Thursday, December 28, 2006

ARGUMENTO

A discussão entre o que diferencia “ciência de verdade”, mito, religião, pseudociência, ciências humanas, e o escambau, sempre me interessou profundamente. Ao longo de minha vida esse interesse ressurge e é declinado por razões, motivos e interesses diversos. Isso desde quando ainda sonhava em ser um físico charmoso de óculos, descobridor dos segredos finais do universo (assim como das mulheres). Lia Sagan convencido de que nunca haveria um dragão invisível, a-térmico e imaterial na minha garagem. E convencia-me de que saber da inexistência inexorável do tal dragão era importante e me protegia da farsa e da enganação. Havia o mito e a religião a serem combatidas. E a briga era essa. Ou se explicava o mundo de forma mítica ou de forma cientifica. Eu achava fantástico isso tudo e interessava-me por todos esses grandes divulgadores da ciência.

Na física não fui nem mesmo um sopro. A mudança pensada, ainda em tempo de colégio, para a psicologia procedeu-se em apenas 6 meses. Havia tanto fetiche em querer ser físico que sobrava pouco interesse em debruçar a vida inteira sobre dados insossos, vazios, elementares, buscando explicação da natureza das coisas. No meu narcisismo (palavra que aprenderia mais tarde) não conseguia me ver como um encadeamento de coisas que aconteceriam mesmo se eu não existisse. Havia um idealismo além da “minha” conta em achar que EU contribuiria para o progresso da ciência. Meu egoísmo, particularismo, imediatismo e holismo me impediram de seguir esse caminho; assim como minha preguiça mental, minha burrice, meu desânimo. Desistindo de estudar átomos, resolvi tornar-me um. Sem nem mesmo saber o que fazia entrei para o curso de psicologia, e de lá para a pesquisa social foi um pulo. O interesse cientifico na organização da sociedade aconteceu sem nem mesmo saber o que fazia. Uma paixão mesmo talvez. Portanto, desde o inicio do meu curso me dedico ao estudo de processos psicossociais, e me inscrevo dentre daqueles que trabalham com ciências humanas. Nunca fiz análise ou terapia, nem nunca trabalhei com isso. Leio Cyro dos Anjos e Rubem Braga convivendo e sofrendo com meus porões e suas coisas pobres e sujas. Minhas mentiras guardadas e a covardia dos gestos amarelados em lembranças.

Mas agora a ponta que retorna da eterna discussão é a relação entre as ciências humanas e as ciências naturais. Continuo debatendo isso principalmente com o Chico, com a feliz interlocução de um ou outro (Gabriela, Rodrigo, Thiago). E quando disse para umas amigas psicanalistas, que andava discutindo essas coisas com meus amigos “cientistas de verdade”, elas ainda me fizeram troça e perguntaram o que eu ainda queria com essa discussão, deixando claro que seria essa uma questão sem fim e sem ponto de discussão. Bom, elas não disseram nessas palavras, mas creio que era isso que queriam dizer. E aí parei para pensar no porquê de todo esse barulho. Afinal está tudo certo. Os cientistas naturais pensam que a gente faz filosofia, má literatura ou somos uns revolucionários frustrados; e nós pensamos que eles são uns alienados, escravos da linha de produção taylorista-fordista do pensamento, ou ainda que cansados de matar Deus (que já perdeu toda a graça) resolveram também matar o sujeito, o ser humano e proclamar a cegueira do relojoeiro, da máquina da vida ou da dança do universo, e porque não também da sociedade. A sociedade com leis naturais não dependeria nem de psicólogos ou sociólogos e sim de físicos, biólogos e matemáticos. Não concordo com nada disso. E pensando, portanto, no porquê de toda essa discussão, cheguei à conclusão que eu me embrenhava nessa briga menos para provar porque as ciências sociais são indispensáveis e fundamentais para o conhecimento humano, e mais para compreender melhor meu objeto de estudo. Também para combater a leva de cientistas naturais que cansados de suas perspectivas atomísticas e minimalistas se colocam a transpor de um nível do conhecimento para o outro em salto, sem pensar nas mediações e interações que diferenciam sociedade de individuo. Como alguns físicos que querem demonstrar a indissociável ligação entre as “novas” descobertas da mecânica quântica às questões da existência e experiência humana, assim como os psicólogos evolucionistas que querem explicar porque o homem “pula a cerca” unicamente devido ao maior ou menor investimento parental; ou mesmo quando Sr. Dawkins procura mostrar que as idéias pulam de cabeça em cabeça da mesma forma que os genes se propagam na natureza. Todas essas teorias toscamente esboçadas aqui, partem do principio de que descobertas num nível elementar, subatômico ou biológico se aplicam 1 a 1 ao ser humano e à sociedade. Como se as respostas as perguntas da sociedade fossem essas que eles querem nos dar. Nós queremos menos descobrir se há ou não um gene da homossexualidade e mais porque investimos tanto dinheiro e tempo em descobrir um gene da homossexualidade. Pensamos que a saúde da sociedade depende mais de nos havermos com o preconceito e a discriminação, do que com a determinação da homossexualidade. Que haja uma determinação genética é algo que não negamos ou rechaçamos como explicação causal. Compreendemos dentro de um feixe de considerações. Mas não é essa a pergunta que fazemos. Perguntamos porque o homossexual incomoda tanto a sociedade, os valores, a “ética”.

Penso que é porque o objeto de estudo das ciências humanas não se encontra, para os “cientistas de verdade”, claramente demonstrado que eles persistem na posição de considerar que há um substrato natural (no sentido de estrutura) que determinar formas de ser, e que a cultura (ou a sociedade) entra como algo de menor valor nessa equação. Fieis aos princípios da universalidade e da homogeneidade, resolvem o problema do particular, não como um problema, mas como uma exceção extirpada, ou como uma questão de resíduo estatístico.

Então o melhor motivo que tenho para continuar nessa discussão por mais que ela me canse por vezes, é a possibilidade de repensar, reconstruir o nosso objeto de estudo e demonstrá-lo de maneira mais clara. E no nosso caminho, sobressaltam diversos adversários. Não mais aqueles que se dividem em “cientistas” e “religiosos”. O que carece demonstrar é que o que estudamos (o fenômeno social) possui características que não podem ser reduzidos a elementos físico-quimico-biológicos. E é claro que nem míticos ou religiosos. Essa demonstração não deve, por outro lado, ter um caráter exclusivista e “corporativo” de que não há influência de elementos biológicos, físicos ou químicos. Uma mulher bonita continua sendo preterida (em maior parte dos lugares) a uma feia (por mais que pense que isso seja construído socialmente), e as drogas continuam a afetar o nosso corpo e seus receptores neuroquímicos.

O que reforçamos é o caráter de reflexividade e interação que constituem o ser humano, e que esse processo (interação e reflexividade) criam forma de determinação não previstas anteriormente ao próprio processo. Não previstas nem pela fisiologia, nem pela química, nem pela física. Nesse sentido as ciências humanas e sociais não podem prescindir do sentido (significado), nem da história tal qual as outras ciências fazem. Excluir o sentido da compreensão da sociedade é buscar compreender a sociedade como abstração. É ainda concluir que a sociedade é nada mais do que a soma das partes. Que compreendendo a parte se compreende o todo. Que a parte é constituída de maneira homogênea, dependendo portanto de uma constituição natural. O ser humano é natural, a sociedade é feita de seres naturais, logo a sociedade pode ser compreendida entendendo a natureza dos seres vivos. Essa resposta resolve algumas pedras no sapato no caminho do cientificismo: o antropocentrismo, o particularismo, a história, a contingência. É por isso que todos os dias rezo e agradeço a existência da antropologia. Haverá sempre uma tribo numa ilha de nome impronunciável no Pacifico a mudar nossa perspectiva.

Um átomo não representa o mundo. Uma criança sim, de que forma hoje e há 100 anos atrás cabe pesquisar e conhecer. Se a televisão mudou a linguagem das pessoas, a forma como elas interagem (ou então a Internet) não há como estabelecer apriori, sem se levar em conta como as pessoas reais reagiram à televisão ou a Internet. E obviamente vão se misturar, aos pesquisadores que querem de fato compreender como a Internet influenciou a linguagem das pessoas, outros pesquisadores que querem demonstrar como a Internet empobreceu a linguagem, e outros, bancados pelo GOOGLE, que querem deixar claro como a Internet facilitou o intercambio cultural e aumentou a solidariedade entre as pessoas. E o desafio que os “cientistas de verdade” nos fazem, nos leva a necessidade de demonstrar, por exemplo, nesse caso o que é ciência social e o que não é. O que é marketing e o que é ação política. Isso é uma das coisas que me fazem continuar a interessar por essa discussão. Precisamos compreender melhor nosso próprio objeto de pesquisa e suas relações com outros sistemas de ação humanos, arte, política, cultura, ciência. Mas não podemos como eles fazem simplesmente dizer, “olha isso aqui é ciência e ponto final, não tem nada de social não”. Não é possível, pois estamos emaranhados a sociedade e à política. E a pior forma de fazer ciência social é dizer que essa relação não existe. Não andamos nem mexemos com fatos ou coisas. A ciência social ao dizer e buscar compreender relações sociais cavalga pelo duplo caminho da ciência (no sentido de ampliação do conhecimentos) e da política (no sentido de interferir nas relações sociais).

Nesse sentido discutir com os “cientistas de verdade” continua ajudando. Eles têm a clareza do que estudam e dos processos que realizam. Afinal, as coisas continuam mais distinguíveis num laboratório. Eles não se preocupam em cada movimento, em cada instante, das conseqüências sociais e políticas dos seus atos. Eles podem blindar sua alienação com o ideal da ciência. Da busca da verdade. E a nossa alienação (dos cientistas humanos) é parte da nossa ciência. Quando vamos estudar os “pobres, feios e sujos”, carregamos nosso olhar e é ele primeiro que temos que compreender e analisar. Imaginem um físico pensando se estaria sendo preconceituoso em lidar com aquele glúon? Ou se a ação do fóton estaria sendo alterada pela minha roupa?

Nós, das ciências humanas, somos meros átomos, estudando átomos. E é isso que nos interessa, como os átomos interagem. O que determina ou não a ação de um átomo. Só que os átomos pensam, interagem e refletem. Não somos deuses olhando formigas. Somos formigas compreendendo a vida de formigas.

Wednesday, December 20, 2006

A tecnologia solidária à minha angústia

Estranho como a solidão vem ainda mais devastadora quando não posso digitar e colocar algo no meu blog. Um desabafo que seja. Sinto-me menos abandonado jogando em fios e cabos, de todos os tipos, mensagens como 1-0-0-0-0-1-1-1-1-0-1 que alguém vai traduzir como “solidão”... Estranhos tempos.

Sozinho, triste, escrevo algo e jogo na Internet sentindo-me bem, apenas pela simples idéia (que não precisa se materializar) de que alguém, em algum lugar vai se debruçar sobre o que senti e se afetar com isso...e só essa idéia me basta. Que isso seja covardia, não me importa. Mas que haja olhos (queria dizer ouvidos) atentos, sensíveis e solidários com a dor de um outro IP. É só isso que peço. E aí fica claro que a solidão é algo imaterial. É algo de saber que há uma menina (moça, mulher ou senhora) que num passado próximo, de vez em quando parava, lia minhas coisas e escrevia algo belo para mim, e depois se ia secreta e misteriosamente. E de vez em quando voltava e ficávamos brincando de esconde-esconde. Ela que eu suspeitava encontrar numa aula terça-feira, mas que podia ser também aquela da janela mais linda, com uma árvore, que nos protegia do odioso concreto armado, essa que ainda tinha um outro “Prosdocimo”, um irmão, a manter guarda e protegê-la na sua cozinha...

Ficou o mistério real. E restou esse sentimento de que eu poderia falar com todos, mas sabia que eles não me ouviriam, e então sabia também que ela sim, ela...ela em qualquer lugar do mundo sempre deixaria de fazer qualquer coisa importante que fosse, e me acharia no “fantástico mundo de blog”.

E nessas ultimas 15 linhas que passaram, já me sinto bem, compartilhando. Agradeço abertamente ao anonimato da Internet, à possibilidade sem culpa de sermos quem quisermos ser, de se falar o que se quiser falar, de se estar à vontade com suas próprias idéias e sentimentos. Não há dedos a apontar e cada um dá o que tem. E tem coisa ruim e coisa boa. Eu só me lembro das verdadeiras pessoas e de suas boas palavras.

