulmões de sentido, de nomes de amor. De ar, o alimento de devaneios que se pedem e me perdem. Que nos faz inspirar, e sentir na inspiração uma íntima troca com o mundo. Tirei a noite de ontem para a poesia. Foi fácil olhar pros lados como se não soubesse que eram lados aqueles. O show que acontecia a frente tinha às suas costas uma lua tímida, envergonhada, escondida atrás de uma benevolente montanha. Uma montanha que parecia dizer assim: “Vai, vai amiga lua...dança...baila.” Como uma mãe que incentiva o filho a ir pra vida, mesmo que para ser errado. Vai ser, diz a mãe. Havia uma ligação entre todos ali, e não sairia de mão nenhuma, um soco que fosse. Estávamos cobertos de gestos gentis, era a música que ouvia.

Diria que era arte. Diria que a arte faz a vida... vida. Mas arte é tanta coisa junta. Tem tanto dinheiro, tanta falsidade e mentira, e tanto querer aparecer que não gosto dessa palavra. E há muito rebuscamento, muito mármore, muita higiene. A poesia não. A poesia é sempre um delírio de amor. E o delírio é sempre sujo. O poeta não é aquele que faz poesia, mas aquele que delira e depois faz delirar. E ali, naqueles acordes buscados com tanto zelo, havia um sujeito, um trabalhador, o segurança, este que pela força da profissão, fica de costas para o palco a observar se o público comporta-se bem. Esse segurança, sentindo a poesia, sacou sua máquina fotográfica que fala, e tirou uma foto da lua despontando atrás da montanha. Um rapaz gordo e barbudo cantava algo estranho, fora da música, do tom, enquanto um amigo seu, feio, bailava com uma moça que segurava um vinho barato, levantando-a, girando-a, com tanto amor.

Eu ficava sentindo. A música era tão linda, e havia tanto espaço ali pra gente ser a gente, que tinha gente que não queria saber de música, pois além havia a grama, o vinho, o chá e a pipoca, e mulheres e homens com frio. Era uma música consciente tanto da sua beleza quanto da sua humildade. Eu achei lindo essa mistura. Há muito tempo não sentia a beleza se apossar de mim. Se apossar e me despojar de preocupações mesquinhas. A cerveja, passa, nesses instantes, por purificação e se santifica. A vista, se fortalece e acha aquilo que se quer ver.

Que a poesia nos visite todos os dias. Que entre um numero, e outro, que entre um ônibus e uma porta existam olhos. Que entre um suspiro e outro salte um momento. Que entre um nascer do sol e o pôr, haja um lá, a música e o lugar. Que no inverno, as coisas sejam simples e um corpo se encontre com outro corpo. Que façamos das nossas aspirações mais banais, nossas orações mais densas. Que deixemos as palavras correrem com largas margens. Haverá erros, de concordância, de gênero, de madeira, de matéria, mas que não aconteçam os erros de vontade, de passo. Que o passo seja dado.

Friday, June 01, 2007

FALA DELORES,

Rafael Prosdocimi

Delores não perdoa mesmo...Aí deve ter uns 20 quilos de bosta, pensava Clóvis. Com uma grande pá, o encarregado dos animais, no circo “Los Irmanos”, catava os dejetos fecais da elefanta Delores. Clóvis não era exatamente inteligente, de fato era um dos sujeitos mais burros que o trapezista Rodolfo, que também não era dos mais espertos, conhecia. Sua maior qualidade era o carinho dispensado aos animais. Um mágico que passara no circo nos idos de 90, hoje aposentado, dizia que Clóvis tinha essa amabilidade com os animais por estar mais perto deles do que dos humanos. Talvez fosse exagero.

Ele, Clóvis, nascera no circo. Era filho de acrobatas mortos de maneira trágica. Ironia à parte, os trapezistas morreram quando o picadeiro caiu sobre suas cabeças. Restou Clóvis que, apesar de toda a tragédia familiar, nunca desistiu do circo. Persistia incansavelmente tentando encontrar seu dom perdido entre malabares e galhofas, sem sucesso. Por fim pensara levar jeito com os pratos. Achara que era um exímio lavador de pratos, mas de fato não era. Logo descobriu seu dom, no grande apreço que tinha pelos animais, e foi assim que ficou responsável pelo cuidado dos bichos do circo. Mas ele se sentia tão bem com os animais, que não satisfeito em dar-lhes de comer, desembestava a conversar muitas e muitas horas com os mesmos. Foi aí que, um dia, um dos donos do circo, seu Valente, pediu a Clóvis que parasse com aquilo, pois ele parecia biruta, foi o que disse na época. Depois disso Clóvis nunca mais dirigiu uma única palavra aos animais.

Pois no fatídico dia, enquanto retirava os tais 20 quilos de bosta da jaula de Delores, Clóvis ouviu a seguinte frase:

-Depois que terminar isso, troque a água por favor, ela está suja...

-Mas quem disse isso! Mais no pulo que na palavra- resmungou Clóvis.

-Ora, quem mais está aqui alem de nós dois. Sou eu mesma...A Delores quem fala...

-Mas, num pode não... bicho não fala não.

-Isso é o que você acha né...É verdade que quase fico muda, de tanto que não pratico. Se você tivesse me ensinado antes eu já falaria há muito tempo. Mas não, você não fez nada...Ficava o dia inteiro aí calado, é mesmo um ignorante.

-Não vou tolerar esse tipo de agressão, ainda mais levando em conta que meu tio é ventríloquo, quer dizer, era. Se ele ensinava boneco a falar imagina que maravilha não faria com uma elefanta. Então não venha com crueza, porque eu bem sei que tentei te ensinar a falar, mas fui proibido de continuar. Também me faltava a brilhanteza de titio, é bem verdade. Mas que eu tentei, eu tentei. Deixa as ignoranças pra lá Delores, e...

-Tentou, mas tentou pouco né, seu preguiçoso. Você me deixou aqui nessa solidão a mascar essas folhas secas, a tomar essa água suja...

-Olha, me desculpa aí, mas também não precisa esculachar...

-Não, agora é tarde. Nunca mais falarei com você ou com mais ninguém. Essa foi a primeira e última vez. Você me desapontou muito. Adeus.

O palhaço Perereca, que fazia hora extra, saiu por detrás da jaula a rir longamente. Clóvis chorava. Ainda gritou por Delores, implorou por sua palavra, tentou se explicar, mas o silêncio dela enchia seu coração de angustia. Em casa, Clóvis tentou se matar. Não conseguiu. E no amanhã restaria uma segunda feira.