Thursday, December 29, 2005

UMA BOA MORTE PARA AS SENHORAS QUE SE VÃO...



Minhas senhoras, a todas vocês que se despedem do planeta, por agora, todas que estão a falecer junto dos seus tecidos e órgãos, e em especial a vocês que já vem morrendo lentamente ao longo de todos esses anos. Desejo a todas vocês uma boa-morte nesses próximos dias ou, no mais tardar, semanas. É o que desejo também àquelas que pegarão apenas o próximo trem, numa estação seguinte (talvez no outono). Peço que aguardem a partida sem angustia. Ainda há netos para abraçar, e filhos para olhar ternamente, e então pensar, calada, o que se fez de errado para aquela, e como aquele outro deu tão certo na vida. Logo será a vez de vocês e podem ter certeza que todas irão. É por isso que desejo uma boa morte, já que esta é certa. Que na hora do seu ultimo suspiro haja uma mão para apertar. Tenha certeza que, para os que ficam, a morte certa e determinada não dói menos do que àquela imprevisível, pois mesmo a certeza de morrer sempre traz em si a esperança de mais um dia, mais um dia, mais um dia numa sucessão infinita.
Que essa mão que te aperta seja de alguém que você, secretamente, goste mais. Temos poucas mãos, e muitos filhos, netos, amigos, e de todos, sempre sabemos, no intimo, de quem gostaríamos de ver, sentir, tentar em vão um ultimo sinal, uma ultima comunicação, no derradeiro momento.
Que nos seus olhos haja apenas resignação, calma, e sincera alegria de ter vivido. Mesmo que tudo isso seja falso. Os velhos são sempre bons, sempre parecem bons, e devem permanecer bons velhos na hora da morte. Os crimes, violências, estupros cometidos, somem nesses olhos baixos e fracos. “O fim é um imenso sossego e um grande perdão”. Ao menos deveria ser. Afaste da cabeça, minha boa senhora, seus erros. Mas se der, ao menos, fale aquilo que você gostaria de ter falado pra filha do meio em maio de 83, mas que não conseguiu. Isso que te veio à cabeça, todas as vezes que você a viu, desde aquele dia. Lembre-se que não a verá mais. Permita-se todo o desvario na vontade. Sua palavra terá uma importância enorme e, portanto, não a gaste falando mal dos outros, mesmo que seja sincero. Ao menos que essa sua palavra negativa traga, aos que ficam, movimento, vontade, revolta que seja. Mas prefiro que você seja uma velhinha formal e idônea para as coisas erradas que acha, pensa e vê. Não maldiga por Orgulho. Leve-O consigo. Ele aqui, apenas perturbará o dizer do seu nome, nos fins de tarde e nas festas da família (que nunca mais serão as mesmas), quando a sua lembrança rasgará o peito. Esse seu orgulho só ira perturbar na lembrança dos seus gestos e machucará eternamente aqueles que tanto gostas. Impeça isso. Deixe o orgulho junto com as flores no seu caixão.
Que no momento mesmo da sua morte haja serenidade, olhar e mão. E que na sua cabeça paire, como um beija-flor, a melhor lembrança da vida. Um filho sorrindo, uma noite de amor, sua mãe te abraçando - essa já morta há tanto tempo, a casa, o sítio, os lugares de colher sorriso na infância. Que seja lembrança ao mesmo tempo boa e calma. Nada muito repentino, ou violento, denso. Que apenas traga torpor a mente, e que nesse tempo final você possa afirmar: “que boa a minha vida e o que eu não faria para vivê-la toda de novo”. Que essa frase tenha a força de apagar um por um os erros da sua vida. Que você não se lembre do amor de verdade que nunca fora vivido, do aborto vergonhoso, do filho nascido e, todos os dias, indesejado, de um sonho nunca tentado ou de uma vontade sempre reprimida. Que nesse fim você sorria, e se lembre desse ultimo bisneto, ou bisneta que tenha sorrido claro naquele dia de domingo. E que esse sorriso tenha a força retroativa de trazer a tona todas essas crianças que você acompanhou da fralda à lama, do bico à glória, em todos esses anos. E por fim desejo que você se orgulhe muito da sua família, mesmo que muito do você, que poderia ter sido, tenha ficado por aí, nas latas de lixo, junto com toda essa fralda suja...

CANTICO NEGRO

José Régio
Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.
Não, não vou por aí!
Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí

Monday, December 26, 2005

Série: Se ninguém leu Rubem Braga, Sérgio Porto ou Antonio Maria, porque haveriam de ler, afinal, Rafael Prosdocimi...