Wednesday, December 06, 2006

FRASE DO DIA

"Um sujeito que gosta de ópera e não gosta de um samba de Cartola, da Estação Primeira do Morro de Mangueira, é um sujeito que não gosta propriamente de ópera, gosta apenas do Teatro Municipal." Rubem Braga

Monday, December 04, 2006

RIO DE JANO- "CADERNO DE VIAGENS" - (http://www.hybrazilfilmes.com/riodejano/)

Sunday, December 03, 2006

HONESTIDADE

Há uns dias falei de uma musica do Lulu Santos que fazia bastante sentido com a "minha vida" (não tenho orgulho disso, pelo amor de deus) e descobri hoje que a musica chama "minha vida".

Minha Vida

Lulu Santos

Quando eu era pequeno
Eu achava a vida chata
Como não devia ser
Os garotos da escola
Só a fim de jogar bola
E eu queria ir tocar guitarra na TV

Ai veio à adolescência
E pintou a diferença
Foi difícil de esquecer
A garota mais bonita
Também era a mais rica
Me fazia de escravo do seu bel prazer

Quando eu sair de casa
Minha mãe me disse:
Baby, você vai se arrepender
Pois o mundo lá fora
Num segundo te devora
Dito e feito
Mas eu não dei o braço a torcer

Hoje eu vendo sonhos
Ilusões de romance
Te toco, minha vida
Por um troco qualquer
É o que chamam de destino
E eu não vou lutar com isso
Que seja assim enquanto é

Pressentimento 2

Ai ardido peito quem irá entender o meu segredo. Quem irá entender o fruto secreto de minha mediocridade. Quem irá entender das escolhas que sempre deixei de fazer. Que o meu suposto desânimo pelas pessoas ao meu redor, meu discreto abandono, o que há de blasé em mim é só vontade de gente, desejo de encontro verdadeiro, de calor, de brilho...Que sempre fingi estar além das pessoas ao meu redor por estar sempre tão aquém. Desisti de tudo o que poderia não ter sido bom. Os culpados pelos meus fracassos serão os de sempre... Vejo um rapaz tocando um violão. E não sou eu. E eu que antes de tudo amo (conjugação do verbo amar) o violão. Afastei-me dele, por não encontrar o reconhecimento gratuito que sempre cobrei de meus pais. Minha maldição...O futebol que eu nunca quis jogar melhor e que poderia se assim desejasse. O texto que não quero melhorar. O violão que fingia timidez para ver se colava e deixavam-me quieto... e colava. Eu queria ser xingado, cobrado, mandado. Agora resta patetice e mulecagem.

Tenho que fazer aula de violão ...

Ou deveria fazer análise...

Fica assim:

O que for mais barato...

Friday, December 01, 2006

Musicas que valem o dia...

Pressentimento
(Elton Medeiros e Hermínio Bello de Carvalho)
ai ardido peito
quem irá entender o seu segredo
quem irá pousar em teu destino
e depois morrer de teu amor
ai mas quem virá
me pergunto a toda hora
e a resposta é o silêncio
que atravessa a madrugada
vem meu novo amor
vou deixar a casa aberta
já escuto os teus passos
procurando o meu abrigo
vem que o sol raiou
os jardins estão florindo
tudo faz pressentimento
que este é o tempo ansiado
de se ter felicidade

Wednesday, November 29, 2006

Trim..Trim...

Tenho esperado com amargura seu sinal de vida. Ela que agora viaja e disse que me ligaria “depois das 7 ou 8” ainda não ligou. Então revivo uma linda crônica de Rubem Braga, na qual ele faz uma ode as mulheres que esperam os maridos, esperam o marido voltar da boêmia. Eu espero com ouvido angustiado e atento a ligação de minha namorada que se encontra num outro país da América do Sul. E dói muito a cada tia que liga querendo falar com minha mãe, ou a cada colega de minha irmã que, perversamente, busca, mais uma vez, saber a matéria da prova. Ah... e o telefone abusa de sua essência demoníaca. Esperança e desalento revezam na minha guarita. A Internet, as vezes amiga, também nada me traz. Os dias que esperaria por uma carta, há coisa de 20 anos atrás, viram 13 minutos em tempo de Internet a cabo ligada 24 horas. A idéia de que a qualquer minuto ela ligará ou mandará um email preenche de esperança meu pobre peito. E me dano a sofrer vendo que ela ainda não ligou ou “se conectou”. Tentando ser romântico nos idos de cable modem continuo sofrendo e esperando.

Sunday, November 26, 2006

Quando estava em duvida sobre o vazio de minha vida,
ouvi uma canção do Lulu Santos,
enquanto esperava na fila do supermercado...
Vendo que eu me encontrava ali, naquela musica,
tive então certeza da mediocridade de minha vida.

Monday, November 13, 2006

Tomar parte na guerra ou pegar um papel principal na gaiola?

A nossa vida vai transcorrendo apesar e por causa da gente. É como se fôssemos vários cavalos correndo ao mesmo tempo, a disputar alguma coisa, que nunca sabemos o que seja (alguns fingem que sabem), e às vezes, a gente nos passa, depois passamos a gente mesmo... eu me passo, e depois tomo a dianteira e vai assim. O tal do Freud mandou bem quando falou que a consciência não era dona de sua casa. E eu que tenho medo (e preguiça) dos rituais e dos lugares sacrossantos, não vou aqui me meter com a psicanálise, até porque sou mesmo muito medíocre (e porque não profano) para falar disso. Não saberia dizer, mas vou roubar a citação dele para meus fins particulares. Isso de não ser dono da própria casa é interessante, ainda se pensar que nós somos diversos inquilinos de nós mesmos. Tem sempre alguma coisa nossa que escapa à buscada coerência. Há sempre eu que ainda joga Nintendo e vê os filmes do Van Damme às terças de tarde. E Van Damme nunca ficou muito bem com o Brahms, o Ranciére, ou o Nietzsche. E imagino a vergonha que devem ter passado vários militantes marxistas comunistas revolucionários, ao admirar e se extasiar com uma flor, esse símbolo máximo do ideal burguês. E algumas feministas perceberam que não adianta muito ter lido o segundo sexo, ocupar algum posto importante, se o sonho dourado do príncipe perfeito ainda bate à porta. Se o príncipe perfeito não troca a pelada de terça (a choppada de sexta, ou o sagrado futebol de domingo com os amigos) por nenhuma fralda suja da terra, e que se ela achar ruim continua apanhando e vai ser mal-tratada do ônibus até a delegacia, onde se convencerá que o marido bateu nela por culpa dela mesmo.
E foi matutando sobre isso, de consciência e existência, que um eu, que vinha pelas beiradas, encontrou-me no sábado acompanhado de uma cerveja e de um rock. Fiquei dos 12 anos de idade, até os não posso falar quais, ouvindo roquenrol sozinho, numa sala escura, passando com naturalidade de Oasis a Jethro Tull, entremeado por Led, Beatles, Stones...Ouvindo o rock mais óbvio, enquanto outros jovens se esfregavam em mulheres (meninas)... enquanto havia moças passando lá fora, com os braços livres e soltos, eu ficava dentro de casa, e nem havia aí o Braga para me consolar e me explicar que isso é muito comum. Essa experiência sonora (e existencial) levou à composição do meu tipo e de minhas neuroses, como a de inventar inveja boba de meninos de 13 anos que estão “dandos uns amassos” na menina feia de 11, na outra esquina do Colégio. O que percebo é que tem gente que se esfrega da mesma forma como fazia nos seus 12 anos, e que consciência e existência, pensamento e ação, são dialéticos até mesmo nessa hora. Eu que defendo o abstrato acabo também defendendo o concreto e me perdendo frente a um ortodoxo purista. Ou a um Sócrates sacaninha. Mas a tal dialética, palavra que abre todas as portas nas ciências humanas, acaba salvando. Há necessidade de se afastar, em alguns momentos, para depois voltar à ação. Práxis.
E o eu que vinha morando num bairro de classe alta, de uma pequena metrópole brasileira, acabava encontrando comigo que vinha sendo marxista em tempo errado, socialista, democrata radical e o escambau. Mas o adolescente que ouvia musica (certo seria dizer canção) como quem ouve poesia, ao escutar certa vez, num rock, a pergunta, a pergunta fatal... se ele trocaria a caminhada em parte da guerra por um papel principal numa gaiola... ficou parado pensando... E é uma pergunta essencial, tipo quebra-cabeça de 1000 peças, boa para pessoas de 8 a 80 anos. Eu agora ouve Paulo César Pinheiro, lê Cyro dos Anjos, bebe, tem trocas corporais, não fuma, sua, é coabitado por outros hábitos burgueses, indigna-se com a dominação por toda a vida social da forma capitalista liberal de ver a vida (a que, entre tantos outros postulados, diz que você deve extrair o máximo gozo da mulher, ou do parceiro, e trabalhar o mínimo possível para isso), também pensa o que é política, esboça alguma participação, critica muito, discute com os amigos por email, mas permanece fiel a Rubem Braga, nutrindo especial preguiça pelos beats e a sua América selvagem. E o cavalo parou naquela pergunta fundamental que ficou escondida....Tomar parte na guerra ou continuar liderando a vida na sua gaiola? Será que não dá pra convencer as paredes do quarto e simplesmente dormir tranquilo? Mas a existência continua a mesma, a vida continua besta, o almoço continua sendo servido e os pratos lavados por mãos negras. E o carro continua naturalmente parado ali na garagem. As pessoas continuam dormindo na rua, e continuamos a falar do frio de rachar sem conectivos entre essas duas ultima expressões...E a existência continua dependendo dos nossos movimentos e não das nossas perguntas que continuam sendo essenciais para saber se tomar prozac ou não. A gasolina aumentou muito, a cerveja, o arroz, o feijão, mas é o preço da coca-cola que assusta. E tomar parte na guerra na casa da sagrada mãe é sempre muito fácil. A toda hora se pede “altas” e pára a brincadeira como qualquer “carta-branca” dos jogos infantis. A consciência revela a necessidade do salto na existência. Não o performático, mas o real. O salto no mundo. Tomar parte da guerra não é uma escolha simplesmente. É a escolha.

Friday, November 10, 2006

A GENTE NÃO QUER SÓ COMIDA. REVISITADO

Na noite do ultimo sábado, dia 25 de março, vosso estimado repórter da vida passeava de carro pela cidade de Belo Horizonte. Passeava acompanhado de minha distinta e mui formosa senhorita, da irmã dela e do namorado desta. A vida se encontrava livre de aborrecimentos, além daquele proveniente de uma chuva fina. Uma chuva de março como diria um meteorologista bossanova. Tudo soava belo e tranqüilo, e mesmo com a chuva, diria até que aquele fora um dia bonito. Estávamos passeando em companhia alegre e bem humorada, indo a caminho de lugar nenhum, sem pressa ou preocupação. O carro nos proporcionava conforto, quase tédio, esta maravilha da natureza. E nesse carro havia o controle da temperatura ambiental, o ar condicionado garantia um frio bastante aconchegante. Sentia-me um europeu. Avançávamos pelas ruas, sem pensar na vida lá fora. Os carros com ar condicionado parecem nos dizer: “A temperatura do ambiente pode ser controlada”. Mas no fundo, eles nos dizem: “Podem se afastar do mundo, e seguir, como uma célula à parte da vida, independentes do que acontece lá fora”. Eles nos dizem que podemos nos afastar desse mundo daqui debaixo (do mundo real) e fingir que estamos apenas de passagem, o próprio “sueco em trânsito”, de Rubem Braga. Parados num sinal, aproximou-se de nós um menino que, em outro veículo de informação, seria definido como um “menor”.
E nós naquela incrível célula auto-suficiente, nos vimos frente a frente com o mundo, isso porque os vidros, infelizmente, ainda permitem duplo contato visual. E a criança colou seu rosto feio e sujo, no meu vidro, e eu que havia lido na semana passada o psicólogo social, George Herbert Mead, tive que estabelecer um contato intersubjetivo com aquela criança (que ali representava o mundo inteiro). Minha senhorita, ocupada em dirigir seu carro, disse que havia uns biscoitos no carro, e me pediu para pegá-los no porta luvas e dar para o menino. Enquanto abria o vidro, procurava os tais biscoitos no porta luvas, mas não os encontrava. Pedi para a criança esperar um pouco e, enquanto ela esperava e olhava pra dentro do carro, eu continuava procurando, revirando a enorme pilha de cds de dentro do porta-luva.
O menininho, sem me avisar nada, (qualquer coisa, que possibilitaria então uma resposta mais bonita de minha pessoa, e que talvez entrasse até no capítulo 7 de minha autobiografia) falou assim simplesmente: “Me dá um CD...?”
E eu que procurava lhe dar comida não entendi que ele também queria diversão e arte.
Ah... criança que perigo pode ser você com aquele disco da Nina Simone. Não faça isso, continue, por favor, a comer biscoitos. Lembrei-me que o Sergio Porto certa vez encontrou com o Cartola lavando carros, quando de fato o Cartola, já era Cartola. Quando foi confrontado com aquilo que para Serio Porto, seria um paradoxo, um artista daquele estatuto lavando um carro, o músico respondeu ao humorista que ele também precisava comer. Porto pegou o Cartola e naquele mesmo momento o levou para gravar um disco.
Seria aquela criança um cartola, e eu um mau Sérgio Porto?
Na verdade eu acabei dando o biscoito para a criança, até porque, de boca cheia ela ficaria calada.

