“A política existe quando a ordem natural da dominação é interrompida pela instituição de uma parcela dos sem-parcela. Essa instituição é o todo da política enquanto forma especifica do vínculo. Ela define o comum da comunidade como uma comunidade política, quer dizer, dividida, baseada num dano que escapa à aritmética das trocas e das reparações. Fora dessa instituição, não há política. Há apenas ordem da dominação ou desordem da revolta.
É essa pura alternativa que um relato de Heródoto em forma de apólogo nos apresenta. Esse relato-apólogo exemplar é dedicado à revolta dos escravos dos citas. Os citas, diz ele, têm o hábito de vazar os olhos daqueles a quem escravizam, para melhor sumbmetê-los à sua tarefa servil, que é ordenhar o gado. Essa ordem normal das coisas viu-se perturbada por suas grandes expedições. Para conquistar o país dos medos, os guerreiros citas embrenharam-se na Ásia e lá ficaram retidos o prazo de uma geração. Enquanto isso, nascera uma geração de filhos de escravos, que cresceu com os olhos abertos. De seu olhar para o mundo, havia concluído que não tinham razões particulares para ser escravos, já que haviam nascido da mesma maneira que seus senhores distantes e com os mesmos atributos. Confirmados, pelas mulheres que ficaram em casa , nessa identidade de natureza , eles decidiram que, até prova em contrário, eram iguais aos guerreiros. Em conseqüência, cercaram o território com um grande fosso e armaram-se para esperar de pé firme a volta dos consquistadores. Quando estes retornaram , pensaram que facilmente esmagariam com suas lanças e arcos , essa revolta de vaqueiros. Mas o ataque foi um fracasso. Foi então que um guerreiro de bom conselho avaliou a situação e assim expôs a seus irmãos de armas:
“Sugiro que deixemos aqui nossas lanças e nossos arcos e que os enfrentemos empunhando os chicotes com que fustigamos nossos cavalos. Até agora, eles viam-nos com armas e imaginavam que eram nossos iguais e de igual berço. Mas quando nos virem com chicotes em vez de armas, saberão que são nossos escravos e, compreendendo isso, cederão”.
Assim foi feito, e com êxito: surpreendidos por esse espetáculo, os escravos fugiram sem lutar.”
(Jaques Rancière “O Desentendimento” p. 26-7)