Thursday, October 26, 2006

VIVEM SEM MARIANA É IMPÓSSÍVEL.


Rubem Braga

Foi o timbre de uma voz, entre tantas. Voltei devagar a cabeça enquanto o amigo me falava, e procurei, sem saber porque, localizar a dona daquela voz. Mas o amigo contava uma coisa interessante, e minha atenção voltava para ele. Só, alguns instantes depois, ouvindo , entre vozes de homem, uma risada clara de mulher, é que um nome me cruzou a cabeça como um relâmpago e me ergui da cadeira: Mariana!
Ela hesitou um instante, e quando meu nome saiu de sua boca nós já estávamos de pé, e abraçados. Pobre é a vida de um homem; mas é estranho como ele desperdiça riquezas, e nem se lembra mais. Se passados tantos anos, eu tivesse ido encontrá-la sabendo que iria vê-la, e ela também esperasse me rever, talvez não houvesse essa explosão de carinho tão intensa, que parecíamos , entre os outros que nos olhavam surpresos, dois amantes que tivessem passado anos ansiando um pelo outro, e se buscando em vão. Não sei se ela sentiu, depois daquela efusão tão grande, a mesma estranheza que eu- se lhe acudiu subitamente a idéia de que antes não éramos tão amigos assim, e não achou estranha a imensa alegria do encontro. Nesse acaso dos encontros do mundo, que mistério é esse que faz se verem frias duas pessoas que se deixaram com muito carinho, e torna contrafeitos amigos de infância, mas também dá esse choque de prazer em velhos conhecidos escassamente cordiais? Ela estava bonita, talvez mais bonita que antes, mais dona de sua beleza. Há adolescentes e até moças que parecem não ser donas de suas próprias pernas, ou cujos olhos parecem um acaso, ou são inconscientes de seus ombros. Nelas a beleza parece um acidente, a que são no fundo, estranhas; aconteceram-lhe aqueles ombros. Sabem apenas que são bonitas, mas não tomaram posse de si mesmas, são um fato demasiado recente e ainda instável, como um pássaro que se balança em um galho florido. Nessa mulher madura, a beleza está morando, a beleza não é um acidente fortuito, é sua maneira de ser.
Ela conta suas histórias, eu conto as minhas, mas toda essa multidão de pessoas e fatos que houve durante esse tempo em que não nos vimos tem apenas um sentido vago. Como se agente entrasse num cinema para ver um filme qualquer e saísse, e então aquelas peripécias de amarguras e alegrias que iam nos interessando, de minuto a minuto, perdessem todo o sentido, nós dois tornando à rua da realidade. A realidade somos nós dois, amigos felizes de nos encontrarmos. E seu movimento de cabeça, o gesto de sua mão ao segurar a minha que lhe apresenta fogo para o cigarro, o timbre de sua voz longamente extraviado, mas nunca perdida em minha lembrança- tudo é um belo reino que de repente recuperei. Somo subitamente ricos um do outro, e conscientes dessa riqueza afetiva, com uma extraordinária pureza.
Quando saímos, e me atraso um momento, e a vejo assim de corpo inteiro, andando firme e suave na sua beleza, sigo-a um pouco mais devagar, para durante mais um instante ter o prazer de revê-la dos pés à cabeça, antes de lhe segurar o braço de velha amiga e lhe dizer, com uma franqueza instantânea que a fez rir: “Mariana, eu acho impossível uma pessoa viver sem você.” Ela ri e agradece – pois já estamos na idade de poder dizer e ouvir, sem ilusões, as mais simples, e belas e graves tolices.”
Agosto, 1989

Monday, October 23, 2006

QUANTO SOFRE UM ROMÂNTICO POR AMAR UMA MULHER DE VERDADE

Para fins de consenso, definiria um romântico com alguém que vê no amado, ou amada, o destino final de todo sentimento que há na vida. Como se a pessoa que se ama, fosse sua desde os momentos iniciais da existência, e tudo o que aconteceu desde a sua formação embrionária, dos tropeços infantis até as transadas juvenis, fossem meros ricocheteios, tipo fliperama, para que o amor chegasse, enfim, a você: o destino final. E agora fossem ambos começar a viver de verdade. E é isso, por mais que não seja.

Nesse sentido o relacionamento só existe entre dois, e todas as outras pessoas são paredes. Por isso dizia Hannah Arendt que o amor não é só apolítico, mas anti-politico. Pois quando se ama uma pessoa, destina-se todos os afetos e vontades a essa pessoa, esquecendo-se do mundo. Amar, para nós românticos, é ter na pessoa amada o único porto possível na vida, e sentir que se é também esse único lugar de aconchego. Sempre tive ódio das mulheres que se colocam a disputar homens como se fossem esses cavalos. Machos e fêmeas me inspiram tédio e preguiça. Como diria o Tom Jobim, sacanagem mesmo é amar. O amor é platônico, e encontra nas carnes e córneas materialidade, esbarrão possível frente ao inenunciável.

Por isso a ilusão é tão necessária. Ela acomoda o que a gente sente e não consegue dizer. A idéia de princesas e príncipes. E a ilusão é achar que esses dois últimos parágrafos fazem algum sentido. O melhor, para quebrar a ilusão, é colocar nos colchetes da vida variáveis várias, diversas incógnitas, e proceder com equações do tipo 3x=y, ou 2z= w/7...Ou seja enunciar que houve mais vida nos anos anteriores, e que na função amor de tal menina, você agora desempenha papel de variável tal, sempre passível de substituição e comparação com uma outra variável dessa mesma função. Isso sem dizer das comparações torpes, tipo tamanho de coisas. E o além pior são as quantificações. Tipo quantas variáveis passaram pela sua cama? Como entender que 1 mulher vale às vezes todas as outras, ou simplesmente não valem nada frente a você? E então procedimenta-se o desencanto. E, as vezes, uma palavra basta para romper esses castelos de areia, frágeis e fundamentais para se ir levando. E a ilusão, veja bem, é só aparência mesmo, mas a essência tem que ser real. O amor existe, independe da ilusão. A ilusão é o mal que persegue os românticos, ou os religiosos falsamente convertidos em pessoas céticas e racionais. O romantismo é a parcela de encanto que devolvemos ao mundo. E a ilusão sadia é essa acompanhada do amor real. Peço a ilusão por ser um romântico, e não por amar simplesmente. Frente a dois olhos não suportaria nunca uma leve comparação. Não as faço.

Cada mulher carrega em si as marcas dos gozos mais difíceis e cruéis; carregam nos contornos do corpo o abandono corrente, a mordida que dilacerou não apenas matéria; carregam todo o sofrimento do encontro e mais ainda do desencontro. E isso se apreende de ver e olhar. Não é necessário dizer. Essas aulas são dadas em silêncio.

Chamem-me de moralista, inseguro, iludido, medroso, frágil. Mas preciso de encanto. Preciso de pão e não de carboidrato. Nada pior do que evocar um “y” quando se está nua com o “x” a lhe admirar o traço dos seios. Amar uma mulher real dói muito às vezes. A mulher real tem passado e não acredita nos meus belos primeiros parágrafos. Preciso da ilusão, preciso ver nos olhos só o eu refletido, e ver no “eu”, o tudo. Se a mulher não consegue me manter nesse lugar, o amor se torna algo doloroso. Aí surgem os fantasma da duvida, a preocupação das performances, as questões materiais que afastam sempre o supremo gozo. Surgem os outros, surgem adversários quando estes não fazem o menor sentido...a traição mesmo sempre começa antes...

Sofri um bocado quando ela perguntou “Com quantos variáveis você já enfrentou a função sexo?”. Não pela vergonha da resposta (não a tenho) ou algo do gênero, mas o de pensar o porquê dessa pergunta? O que ela quer saber com isso? Bom, se isso aqui é sexo, isso já não é mais nada para mim. A função sexo entrou na minha vida pouquíssimas vezes. E ela se diferencia da outra função, amor, pelo sono que se tira depois do ato, ao lado da mulher; pela leveza do pensamento; pela vontade ingênua de ver nessa mulher deitada, a mãe dos meus filhos. Sexo implica em pensar que horas ela vai embora, e mais, “porque ainda não foi”. Sem querer dar uma de Jabor, sexo se define pelo ato, mas amor explode e se espalha por todos os entornos e tonalidades que a vida subitamente adquire.

Fica a ilusão. A necessidade de ver na mulher que me ama a fatalidade desse ser. Sem hipocrisia. Sem mentira. Eu preciso da ilusão, e sei disso. Mas a cada dia que passa é difícil mantê-la. Há muito pragmatismo ao redor. Logo as pessoas vão jogar no Excel as transas e as performances, tal qual as estatísticas dos jogos de futebol.

Bem sei que sexo é bom sim. Mas a ilusão da eternidade, isso... é outra dimensão. E é lá que quero estar. Que me perdoe a minha parcela materialista.

Tuesday, October 10, 2006

“Infelizmente não temos trilhões...”

RAFAEL PROSDOCIMI
Imagino que tenha sido isso que passou pela cabeça de Alckmin e Lula nos momentos anteriores ao debate. Devem ter colocado todos os seus acessores a pesquisar se não haveria, por acaso, algum lugar no qual poderiam enfiar a tal magnética cifra. Já se imaginavam, aqueles gestos de um mau teatro, aguardando o momento certo para então dizer: “3 Tri..Lhões de reais de blábláblá”.
Infelizmente parece que era apenas com isso que se preocupavam os candidatos (além é claro de jogar lama um no outro). Preocupavam-se apenas com números altos, que no início até agradam mas em determinado momento acabam nos anestesiando e perdem qualquer sentido. E então se comete o absurdo, como Alckmin, que em determinado momento comparou 9% com 700 milhões... mas 9% do quê, e de quanto ora bolas? Como comparar 9% com 700 milhões?

Fico triste porque os números saem das bocas dos candidatos, “Bi..Lhões”... “Mi...Lhões”..., disso daquilo, sendo que entre a fala de um e a “suposta resposta” do outro, pipocam números mais desafiantes. Mas o que realmente esses números significam, qual a relação deles com a proposta que ambos teriam para o Brasil (o que deveria ser o mais importante), isso eles não dizem. E o pior é que quando a fala passa de um para o outro, ambos se contradizem, um diz que o outro mente, e ...fica por isso mesmo. Você resta aí, sentado no sofá, com grandes números suspensos no ar. Parece que os candidatos jogam números ao léu, à cata de espectadores que se identifiquem intimamente com eles (com os números). Isso satisfaz o pequeno contador que existe na cabeça de cada um (deve ser o que pensam). E com isso vão-se comparações esdrúxulas, argumentos antagônicos que se “desdobram como cartas de baralho”, simples e fáceis (apesar de opostos) quando o que falam deveria representar questões políticas fundamentais, projetos coletivos, encarnações de algo para alguéns. Bem, se há duas representações sobre o mesmo fenômeno, sendo que são contraditórias, que sejam então analisadas e dissecadas. Isso se alguém ali acredita em realidade. Ou será que eles só acreditam mesmo em estatística?

Acho estranho que um comentarista, após o debate, disse que foi um bom debate, felizmente após essa infeliz colocação, o jornalista se redimiu, e colocou os critérios adotados em seu julgamento, para dizer: “Foi um bom debate do ponto de vista televisivo”. Sem dúvida, fosse o Faustão x Ratinho, não teria sido melhor, nem mais televisivo. Um debate no qual os adversários destrincham golpes no ar, golpes que não encontram o coração do inimigo, porque ficam a cortar o ar, o abstrato, o nada. Ambos apenas ficaram esperando escorregões aleatórios e gratuitos do adversário.
E quando Alckmin pergunta sobre a política externa, a questão do gás da Bolívia, e então Lula, dá uma resposta fundamentalmente democrática (e não mera máscara de capitalista querendo entrar em baile de carnaval) de que o país não vai invadir, acabar com a Bolívia, que esse não é o jeito dele, que as coisas são conversadas, que esse é o jeito dele fazer política. E coloca as coisas nos seus termos. E isso não significa que nada deve ser feito pelo direito da Petrobrás em ter seus investimentos garantidos. O que o Lula diz nessa hora, é o seguinte : “sabe esse jogo aí, esse que vocês estão fazendo, não é esse o meu jogo”. E isso é que é política, recriar as regras do jogo. Repetir o mesmo é sintoma, doença e não política. Acho estranho, portanto, que Lula siga a lógica de jogar números no debate. Deveria, isso sim, destrinchar qualquer desses números. Mostrar que de fato no seu governo o Brasil exportou mais, empregou mais gente, diminuiu a pobreza e “desenvolveu” o país.
Não entendi também porque não explorar o que está envolto na facção criminosa mais organizada que vimos agir no Brasil nos últimos anos, coincidentemente no estado de São Paulo, coincidentemente o estado mais rico do país, e coincidentemente o estado de Alckmin. E ele compara isso à violência nas outras capitais. Violência é uma coisa, crime organizado, com a força que o PCC mostrou é outra. Pois o PCC implica em relação com o estado, já que esse era o alvo das ações, prédios e agente públicos. Particularidades do PCC que mereciam um trabalho mais aprofundado. Mészaros diz que: “Quando os conflitos já não podem ser ocultados, são tratados meramente como efeitos divorciados de suas causas”, pois há de se mostrar as causas do surgimento dessa facção. Como ela age, como ela constrói laços de solidariedade, como ela se aproveita da ausência do estado, de uma situação social absurda e ali, vai costurando relações de lealdade e solidariedade (mesmo que perversas) e amarrando os sujeitos. Lula deveria abordar essas questões. Ou apenas aprofundar em qualquer uma. A retórica e a necessidade da média (e da mídia), fazem Alckmin construir um discurso que tem que colocar coisas antagônicas no mesmo balaio, tenha que escolher cara e coroa ao mesmo tempo, e isso não é possível. Por trás do discurso deveria Lula descascar a realidade envolta na proposta de governo de Alckmin, que é trabalhar muito para construir mecanismos que permitam ao mercado funcionar adequadamente. A inclusão por “via mercado”, é a mentira mais suja da história, pois o mercado se assenta sobre a desigualdade, a necessidade da desigualdade, e portanto da exclusão...
O que me entristece, ao final, é que tudo parece teatro, depois as pessoas batem palma, e parece que é isso mesmo. E não é. E isso não aparece, essa farsa generalizada, isso sim um grande desrespeito. Coisas são ditas aleatórias, no velho e bom, ao gosto do freguês. E eu não sou freguês, nem empregado, nem amigo, nem companheiro.

Tuesday, October 03, 2006

MEUS SATÉLITES

Algumas frases musicais adquirem tanta beleza, sem explicação, que ficam me orbitando e produzindo sensações que não se explicam nos em-sis. Fica a frase rondando nas minhas horas, buscando um sentido escondido entre o décimo-terceiro e o décimo-quarto minuto das 9 horas. Não sei explicar, nem entender, dessas frases que só tem em comum o fato de se repetirem em minha mente muitas vezes, produzindo sempre o mesmo efeito (beleza bem vagabunda), até que então passa. Representam a abertura ao mundo que a poesia, a sempre nossa poesia apropriada, arte produz. “Ela não sabe/ Quanta Tristeza/ Cabe numa solidão...”. E a frase é só isso mesmo. Mas, já adianto, só faz sentido com a música.
Já foram outras frases, outros sentidos, outros setembros. Mas foram sempre essas coisas. “Que prazer tem bater se ela não vai ouvir, que prazer tem sorrir se ela não vai sorrir também”. “Foi como tudo na vida que o tempo desfaz, quando menos se quer, uma desilusão assim faz a gente perder a fé, e ninguém é feliz viu, se o amor não lhe quer, mas enfim...”. “Convence as paredes do quarto e dorme tranqüilo sabendo no fundo do peito que não era nada daquilo”. “Acontece que já não sei mais amar, vais chorar, vais sofrer e você não merece, mas isso acontece...”. “Passado é um pé no chão e um sabiá, presente é a porta aberta, e o futuro é o que virá”. E mesmo a já famigerada, “você me ligou naquela tarde vazia e me valeu o dia”. São frases a toa que não encontrarão espaço orbital em nenhuma outra alma além da minha. E isso me deixa feliz. Saber que um sujeito olhou pra noite, fumou um cigarro, tomou uma dose de uísque, e terminou uma música, com a frase: “Ela não sabe/ quanta tristeza/ cabe numa solidão.” Dizer que foi Vinicius que escreveu isso seria recorrer ao óbvio. Quantas palavras bastam para um sujeito assinar sua vida no mundo?
Essas frases musicais dizem –me todas as coisas além daquelas que seus autores nunca pensaram. Como situar esse “mas enfim...” para ver se você entende aqui o que falo. As frases que orbitam dizem tanto da gente, e dizem tanto também do que a gente quer dizer da gente, que é melhor calar.

Friday, September 15, 2006

RUA DA BAHIA

PAULO MENDES CAMPOS
A vida é esta, descer Bahia e subir Floresta. Quem não morou em Belo Horizonte, ao ouvir o mineiro suspirar num momento de cansaço e bobice – a vida é esta. Descer Bahia e subir Floresta – não há de entender, perdendo-se em noções de selva e Estado. Nada disso. A vida é descer a rua da Bahia, que tinha dois ou três quarteirões de cidade grande, de prazer; depois que se atravessava o estirão da avenida Afonso Pena, a Rua da Bahia caía em declive desagradável para o vale das estações de estrada de ferro, ficava desolada, comprida e estéril, acabando por subir sem fôlego e sem esperança o bairro da Floresta. Era a vida.
Mas a Rua da Bahia, com seus dois quarteirões comerciais, era a rua. Sem a vastidão da Avenida, onde a alma provinciana ainda não se acomodava, contentando-se de admirá-la, a Rua da Bahia era naquele trecho o lado feérico dos habitantes, a fantasia, a inquietação. Quem desejasse um cigarro de fumo fresco ou a extravagância dum charuto, ia pra lá. Quem desejasse um bilhete de loteria- você ainda era criança e Giacomo já vendia sortes grandes- ia pra lá. Quem sentisse um súbito desejo de sorvete, uma tentação de chope, um alvoroço de empadinha quente, um arrepio de moça bonita, um abismo de mulher casada, uma nostalgia de livro francês, ia tudo pra lá. Todos iam para a Rua da Bahia. Todos a subiam ou desciam, disfarçando a ansiedade, na esperança dum olhar, um encontro, uma aventura, um pecado, o mundo. Pois pela Rua da Bahia desfilava o tédio de Belo Horizonte, mas só o tédio que ainda reagia, o tédio vital de Madame Bovary, o tédio que aguarda o toque de anjo capaz de transformar esta fade et morne existence em deslumbramento e delícia. Desconfio que raras vezes o anjo deu o ar de sua graça na Rua da Bahia a fim de arrebatar uma alma e leva-la numa euforia de esquinas celestiais. A mim, pelo menos o anjo quando muito me serviu umas vagas promessas de felicidade, trocadas pouco depois por alguns cálices de Madeira R, uma empadinha de camarão, outra de palmito.
Mas, como todo mundo enquanto vivi, nunca deixei de percorrer a Rua da Bahia, única rua de Belo Horizonte que dava a impressão de poder conduzir-nos para fora do espaço moral de Belo Horizonte – uma chateação colante e quase indolor naqueles tempos. Contam mesmo a história patética dum repórter maduro que, fechado o jornal, subia devagar a Rua da Bahia, seus passos ocos ressoando no silencio espetacular de Minas Gerais , seus olhos de dromedário espreitando as casas todas, na esperança de que uma janela se abrisse e uma senhora deslumbrante o convidasse para entrar. Pois durante anos a fio as janelas da Rua da Bahia permaneceram herméticas como a virtude. No cemitério do Bonfim o jornalista repousa de suas andanças. A vida é esta.
Mas tinha uma coisa na Rua da Bahia diferente e indescritível. Essa reluz na minha memória com as mil perturbações do mistério. É a Suíça. Ficava do lado direito de quem desce, depois do Trianon e antes do café Brasil. Era uma loja pequenina de balas, bombons, chocolate. Tudo ali (falha-me o advérbio) era sacrossantemente limpo. Era o asseio do asseio. A inocência materializada numa loja de doces. A castidade da matéria. Menino turvo, não reconhecia a limpidez, a inocência, a castidade. Sendo assim, que fazer para comprar um bombom? Eu parava na porta intimidado. Depois violentava meu sentimento de culpa e pisava com meus sapatos sujos os ladrilhos imaculados do Suíça. Se não tivesse me carregado força para dentro, que teria sido de mim? Teria sem dúvida ficado à porta da limpeza que disfarça e suaviza a brutalidade do prazer.
Como me fascinava a Suíça com vidros nítidos, as madeiras lustrosas, os ladrilhos encerados, o aroma que só podia ser o da candura! Como eu me contrastava atropeladamente com a linguagem daqueles objetos purificados! Transpunha aquelas portas como o pecador entra no paraíso: confuso, humilhado, mas impelido pela certeza de que todos nós buscamos o céu em tudo.
As proprietárias eram duas senhoras gordas suíças, duas ou três, ainda mais limpas do que a própria casa, gordas, coradas, os olhos dum azul filtrado pelos séculos. Os cabelos, esses eram duma alvura que só existia em bonecas...suíças.
E eu lá. Diante das duas, ou três, senhoras de idade mais iluminadas que jamais encontrei. Não digo espiritualmente, porque disso nada entendia, mas que aquelas bonecas maduras eram materialmente iluminadas, vestidas duma carne que já nos faz pensar na leveza da alma. E eu lá. Com a minha carne carne, complicada de gânglios e glândulas, entranhas, artérias latejantes, instintos sombrios, joelhos escalavrados, vigoroso e triste. Saúde eu tinha, mas era um menino contagiado pela própria força que os outros bloqueavam. Por isso mesmo vivia subindo e descendo a Rua da Bahia.

Tuesday, August 08, 2006

Caderno Velho

Aqui finjo que estudo, finjo que sei...
Lá finjo que me interesso
A toda hora finjo que vivo.

Mas sei que não vivo

Simplesmente vejo as senhoras passarem
segurando seus meninutos

Eles passam

E eu finjo que não os vejo
18 anos de nada
Vejo o que seria importante na minha vida
sumir na frente de meus olhos
Finjo que elas somem
Mas sei que sou eu a desaparecê-las

data: um dia de 2001

Saturday, July 01, 2006

Parabéns Zidane!

Tivesse eu um jornal e fosse um francês, estamparia na manchete de amanhã, a seguinte frase: “O APOSENTADO QUE SALVOU O DIA”. Parabéns pro Zidane, que salvou a França e afundou o Brasil nisso de terrível que tem a derrota, aliada ao mito da freguesia.

Essa copa dominada pelo espírito empresarial, essa copa planilha do Excel, chata, programada, teve hoje um momento de redenção. O Brasil sem dúvida aquela seleção com maiores possibilidade de “se-então” de todas as outras, foi eliminada. Os táticos (outro nome dos administradores de empresas e economistas infiltrados no meio futebolístico) acabaram com o futebol, o reduziram a números, e lucros, devidamente organizados, e colocados no jogo...Sendo que entre uma propaganda e outra passam-se os primeiros e segundos tempos. Mas isso não é novo e ficar falando disso é sempre muito chato. O que cansa são aqueles que pensam ser realmente isso futebol. Dêem-lhes um vídeo da seleção do Brasil de 1982, e se ao final disserem. “O que adianta isso tudo, se eles perderam a Copa?”. Carimbe: “Medíocre” na testa dos imbecis e continue sonhando, aparentemente, sozinho, por favor.

Salva-se, então, o aposentado, este que só interessa quando incomoda, seja pedindo dinheiro ou depois, quando morre e, apodrecendo, começa a feder. Quem salvou o dia foi o Zidane, que muitos diziam ser seu último jogo... Foi sim o do Parreira, e de uma série de jogadores tais como Cafu, Roberto Carlos, Ronaldo... Talvez o penúltimo ou o antepenúltimo, do craque francês, quem sabe? O aposentado, o inválido, o que não dará mais lucros, evoca a beleza e a maestria. O melhor em campo, deslizando, é quem arrasa com esse “Futebol Cálculo I”, esse que é medíocre na acepção máxima da palavra. Deixaram o velho em campo sozinho, e como um rei, que tem ali o último momento de reinado, fez ele, naquele campo, sua batalha gloriosa. Quem achou que um mestre deixaria o seu ultimo momento de brilho, no torneio mais importante da vida, esse que fala para o futuro “Há sim uma Humanidade”, passar em vão, desrespeitou esse valor único da vida! A HONRA. Merece sim a morte. E teve.

Zidane, que já havia salvado uma noite, há dois anos atrás do meu sono medíocre e sem sono, enterra agora o sonho gratuito dos brasileiros: Ganhar a copa mais uma vez. É hora de achar culpados (serão eles os de sempre?), glorioso ficaria eu se culpassem os torcedores pessimistas por essa derrota. Culparão o técnico e o craque em potencial do time. É a resposta medíocre para a pergunta errada, desses sem imaginação.

Thursday, June 15, 2006

BLABLABLAS CINEMATOGRÁFICOS II

O dilema de Amy

“Procura-se Amy” é um desses filmes que vira referência oficial de boas conversas de boteco que tenham como tema, relacionamentos, amores perdidos, sexo. Boas conversas sobre relacionamentos geram uma obrigatoriedade de se falar do filme. A história do amor da vida inteira, perdido, metades de laranja separadas, eternamente, por causa de um detalhe da vida sexual passada de uma das partes da fruta cítrica, é algo que voltará sempre a pauta do dia. Principalmente enquanto as mulheres tiverem um passado. Ou o homem querer saber desse passado. A verdade é que o dilema de Amy, acomete todos, homens e mulheres, que subitamente se descobrem preconceituosos, frágeis e hipócritas. De uma só vez.
No filme o personagem de Ben Afleck, apaixona-se por uma mulher, mas logo descobre que ela é lésbica. Eles viram amigos, mas ele sempre se mantém apaixonado por ela, e numa dessa indas e vindas, ele acaba realizando o sonho máximo da masculinidade compulsória narcísica operante na modernidade tardia: Fazer uma lésbica se apaixonar por você. E vão vivendo o amor do jeito que dá. E eles passeiam no parque rindo de sabe-se-lá-o-quê.
Mas um dia, o melhor amigo do Homem (que não é o cão), conta pra ele, que sua namorada havia feito sexo com dois homens quando esta estava no colégio. O apaixonado personagem principal tenta, nega e finge que isso não tem importância. Mas isso o cerca por todos os lados. Ele num misto de ingenuidade e medo, joga indiretas pra cima dela, e logo descobre o que não queria saber. Que sim, era verdade. E ele não consegue mais ficar com ela, e vai vivendo a angústia. Até que aí tem uma infeliz idéia, que pra ele resolveria todos os problemas. Repetir a tal cena com ela, de forma que ele seria um dos protagonistas, e seu amigo ciumento (o que a “dedurou”) o outro. Ambos fariam sexo com ela. E também entre si, o que resolveria uma outra questão, a da pretensa homossexualidade latente do melhor amigo. De uma forma bastante estúpida, pensava nosso intrépido herói, estariam todos quites e resolvidos com suas vidas sexuais. Pensamento tipicamente americano e capitalista. Como devolver na mesma moeda algo como isso? E se de repente, no meio da transa a três, ele começar a se perguntar se nessa outra relação a três, ela havia gozado ou não? Quantas vezes? Com qual intensidade? E aí, há como se esgotar anseios e angustias quando o tema é o que se passa na cabeça e nos olhos de dois ou, pior, de três, numa cama? E se a namorada olhasse pro seu melhor amigo, o personagem principal não veria ali, naquele olhar, amor ou mesmo tesão?
Essa solução final é bem idiota e não interessa nada no quesito que me importa. Como todos os filme americanos, eles partem de premissas interessantes, promovem um inicio de viagem bastante surpreendente, mas depois logo temos que nos acostumar com a mediocridade dos lugares bonitos, mas sempre comuns. O que interessa portanto , é que no relacionamento o personagem de Ben Affleck, conhece uma mulher e se apaixona, mas algo do passado dela retorna, e acaba interferindo no que ele sente por ela, de tal forma que impede a circulação do afeto.
Este é o dilema de Amy. Um dilema que eventualmente surgirá na vida de qualquer um (claro qualquer um homem, ocidental, narcisista e frágil). Essa mulher que ainda, pra piorar, é lésbica. Uma lésbica que se apaixona por um homem, e que se descobre que ela, há muitos anos atrás, havia feito sexo com dois homens ao mesmo tempo. Uma mulher que gosta de mulher e que teve uma vida sexual muito mais interessante e plural que a sua. Os homens talvez tenham sempre que ter essa fantasia do “pau primevo”. Senão primeiro em instante, que tal único na percepção diferencial eterna. Queremos mulheres que elogiem nossas performances, por mais medíocres que elas sejam, e que nos digam, entremeados por seus ais e uis, que nós somos os melhores, e que nosso pau é gigantesco e que ela nunca tinha feito isso, desse jeito, naquele lugar. No fundo todos queremos repetir em cada mulher o sonho da virgem, fresca e lívida que espera o cacete redentor. E a mulher vem então de verdade, sem saber do roteiro e do papel de virgem inocente, virgem que deve então, contra sua vontade, ser maculada e aí ela acha que pode falar o que bem entender. Isso quando não segue o script habitual e não atua brilhantemente nesse teatro de mediocridades que pode ser a vida. E vem a mulher honesta, verdadeira, e fala que fez isso, e critica, e diz que foi ruim, e diz que ela teve uma vida e foram tantos os homens que a amaram “bem mais e melhor que você”. E como é que fica a curtição de nossos anseios narcisistas, que servem mais pra contar, dizer, e sentir superioridade no mostrar e comparar paus no encontro do boteco, do que por outra coisa? Lembro de um filme que vi, baseado numa obra de Nelson Rodrigues, no qual o sujeito ansioso pela transa com uma desconhecida, conhecida no ponto de ônibus, vai vislumbrando o momento de gozo maior, não no encontrar o corpo dessa mulher, mas no contar para os conhecidos, amigos e estranhos, dessa sua façanha, todos invejosos por sua performance maravilhosa, contraposta ao real da brochada fulminante, o que nada impede do seu dizer no boteco daquilo que não aconteceu.
E mesmo dizendo isso não estou imune ao medo das mulheres experientes. Apesar do fascínio, tento por meio dessas palavras espantar o medo, de se ver ali, tal qual criminoso em acareação de filme americano, no paredão, lado a lado, com todos os seus homens, com aquelas linhas atrás marcando as alturas, sempre uns mais baixos e vis que outros, mas todas agora na mesma linha querendo ou não. Acaba com minha demanda por exceção. O dilema de Amy, instaura a insegurança máxima, quando coloca no passado da, outrora, sua mulher monopolizada, um homem (ou mesmo mulher) que a tenha encaminhado, por atalhos ou caminhos sinuosos, por lugares ocultos do prazer. Lugares que você conhecia de ouvir-dizer, e que ela vai até de olho fechado. E você fica lá, com a instrumentação pronta, sacando que o problema é qualitativo, e não entende que o amor se basta em si mesmo, e que ela não te compara com ninguém, e que ela te ama, e também quer te ensinar. Seus fantasmas são crueis e te colocam na parede. Você vai ficar com essa mulher que ri de você pelas costas? E que se imagina com aquele que a levou pelos caminhos proibidos do prazer absoluto e total? E você é muito idiota pra entender o que se passa com ela, e fica aí cheio de medos. Vença seus medos seu babaca. Ela te ama e quer ficar com você, e ela, nem sempre pensa como você.
É a prova máxima do relacionamento. Encarar o outro como outro e não como uma extensão de você. Mais especificamente uma extensão de suas fantasias idiotas.

Monday, June 12, 2006

BLABLABLAS CINEMATOGRÁFICOS I

"Matar ou morrer"
Acabo de ver o filme “Matar ou Morrer”, um desses filmes superclássicos que ouvimos sempre falar e nunca vimos. Fiquei espantado com o filme. Senão fosse pelo tiroteio no final e pela cena mostrando, num mesmo plano Herói/Bandido/Mocinha poderia jurar que se tratava de um filme europeu ou porque não, latino-americano. Isso porque é um filme sobre a angustia da solidão. Não a pequena solidão do quarto embaçado, da cama vazia, mas a solidão do mundo. O entender que não há laço possível com ninguém. Isso que o amor e a cama servem pra disfarçar. O filme é sobre a apatia política e o abandono da vida pública em detrimento da vida rastejante, da “alegria” do lar. É um filme sobre honra, mas a boa honra e não a desculpa perfeita para sustentar uma virilidade imaginária. Antes de ter visto o filme um crítico disse que se tratava de um dos filmes mais vistos, na Casa Branca, pelo presidente George Bush e seus acessores. Tratando-se de um estudantes de psicologia social e política isso muito me interessou. Um filme que se vê muitas vezes é na verdade mais do que um filme, ele tem que trazer, em si, algo pelo qual nos identificamos muito e/ou algo que é sempre passível de novas configurações. Então o que o presidente da maior nação do mundo em termos de potencial militar e influência econômica vê, muito me interessa.
De qualquer forma o nome desse filme já se encontrava no meu arquivo secretos de filme que eu devo ver antes de morrer. Como Casablanca, que já vi. Em determinada altura da vida de uma pessoa, homem ou mulher, juro que reservarei interesse apenas àqueles que já tiverem visto Casablanca. “Prendam os mesmos suspeitos de sempre”.

“Matar ou Morrer” é a história de um xerife de uma cidadezinha do oeste americano, que se casa com uma linda senhorita e que partirá para uma nova vida, como comerciante ao lado de sua bela mulher. Ele assim abandonaria seu posto de xerife da cidade. Minutos após seu casamento, quando ainda celebrava com amigos, o xerife descobre que um sujeito que ele havia prendido, havia 4 anos, fora libertado e estaria de volta à cidade no trem que chegaria em questão de poucas horas. O tal sujeito, quando preso, havia falado que voltaria e mataria o xerife. Frente a tudo isso, e pressionado por todos, ele resolve fugir o mais rápido possível. No meio do caminho, no entanto, ele percebe que não pode fazer isso, não pode fugir do bandido, e retorna à cidade. O filme tem uma peculiaridade muito interessante, que é procurar ser fiel ao tempo real de transcorrer dos acontecimentos. É como se tudo ocorresse naqueles minutos. Dessa forma faltam menos de duas horas para que o bandido chegue, e é nesse tempo que vemos o filme. O xerife então busca ajuda da população da cidade para formar um grupo e, dessa forma, impedir que o bandido (que se encontra com mais 3 comparsas) o mate. E é aí que o filme é fantástico, pois um por um todos os amigos do xerife o abandonam a sua própria sorte. Cada um a sua maneira. Do sujeito que finge não estar em casa e pede para a mulher que ela diga isso ao xerife, ao sujeito que está com ele a toda até que no fim descobre que seriam só os dois a enfrentar os 4 bandidos. “Eu tenho mulher e filhos”, é o que ele diz, antecipando a visão de sua própria morte. A questão é que todos o abandonam para enfrentar sozinho os malfeitores.
O fantástico do filme é que mais uma vez toca na questão que mais me interessa nos últimos anos que é a relação vida pública/ vida pessoal. O xerife diz em determinado momento que ele tem que ficar mas que não sabe porque. Todos pedem que ele fuja, que viva com sua mulher e seja feliz. Há uma questão pragmática nessa fuga que seria a do bandido procurá-lo, e aí sua vida seria um fugir eterno. Ele havia prendido esse sujeito e o bandido não desistiria facilmente. Mas a questão que permeia não é de ordem pragmática. Sentimos que o herói defende o próprio espírito da cidade encarnado em sua figura e na figura da lei. É o que ao longo da película vai se esvaindo nele. A cidade. O tal espírito da cidade é uma ilusão. Todos juram que o xerife havia sido o melhor daquela cidade, mas a maioria não se movimentaria nada além de tirar do bolso o dinheiro dos impostos, ou no máximo fazer um pedido por mais policiais, em duas vias. E ele percebe isso. Percebe que não havia nenhum espírito naquela cidade, eram apenas homens que pela necessidade se aproximavam e que pela necessidade precisavam de proteção. Ele ali era mais uma “part of the machine”. Mais uma arruela, importante, mas nada além disso. E o que também é interessante nesse filme é que apesar de bandido, assassino convicto, este possuía amigos na cidade. Pessoas que não lucravam com a paz da cidade. Pessoas como o dono do hotel e o dono do bar. O bandido comumente é protegido apenas por pessoas más por natureza como ele. A cidade, ou algumas pessoas, veladamente o protegiam. Isso é de uma ambiguidade fantástica. Então para quê tudo isso? Para quê proteger as pessoas? O herói, de alguma forma, acreditava naquelas pessoas e naquele modo de viver e se sentia protegido por aquela áurea de comunidade que o cercava. E é aí que o filme destrói, porque mostra que isso não existia. Uma outra cena digna da eternidade é a cena da igreja. O xerife busca na cidade, homens que poderiam ajudá-lo a capturar o vilão e não ter que fazer estardalhaço. Chegando a igreja ele é muito mal-recebido pelo padre. Mas aí ele aproveita a reunião de todas aquelas pessoas na igreja, as crianças são colocadas para fora (as mulheres ficam) e se delibera sobre o que fazer. Coloca-se como a cidade agora era boa de se viver e criar os filhos, e isso por causa da ação do xerife; que se paga impostos para se ter mais policiais e que portanto os homens não tem que sair por aí atirando; que é um absurdo eles todos ficarem falando quando na verdade a questão era com a cidade; e que na verdade era aquilo um problema pessoal do xerife com um homem que ele prendeu, e portanto os cidadãos não tinham nada com aquilo. E ainda que a questão era como um tiroteio daquele mancharia o bom nome da cidade, a opinião de um político (no sentido ordinário da palavra) o que atrapalharia futuros investimentos na cidade. Por fim o padre é convocado para uma opinião e como alguém muito acostumado a lidar com as dores da alma, ele diz “Não sei”, e expõe a contradição de alguém que diz todo dia “não matarás”, mas que tem pessoas organizadas e preparadas para matar. Eu arrepiei. Esse sempre foi pra mim o verdadeiro potencial da religião, a questão da formação de vinculo social, de um espaço legitimamente público.
O espírito da cidade aos poucos se esvai completamente. O xerife então tem que enfrentar o bandido sozinho, e vai ao encontro dele. Preserva-se a estrutura herói/bandido que me dá nojo, mas de alguma forma expõe-se as contradições, as hipocrisias e os moralismos. E se não fosse pela questão de ter que se matar ou morrer, porque na verdade temos que tomar decisões como a do xerife várias vezes ao dia, acharia um filme perfeito. Os filme americanos, apesar de quase sempre duros, estáticos, partem de premissas interessantes, mas tal qual as novelas brasileiras têm que matar seus bandidos e glorificar os heróis. Não há diálogo possível, os bandidos tem na maldade a raiz e a solução dos problemas. Ouvindo de Bush que há o eixo do mal entendemos agora porque o filme é visto na Casa Branca. Só muda uma coisa. O dono do hotel dessa cidade é que é de fato o xerife.

Wednesday, May 03, 2006

Automatismos da vida cotidiana: Engrenagens

Foi uma cena rápida, bela e triste. Perfeita para uma crônica portanto. Perfeita para mais um esboço Braguiano. Como tudo o que vem sendo feito de bom depois do mestre. Pura imitação. Vá lá, quando é engraçado talvez traga mais do espirito dos Ponte Preta. Mas se de alguma forma apela pro lirismo e pros advérbios e conectivos, ou seja, querendo inspirar poesia usando “de, entretanto, todavia” então é mais pra Rubem Braga mesmo.
O meu ônibus exitava em passar, talvez com alguma dúvida existencial em queimar combustivel, e eu olhava pros carros passando, as moças (e porque não ser óbvio?) olhava a própria vida passando, sem nenhum anseio em pegá-la no dobrar da esquina. Saíram os dois daquela concessionária de carro. Os dois trabalhavam lá. Via-se pelos uniformes. Ele feio e sem graça, de óculos. Ela potencialmente bonita e sem charme algum, o próprio arquétipo da funcionária. Ele era o chefe (talvez), ela era a subordinada dele (talvez) e eu sou um abusador de estereótipos (com certeza). Mas era assim que me parecia. Sairam os dois olhando pra frente, depois de dois passos dele (e três dela) deram as mãos num automatismo tal, que pensei: “Eles devem fazer isso todos os dias” .
Passaram por mim e desceram a rua, mantendo um certo maquinismo nos trejeitos, e só as mãos diziam que se tratava de um casal. Mas ainda assim poderia ser uma moça carregando um boneco, ou o contrário. Um boneco carregando uma moça.
Passaram, desceram a rua e voltaram (meu ônibus devia ter esquecido seu caminho), e foram andando, ela com a cara de noiva, e ele com cara de quem não arrumou nada melhor, e se foram. Na volta, a três passos da porta da concessionária (dois passos dele), desderam as mãos com o mesmo automatismo e seguiram ambos pra suas funções. Ela devia esperar o casamento, ele esperava a vinda do novo craque da camisa 9 do seu time de coração. A vida seguia para os dois que logo depois do casamento, perguntariam onde andava aquela paixão, aquela felicidade, quando ambos, fugidios e ousados, saiam do trabalho para namorar. Eu não estarei por perto pra dizer que não havia nada de ousadia. E aí eles já se veriam rindo e pulando no sonho romantico do passado.

Às vezes chego a conclusão que eu devo ficar mesmo meio distante dessa vida alheia. Eles querem ser felizes né?

Tuesday, April 18, 2006

O ETERNO RETORNO (Ou vale a pena ver de novo?)

Ouvindo aquela mulher
que trabalha nesses programas sociais de ajuda a pessoas carentes
Dizer uma dessas metáforas
Sobre não dar o peixe
Mas dar a Vara e ensinar a pescar

Lembrei daquele meu velho quase pai
Que me dava a vara já com o peixe fisgado
E eu pegava e tirava o peixe da água
Achando que tinha sido Eu que havia pescado
Eu ficava feliz e orgulhoso e ele também

É a mesma coisa!

Wednesday, April 05, 2006

O MILAGRE NOSSO DE CADA DIA

Todos os dias, ao acordar e sair à rua, observo maravilhado a um milagre. O milagre da ordem. Todo santo dia saio e procuro, com olhos sensíveis, a estupros coletivos, apedrejamentos sumários e também jovens executivos burgueses e ricos (e haja redundância pra falar dessa corja) enforcados pelas próprias gravatas nos postes de iluminação pública, expondo, majestosamente, seus intestinos.
Mas nada vejo... Não há nenhuma dessas cenas no teatro que freqüento. Atestado final para a insanidade pública de nossos dias. O milagre da ordem acontece todos os dias. E a gente ainda acha normal. Tenha absoluta certeza que ocorre esse milagre, quando tudo a sua volta parece funcionar e as coisas aparentam sincronia. Não há nenhum sujeito blasfemando, em voz alta, que o mundo vai acabar, ninguém encara os perigosos carros, esses veículos automotores, com pedaços de pau clamando pela supremacia em andar livremente sobre a terra (tal qual aquele hominídeo no distante “2001” de Kubrick), não há piquetes montados pelas esquinas, e nenhuma queima de pneus. Quando parece que tudo vai bem na vida, é aí que se desenrola o milagre da ordem. Olho pela janela do ônibus e há sempre uma mulher ao telefone, dois garotos correndo, uma moça preocupada carregando um neném, e uma menina precocemente linda de blusa amarela. Todos acreditam na policia e em Deus, e no trabalho honesto de cada dia.
Mas, às vezes, o milagre da ordem é perturbado, e a vida que deveria acontecer, a vida da manifestação visceral ousa se mostrar, mas é aí que todos esses devotos da normalidade (os padres, as donas de casa, os policiais, e os ricos e pobres despossuídos de Tesão) rezam e pedem com tanto fervor que tudo volte a ser como antes, a ser “normal”, que acaba acontecendo o fantástico “milagre da ordem”; a gente aí passa a achar que tudo sempre foi assim e sempre será. Lembro do menino que outro dia jogou uma manga na janela do meu ônibus e uma doce menina, conhecida minha de um passado de fantasia pueril, se assustou toda e ficou apavorada com a selvageria da criança. E essa imagem deve ter logo se acomodado nos fantasmas de sua estupidez burguesa. E eu achei bom que a criança descarregou tudo de uma vez naquele ônibus, e naquele segundo deixou de ser uma subespécie humana catatônica, adormecida no horror e no medo, para finalmente agir com vigor. Mesmo que tenha se transformado numa louca criança que atira mangas em ônibus em movimento. Melhor no ônibus do que na lua. Se ao menos houvesse quebrado a janela. Esses meninos loucos depois acabarão num sanatório e darão de comer, alimentar mesmo, literalmente (redundâncias necessárias), a centenas de psicólogos, esses adestradores da alma, devotos máximos da santa protetora da ordem nossa de cada dia, ela, A Santa Mediocridade. Psicólogos que se encherão de orgulho ao adestrar mais uma pessoa, para que ela também ocupe seu lugar no circo. Eu olho esses movimentos e fico achando muito estranho. E tal qual “O Alienista” de Machado de Assis, logo me encaminharei ao sanatório mais próximo, mantendo assim minha sanidade longe desses olhos sedentos de ordem, para que não haja perturbação da paz pública.

Friday, March 17, 2006

ENQUANTO SOAR RUBEM BRAGA, POR AÍ, HAVERÁ ESPERANÇA...

- “Basta pensar isto:
enquanto estou escrevendo, lá fora, na rua,
passam mulheres.
Minha obrigação era descer as escadas e ir vê-las.
É um verdadeiro crime um homem ficar dentro de uma sala escrevendo,
sob a luz artificial,
quando lá fora a tarde ainda está clara e há mulheres andando.
É aflitivo pensar que a vida está correndo
e nós estamos aqui conversando.
Confesso que as vezes acho qualquer coisa de humilhante na literatura...”
R. B (Fantasio, com leveza, ver nesse RB, um singelo Rafael Bacelar)

Wednesday, March 15, 2006

O FIO DENTAL DA CARIOCA

Rafael Prosdocimi
É impressionante como algumas coisas, no mais súbito do de repente, adquirem uma substancia...Transformam-se de tal jeito, que tudo que era sólido se dissolve no ar e nada daquilo que Era, de tudo resta. É no momento que ocorrem essas mudanças estruturais que talvez possamos falar do “passado”, com segurança. Foi quando comecei a ouvir Led Zeppelin que Spice Girls e No Doubt adquiriram um aspecto cadavérico e mórbido. Apesar de que são os integrantes do primeiro grupo que possuem este aspecto. O fato é: Muda-se subitamente uma configuração do mundo, que o que não se via antes surge, e o que era mais que sensível de alguma forma vira fundo, paisagem.
O Pentium III garante o título de velharia que o II não possuía. E mesmo que, nesse caso, seja apenas uma mudança de velocidade, o que a principio, não indicaria a mudança de qualidade, acaba nos mostrando que, atualmente, quantidade de tempo diminuída, velocidade, adquire a estranha aura de qualidade. Desafio aos que tem Internet a cabo a usarem a Internet discada, e já pressinto, na realização desse experimento, problemas maiores. Suícidios, morte, destruição de computadores e coisas assim. E mesmo agora corro o risco (em se tratando de informática, nunca se sabe...), de que essas minhas linhas, sobre a Internet e sobre os Pentiums, possam vir a não fazer o menor sentido para alguém que talvez leia isso, daqui a 4 ou 5 anos.
Mas a questão que me intriga mesmo é de natureza cotidiana e banal. A utilização de fio dental. Outro dia descobri que nunca em minha vida havia usado fio dental. Nunca o utilizei da forma certa, como aprendi recentemente. Antes diria que mais compunha o ritual “limpar os dentes”, que me foi ensinado por todas as lindas dentistas que me acompanharam nessa vida, do que realmente limpava os dentes. Antes o fio percorria unicamente os espaços entre os dentes, e esse era o seu habitat no planeta Terra. Hoje, o fio percorre toda a extensão da gengiva, penetra e percorre o espaço onde a gengiva se encontra com os dentes, e entra na carne. Às vezes sangra.
A verdade é que o fio dental passa a não reconhecer a gengiva como barreira, e aí ele vai até onde se encontram os minúsculos restos de alimento escondidos lá dentro da gengiva. Uma descoberta não menos fundamental do que aquela da psicanálise. A descoberta de que sob a pálida presença da consciência, há algo que não só não se conhece como não se pode conhecer. Algo que escondido nos fundos da alma perturba todo o resto da vida. Processos que se repetem e que estão para além do nosso entender. Mas a senhora tapada (a consciência), afinal, descobre que não é senhora do seu lar. Há muito mais do que simplesmente percorrer o espaço entre os dentes. Há que se aprofundar no mistério do oculto, do que não se vê nesse espaço mínimo entre a gengiva e o dente. E tal qual ocorre num processo de análise: Às vezes sangra.
Sinto-me enganado. Quando a gente descobre como passar o fio dental aos 23 anos, surge uma dúvida cortante e essencial, que é: Será que eu não tenho que aprender a fazer tudo aquilo que achava que sei fazer? Será que faço alguma coisa direito na vida?
O Nelson Rodrigues dizia que um homem, aos 18 anos, não sabe nem dar bom dia a uma mulher, e que todo homem já devia nascer com 30 anos. Eu, que me encontro bem no meio do caminho, pressinto que dar um bom dia a uma mulher é algo muito difícil. Significa proporcionar a uma mulher um dia inesquecível, marcado em sua mente com toda a força do carinho. Um dia que tem esse pingo da Vida, que nós guardamos na última gaveta do coração e que, nos dias vazios e frios de afeto, acabamos buscando com paixão, procurando onde foi que ficou essa intensidade do tempo que não é mais.
Paralelo à descoberta das possibilidades recalcadas do fio dental, conheci aquela carioca alta e magra que se conhecia com tanto afinco e amor, que cheguei a sentir que talvez fosse melhor deixá-la ali, deitada, trabalhando sozinha. A gente se acostuma com mulheres que prezam muito o gozo de “nosotros” (a mãe, a empregada, a namorada, a virgem Maria) e quando se encontra uma mulher que liga muito pouco pelo que Falo, e faço...Acaba dando um certo receio inicial, que logo se transforma numa sublime sensação de que nunca se usou o fio dental da forma adequada.
A mudança de paradigma quebra o chão, que de repente parece nunca ter havido. Sem duvida a descoberta da carioca (não arriscaria o plural) foi mais impressionante do que a do fio dental. Más há um charme indefinível nesse pudor bem mineiro. Um certo conhecimento total dos mecanismos de funcionamento do gozo pode levar à fabricação de Pilulas Orgasmáticas das indústrias Merck, cientificamente comprovadas, e não é nada disso. O pudor que se desfaz, na velocidade precisa dos gestos imprecisos ainda ganha desse maquinismo da carioca. Mas que dá medo e é bom demais da conta sô, isso é. É por isso que vejo com apreensão essas moças e moços de um só. Há algo essencialmente experimental no amor que foge a qualquer metafísica do ente. Pois esses ficam aí, o resto da vida, achando que usam o fio dental da forma certa.
Às vezes ao passar o fio dental sangra, e dói. Mas é assim mesmo, deixe sangrar.

Friday, March 10, 2006

IRONIA

Rafael Prosdocimi
“A vida é a arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida” – Vinícius de Moraes

Havia senão o amor, a esperança dele. Desistia momentaneamente de achar que a esperança seria algo ruim, o maior dos vícios segundo Nietzsche. Esse sentimento que paralisa o corpo e nos faz esperar. Na verdade, sentia uma cálida presença, uma proteção, mas que não era, em absoluto, o amor. Era isso sim: a esperança. Gostava dela, de ficar nos bares até o momento em que tínhamos que ir embora sem nem mesmo querer. E os beijos, os olhos essas coisas. Sentia sim um tesão, reprimido e meio rouco, mas sentia.
Ela se dizia cansada de ver os nomes de seus homens passados, em listas que poderiam ser até mesmo de coisas a se comprar no supermercado. Eu gostava dela, mas toda minha arrogância e hipocrisia, já prediziam que nada haveria ali de acontecer. Seríamos nomes na lista de cada um. E nos buscávamos, talvez mais pela esperança e pelo medo de nos perdemos na esquinas da vida, do que pela certeza de nos querermos juntos. Ela teve a força de me fazer encontrar com a vida, com a vontade, com o encontro do caminho perdido que há em segurar uma mão, segurar um ventre, e puxar, encostando corpos.
Como o velho filósofo do filme “A Excêntrica Família de Antonia” interpretava meu papel na desolação e na companhia dos livros. Procurava meu mofo, meu escuro. Minha caverna, onde buscaria lento apodrecer. Era só esse o papel que me caberia naquele filme, ou na minha vida. A amargura, o ressentimento, o bolor. O suicida. Passava os dias em casa, buscando nas minhas abstrações qualquer espaço ou cadeira que me coubesse. Fugia da vida e de todos. Lia Vinicius de Moraes como se eu fizesse parte das encenações do poeta e não fosse, isso sim, a sua própria antítese. O próprio evitador das paixões e da vida. E ela apareceu tímida, fruto de um desejo cotidiano dentro de um ônibus numa manhã qualquer. Deveria ter ficado no cotidiano como muitas e todas as outras, mas passou a me encontrar nas cerimônias das quartas de bar. Ou segundas e terças. E a gente se regava e florescia no álcool e nas palavras. E sorríamos; e pra mim havia nela uma ingenuidade singela, de quem não finge quase nada. Eu gostava disso, combatia minha hipocrisia.
No meio dos um milhão e duzentos mil de Copacabana, no maior show de Rock’n Roll da história, com inocência, convenci-me de que a veria ao acaso. Ficaríamos juntos, abraçados naquele limbo que pode ser, às vezes, o Rio de Janeiro. O céu, o mar, o espetáculo e eu nos braços dela, isso tudo formava meu sonho de uma noite de verão. Havia tanta cegueira em imaginar esse encontro, que o número um milhão e duzentas mil pessoas era pura abstração matemática. E não a encontrei. Mergulhei no álcool buscando aquilo que ela poderia me dar. Aconchego. Afoguei.
Uma semana depois era carnaval. A vontade de encontrá-la existia muito, apesar de fingir pra todos que não. Fantasiava pra mim mesmo que não queria encontrá-la, porque o carnaval é a época de encontros casuais com mulheres aleatórias, que devem nos dar seu desejo e depois desaparecer na tal quarta-feira. Virar cinzas. Mas no fundo queria tanto vê-la, que acreditava pouco nessa minha mentira. Estávamos na mesma cidade por vários momentos e não a vi. Talvez ela havia me visto e se escondeu atrás de braços e troncos, ou mesmo árvores. Não a encontrei. Mas voltei do carnaval aliviado. Aquela exuberância de mulheres, cores e barulhos havia acabado. Voltaria para os braços dos livros, da minha poeira sadia. E também para os braços dela nos bares silenciosos das quartas-feiras.
As minhas cinzas duraram não só a quarta, mas também a quinta-feira. Na sexta sai a fazer coisas para minha mãe. Nessa cidade de 2,5 milhões de habitantes peguei meu carro e parti. É engraçado que, muitas vezes, quando saio de carro, tenho a forte impressão de que o que vejo do outro lado do vidro sou eu estampado na rua. Como se andar de carro fosse a metáfora de percorrer os caminhos de minha vida, um percalço solitário pelos labirintos do que chamo “eu”. Foi o que senti hoje. Caminhava silencioso, lentamente. Parado num sinal olhei pra frente e estranhamente a vi, linda e leve atravessando a rua. Uma buzinada, um aceno que não ocorreu nem no Rio nem no carnaval se esboçou em minha mente. O meu carro metafórico via ali aquela mulher como uma alegoria. E eu buzinaria e ela olharia e me daria um sorriso.
Passeava não pelas ruas de Belo Horizonte, nem mesmo via carros, ou placas e árvores, via a cada esquina o pouco de mim que existe nesses caminhos. O esboço daquela buzina ficou preso na mão que ela dava afetivamente para um outro homem. E ela que ontem me dizia estar doente e de cama, tinha na face o rosado da vida curtida da satisfação contida numa paixão. Eu engoli meus secos...Olhei-a atravessar a rua e ir embora como uma metáfora. E sozinho no carro fiquei ainda mais. Fui embora pra casa.
No caminho ainda vi a avó de minha primeira namorada subindo a rua. Cansada e velha. Ela era eu.

Sunday, March 05, 2006

PEQUENA CRIANÇA QUE DORME NO COLO DA MÃE

Vai pequena criança, aproveite o mais gostoso sono da vida, que é esse seu, recostada no ombro espaçoso e aconchegante de sua mãe. Pequena menina, este será o ultimo desses sonos. A partir de amanhã, você começará a notar que sua mãe já está cansada disso tudo, e também amanhã você estará um pouquinho mais pesada para que essa mulher te carregue. Hoje, enquanto dormia, você não viu como ela limpava com a mão direita o suor do próprio rosto, enquanto com a esquerda, já dormente, te segurava. Olho para você, pequena criança que dorme no colo da mãe, e sinto uma inveja permeada de uma pena, de uma aflição enorme. Perseguirá no resto de sua vida a procura desse sono, desse aconchego, tentará em vão voltar ao colo da mãe, sem nem mesmo saber que é isso que buscas.
E amanhã quando acordar, pequena criança, verás que és negra, verás na negritude que vem de sua mãe, todo o seu futuro sofrimento. Seu sofrimento porque homens, como eu, irão tentar te colocar onde bem entenderem, irão te negar o amor, e querer o seu sexo, te negando os olhos e a palavra de carinho. Pequena criança que dorme no colo da mãe, amanhã você não entenderá porque te tratam mal, todos esses homens e mulheres que só querem de você uma boa faxina, um movimento preciso e subalterno, esses que querem seu silêncio, quando você luta por sua vida. Sua palavra, sua boca, seus preciosos momentos. Mas eles, nós, não ligamos pra você. Sua mãe hoje te olha com receio de tudo aquilo que terás que agüentar, tudo aquilo que ela mesma suporta sabe-se lá como. É quando ela te tens no braço, desse jeito, e vê algo na doçura de sua face, que tudo se torna mais fácil de suportar e ela continua a andar, respirar e viver.
Pequena criança que você cresça esperta, inteligente e batalhadora. Que você se negue a encaixar nos nomes que esses homens brancos lhe dão, que você se chame como bem entender. Não seja a minha pequena criança que dorme no colo da mãe, por favor, seja quem bem quiseres. Diga ao mundo que você, é isso tudo que você é, e não acredite nos homens que sempre te chamarão daquilo que eles querem que você seja, mesmo quando parecerem bons e gentis. Só não desista nunca de voltar a esse sono no colo de sua mãe, mesmo que seja certo que você nunca mais o encontre.

Thursday, March 02, 2006

FOI CARNAVAL...

Dia de Graça
Composição: Candeia


Hoje é manhã de carnaval (ao esplendor)
As escolas vão desfilar (garbosamente)
Aquela gente de cor com a imponência de um rei, vai pisar na passarela(salve a Portela)
Vamos esquecer os desenganos (que passamos)
Viver alegria que sonhamos (durante o ano)
Damos o nosso coração, alegria e amor a todos sem distinção de cor
Mas depois da ilusão, coitado
Negro volta ao humilde barracão
Negro acorda é hora de acordar
Não negue a raça
Torne toda manhã dia de graça
Negro não humilhe nem se humilhe a ninguém
Todas as raças já foram escravas também
E deixa de ser rei só na folia e faça da sua Maria uma rainha todos os dias
E cante o samba na universidade
E verás que seu filho será príncipe de verdade
Aí então jamais tu voltarás ao barracão

Wednesday, February 22, 2006

COMO "VINICIUS DE MORAES" SALVOU MINHA VIDA...

Aquele, sem dúvida, fora uma “dia bão”. O maior show de todos os tempos. A praia, a areia, o mar, o céu , a carioca...Toda essa mitologia, todos esses arquétipos juntos, e ainda Ron Wood, Charlie Watts, Keith Richards e Mick Jagger. Tudo isso proporcionou um clima único de celebração da vida. A vodka, odiosa vodka e a bem amada cerveja tiveram também a sua parte na história. Estive bêbado e não me lembro de muita coisa, principalmente do meio pra frente. Na verdade não lembro de nada, do meio do show pra frente. Quando me perguntam sobre a música tal, ou daquela hora que aconteceu aquilo, eu digo sempre que não sou vídeo-cassete e se quiserem saber do show que comprem o DVD, pois é o que farei. Mas lembro com sobra de detalhes do cheiro do dia. O sorriso das pessoas e essas coisas que só acontecem nessa cidade insana e mágica que é o Rio de Janeiro. Uma cidade que desloca um milhão e duzentas mil pessoas para a praia, e fica até parecendo que isso não é nada demais. Lembro apenas dessas coisas que não virão no DVD. Uma comunhão mesmo. Dizia a um amigo que aquilo ali parecia Meca ou algo similar. E foi isso: uma grande missa. Com seus um milhão e duzentos mil devotos. Sentia-me totalmente integrado à paisagem, com suas putas, seus miseráveis, seus turistas escandinavos, suas morenas e louras de carne firme, suas bichas internacionais, sua pobreza escancarada, sua exuberância geográfica.
Completamente entorpecido pelo abuso de álcool acabei não recordando e não gravando nenhuma imagem no arquivo de minha memória. Deveria ter fotografado qualquer coisa que fosse com minha retina, mas não o fiz. Estava lá menos pelo show, até porque estava a uma distância de alguns campos de futebol do palco, e via Mick Jagger como as pessoas dizem ver Deus. Na base da fé.
Tento compreender se aquilo que me acontece quando avanço a linha da sobriedade, isso que não é registrado na minha memória, se isso entra na minha vida como aquilo que sou, ou então se isso tudo não conta na minha vida, e aí posso dizer que eram as danadas das moléculas de álcool que roubavam meu juízo. Lembro com clareza do início do show, e depois não lembro de absolutamente nada. Sei que em determinado momento tentava voltar pra casa e andava. Andava procurando o caminho de casa, o caminho que é o meu da forma menos alegórica e metafórica possível. Realmente andava. Os pés doíam, e todos os caminhos eram iguais e se repetiam incessantemente. O mesmo banco, a mesma esquina dobrada. Algo me escapava e eu não conseguia achar o caminho.
Andava já há muito tempo, subia morros e descia, andava em círculos, e nada nada familiar, nada indicava uma direção. Perdido em terra estranha, terra essa que se assustou Paulo Mendes Campos na década de 60, me assustou ainda mais. Muita volúpia para toda essa minha mineirice. Caminhava em círculos e fadado a andar, seguia meu destino. E de repente eu o vi. “Vinicius de Moraes”, a placa, a rua. A rua que sabia ser perto do lugar onde estava hospedado. Pela “Vinicius de Moraes” fui pra casa. Antes disso, em algum ponto da história, perdi as minhas sandálias. Ou fui roubado. E a história se repetia.

Friday, February 17, 2006

INVEJA SINCERIOSA

Tenho uma inveja silenciosa dessas pessoas que vem do interior para estudar, ou mesmo viver, na cidade grande. Carregam nos olhos uma vontade grande de conhecer o mundo, que segundo eles, existe. Carregam também esse charme de quem vem de um outro planeta, de quem tem um lugar com nome no coração. Chegam aqui, na cidade, para explorá-la tal qual Marco Pólo ou algum outros desses famosos exploradores sobre os quais nunca li. Rompido o laço, que nos prende junto à saia da mãe, rompe-se qualquer fronteira. E eles avançam, impiedosos, e comendo pela beiradas.
Tenho inveja desse interesse que eles demonstram para com nossos vícios e hábitos e que acabarão também adquirindo, mas mantendo essa distância de quem nunca vai se acostumar com a naturalidade de uma buzina. Possuem uma espécie de ingenuidade e ambição, se lançam ao espaço, fora de suas cidades pequenas, e chegando aqui descobrem, sempre, que o lá já não é tão longe. E eu fico aqui, parado, com essa inveja sincera.

Saturday, February 11, 2006

O morro não é dos Malandros

Rubem Braga (1936)
Em qualquer morro do Rio já se ouve, hoje, um ronco, um barulho de tambor surdo, uma voz cantando uma coisa esquisita. Há qualquer coisa lá por cima e não é sem tempo. Eles estão se preparando, estão começando a se preparar. Os exércitos do samba fazem os primeiros exercícios antes de marchar sobre a cidade. Lá vem samba.
É preciso gostar do samba e para gostar do samba é preciso conhecer o samba. Porque a verdade é que muita gente não gosta das mesmas condições. Está visto que há samba e há samba. Do partido alto e do partido baixo. E de muitas variedades. É provar. Não é decente falar em samba sem falar em Noel Rosa. Ele faz sambinha repinicado, desses que se podem cantar com o auxílio de uma caixa de fósforos. Mas faz também o outro samba, o samba alto, o samba para a multidão mestiça chorar, o grande samba.
Para gostar desse grande samba não é preciso achar que ópera é música para boi dormir, como definiu um meu amigo. Um sujeito que gosta de ópera e não gosta de um samba de Cartola, da Estação Primeira do Morro de Mangueira, é um sujeito que não gosta propriamente de ópera, gosta apenas do Teatro Municipal. Não convém esperar que um samba de Cartola chegue a ser conhecido por uma cantora qualquer que o vá ganir pelo microfone de qualquer PR. O melhor é tomar um ônibus Méier, descer ali na rua São Francisco Xavier, atravessar o viaduto e subir o morro. Aí, sim. Um samba é um samba, é qualquer coisa de muito.
Não é só na Mangueira. Em qualquer morro e mesmo em qualquer canto pobre da cidade. Houve um tempo em que só se falava em Favela. Hoje o samba se espalhou. Há um por aí que canta as glórias do morro de São Carlos: "No morro de São Carlos / Tive um trono / As negras me velavam o sono / Numa corte imperial."
E o cantor compara a mulata que fugiu a Maria Antonieta, "fazendo muita falseta," e ele mesmo a um rei Capeto abandonado que acaba infeliz, guilhotinado pela saudade da referida senhora.
Mas se eu citei Cartola é porque nele se encontra um sentimento tão profundo e primitivo que a letra de repente nem quer dizer nada e acaba dizendo coisa como diabo. Ele é talvez melhor que o famoso Paulo da Portela e o samba parece mais puro. Reparem só nessa letra: "Semente de amor eu sei que sou / Desde a nascença / Mas sem ter vida e fulgor / É minha sentença."
Isso na voz de negro, entre o coro das mulatas, é qualquer coisa de fundo, de triste, de uma desgraça preta mesma, preta como o soluço de uma cuíca.
Mas parece que estou estragando o samba, transcrevendo assim um pedacinho sem música, sem a voz, sem os surdos, as cuícas, os tamborins, as mulatas, o morro...
Só indo lá mesmo. E é preciso acabar de uma vez essa história de que morro é terra de malandro. Eu, que já fui várias vezes a vários morros e já morei vários meses em Copacabana, sou capaz de jurar que nos apartamentos da areia há mais malandros que nas casinhas de lata velha lá de cima. A grande maioria da população do morro é de trabalhadores, sujeitos que pegam no duro todo dia, que vivem suando. A malandragem existe mais no samba que na realidade.
O batente é o mais comum. Malandros não teriam, por exemplo, capacidade para organizar uma escola de samba. Para isso é preciso ter o espírito, a disciplina, a força de vontade de um trabalhador. E os morros estão cheios de escolas onde pode haver cachaça, mas há muita alegria, bastante respeito e, às vezes, uma disciplina quase militar. Já esse nome de escola implica uma idéia de hierarquia, de cooperação, de ordem, de método de que um verdadeiro malandro não é absolutamente capaz.
Quando falo que nas escolas de samba há muita alegria, não quero que se confunda alegria com bagunça. Ali não há cerimônia, mas também não há gandaia solta. E de resto ninguém pode esquecer a função quase religiosa que o samba tem no morro. Uma religião sem Deus, mas com sacerdotes, noviças, rito, tristeza, esperança. Mesmo porque não é preciso ser campeão de folclore para sentir como o samba recebeu e ajeitou a fluência de certas orações de macumba.
O cavalheiro que se dispõe a ir a um morro, mesmo com a sua senhora, irmã, noiva, namorada, tia ou bisavó, não necessita levar uma boa metralhadora nem mesmo uma pistola de gás lacrimogêneo. A sua bolsa e a sua mulher não correm tanto perigo. A sua mulher, pelo menos, na sua descida do morro lhe dirá que foi tratada infinitamente com mais respeito do que quando passava pela Avenida, sábado de tarde.
Um amigo meu foi há tempos a um morro. Havia bebido demais e no fim da festa estava naquele estado em que tudo gira e se confunde em torno de nós, e, mais ainda, dentro de nós. Em pleno caos alcoólico, meu amigo deixou de saber o que estava fazendo. Acordou no dia seguinte numa cama ao lado de um mulato de uma mulata que o haviam rebocado até ali por caridade e ainda lhe deram café e dinheiro para o ônibus que o conduziria aos seu luxuoso apartamento de Ipanema.
Vamos, portanto, para o morro ouvir as primeiras cuícas do carnaval do ano que vem. Não precisamos levar armas. Levemos ouvido e coração, para ouvir e para sentir. Não aprenderemos música. Mas sentiremos coisas que são tristes e belas e que é bom sentir. Aprenderemos sentimento.

Friday, February 03, 2006

É rapaz...

As cores do dia desapareciam no cinza do meu coração. Passava e por onde ia tudo apodrecia. Para mim o deserto parecia vivo, o deserto se estendia a frente confortável e alegre. Os cáctus retorcido, as pedras, os bichos rastejantes. Sentia-me no caminho certo, no caminho que precisava seguir, no caminho que eu merecia. Aos pouco achava meu canto nessa casa. E o vento, ah o vento do deserto, soberano, o vento que sussurra ao ouvido: " O tempo não existe".
Era isso que via de meu Cadillac.
A estrada convidando a partir, e quando a estrada nos convida assim, com todo esse apelo, importa pouco o nome dos lugares. Ir pra casa, sempre. Ir pra casa, mesmo quando se foge de lá, como agora. Sempre estamos indo pra casa, disse alguem mais triste que eu. Se chegamos algum dia...sinceramente duvido. Mas haverá desertos, mulheres estúpidas, cervejas quentes, corpos frios, mal cheiro, tédio, relógio parado e gasolina barata e cara. E se atropelar um cachorro no caminho, seguir, e então pensar, sempre, que poderia ter sido uma vaca.

Sunday, January 29, 2006

VOCE SE LEMBRA...

Ela é imprescindível de um jeito assim, que lhe dava medo encontrá-la nas quinas tão reais daquela casa. Sentia-se como um crente que tem que se haver com o próprio Jesus Cristo, numa quarta-feira, as três da tarde, na rua São Paulo número 2914, esquina de Bias Fortes. Ainda mais naquela casa, na frente de todas aquelas pessoas estranhas. Ele, ali, teria de reagir de uma forma aceitável e neutra. Ela não era uma mulher para encontros materiais. O sonho, o devaneio, a abstração sempre foram lugares mais propícios para encontrá-la, e ter aí, o tudo da vida.
A verdade é que ele não sabia que se encontrariam mais uma vez, nessa mesma encarnação. Sendo assim, a presença dela lhe causava transtorno. À distância pequena, ele sofria em pensar que a aproximação, o esbarrão, qualquer coisa, estava ao alcance dos pés dela. E que talvez, mesmo que ele corresse, fugisse pela rua deserta poderia ela ainda observá-lo. Mas o medo real, indefinível, indizível começava mesmo no verbo. E se ela dissesse “boa-noite”... “Você tem fogo”...“Onde é o banheiro”, qualquer dessas coisas tolas, seu coração palpitaria forte, o que a faria perguntar: “que barulho é esse?”. O rapaz diria que era ela, ressonando toda no ritmo de seu corpo. Ela já fazia parte do seu desequilíbrio corporal. A disritmia de suas funções vitais dependia do fator “ela”, tal qual depende da taxa de outras coisas como da noradrenalina, do álcool ou da cocaína. O pesadelo final seria se ela começasse algo assim como “você se lembra...”; Ele, então, preparava um ataque epilético devidamente treinado e ensaiado. Sairia bonito e real, com muita secreção, o barulho angustiante dos dentes se chocando, espasmos pluridirecionais e órbitas vazias. Talvez chamariam uma ambulância. Ela se afastaria, pois não é médica, e o socorro chegaria.

A presença dela cercava de incertezas suas angustias, e elas todas, com medo, ameaçavam sumir. Desistiam de dominar o rapaz. No entanto, a falta da cerveja (e porque não - da coragem) ajudava a angústia a se manifestar como força, na fraqueza desse sujeito tão hábil em ser um piqueno minino. E o leme, pesado, deixava esse minino a contemplar mais que pacífico o Atlântico. Ela então se aproximava dele com seu jeito doce para com as crianças, inclusive para com essa, e demonstrava um interesse que não era nada além de gratuita gentileza.
Ela nunca começaria uma frase “você se lembra...” havia sido ele, pra ela, a máscara...Apenas o nome, do “cara da noite”, que é sempre o mesmo. Ela morreu muito velha, enquanto ele dormia e sonhava com aquilo que ela perguntaria, “você se lembra...”, se ela se lembrasse disso tudo que ele nunca esqueceu.