Dar um Jeitinho
Paulo Mendes Campos


Escrevi na semana passada que há duas constantes na maneira de ser do brasileiro: a capacidade de adiar e a capacidade de dar um jeito. Citei um livro francês sobre o Brasil, no qual o autor dizia que só existe uma palavra importante entre os brasileiro: amanhã.
Pois fui ler também o livro Brazilian Adventure, de 1933, do inglês Peter Fleming, marido da atriz Célia Johnsonm integrante da comitiva que andou por aqui há trinta anos em busca do coronel Fawcett. No capítulo dedicado ao Rio, sem dúvida a capital do amanhã, achei este pedaço: “A procrastinação por principio- a procrastinação pela própria procrastinação- foi uma coisa com a qual aprendi depressa a contar. Aprendi a necessidade de resignação, a psicologia da resignação: tudo, menos a resignação em si mesma. No fim extremo, contrariando o meu mais justo aviso, sabendo a futilidade disso, continuei a emgambelar, a insultar, a ameaçar, a subordinar os procrastinadores, tentando diminuir a demora. Nunca me valeu de nada. Não e possível evita-la. Não há nada a fazer contra isso.
Não é verdade, Mr. Fleming: há uma forma de vencer a interminável procrastinação brasileira: é dar um jeitinho. O inglês apelou para a ignorância, a sedução, o suborno. Mas o jeito era dar um jeito.
Dar um jeito é outra disposição cem por cento nacional, inencontrável em qualquer outra parte do mundo. Dar um jeito é um talento brasileiro, coisa que a pessoa de fora não pode entender o praticar, a não ser depois de viver 10 anos entre nós, bebendo cachaça conosco, adorando feijoada, e jogando no bicho. É preciso ser bem brasileiro para se ter o animo e a graça de dar um jeitinho numa situação inajeitável. Em vez de cantar o Hino Nacional, a meu ver, o candidato à naturalização deveria passar por uma prova: dar o jeitinho numa situação moderadamente enrolada.
Mas chegou a minha vez de dar um jeito nesta crônica: há vários anos andou por aqui uma repórter alemã que tive o prazer de conhecer. Tendo de realizar algumas incursões jornalísticas pelo país, a moça freqüentemente expunha problemas de ordem pratica a confrades brasileiros. Reparou logo, espantada, que os nossos jornalistas reagiam sempre do mesmo modo aos galhos que ela apresentava: vamos dar um jeito. E o sujeito pegava o telefone, falava com uma porção de gente, e dava um jeito. Sempre dava um jeito.
Mas, afinal o que era dar um jeito? Na Alemanha não tem disso, não; lá a coisa pode ser ou não poder ser.
Tentei explicar-lhe, sem sucesso, a teoria fundamental dedar um jeito, ciência que, se difundida a tempo na Europa, teria evitado duas guerras carniceiras. A jovem alemã começou a fazer tantas perguntas esclarecedoras, que resolvi passar a aula prática. Entramos na casa comercial dum amigo meu, comerciante cem por cento, relacionado apenas com seus negócios e fregueses, homem de passar o dia todo e as primeiras horas da noite dentro da loja. Pessoa inadequada, portanto para resolver a questão que forjei no momento de parceria com a jornalista.
Apresentei ele a ela e fui desembrulhando a mentira: o pai da moça morava na Alemanha Oriental: tinha fugido para a Alemanha Ocidental; pretendia no momento retornar à Alemanha Oriental, mas temia ser preso; era preciso evitar que o pai da moça fosse preso. Que se podia fazer?
Meu amigo comerciante ouviu tudo atento, sem o menor sinal de surpresa, metido logo no seu papel de mediador, como se fosse o próprio secretário das Nações Unidas. Qual! O próprio secretário das Nações Unidas não teria escutado a conversa com tão extraordinária naturalidade. A par do estranho problema, meu amigo deu um olhar compreensivo para a jornalista, olhou para mim, depois para o teto, tirou uma fumaça no cigarro e disse gravemente: “O negócio é meio difícil...é...esta é meio complicada....Mas, vamos ver se a gente dá um jeito.”
Puxou uma caderneta do bolso, percorreu-lhe as páginas, e murmurou com a mais comovente seriedade: “Deixa-me ver antes de tudo quem eu conheço que se de com o Ministro da Relações Exteriores.”
A jornalista alemã ficou boquiaberta.





Friday, December 23, 2005

DADOS NO AR

Rafael Prosdocimi

“Quem é você? Diga logo que eu quero saber o seu jogo, que eu quero morrer no seu bloco, que eu quero me arder no seu fogo...”

Não diga, silêncio. Quem é você, é uma pergunta feita e só. Feita para que dali surja outra pergunta. E outra e outra. Já surge alguém na minha vista. Outras, algumas, poucas.
Nesses dados suspensos no ar, na vida. Dados que são belos enquanto no ar, enquanto não são ainda nada, e mesmo tudo, e qualquer coisa que eu quiser. Não precisa ser carnaval, não precisa de máscaras, mas não me diga quem é você. Pelo menos não ainda. É belo falar com uma mulher, pensar nos seus jeitos, sem que ela exista, sem que haja um nome, e manias, e medos. Acho que é essa a minha sina, o meu pecado, a minha cruz. Viver de desconhecimento, da ilusão que é mortífera, a que quando revelada, desfaz todo o nó da vida.
E você me vem agora, dizer do pai, do futebol, dos termos psicológicos, de uma paixão passada. Ah, moça tenho um desejo muito enorme de saber quem é você e não saber, e que você me perdoe, por isso, de tão tolo e covarde. Você já me conhece, não seria algo novo. Você não é uma desconhecida, nunca foi, é uma mulher conhecida, mas um mistério, que apenas me suspende, um pouco, do Tédio.
Não sou atencioso com você como quem escolhe ser atencioso (gentil ou amável) e essas detestáveis coisas. Você me escreveu coisas tão belas aqui, que deu gosto nisso tudo, nesse barulho, nesse som que ando e andas fazendo. “Anônimo disse...”. Anônimo é uma pessoa, alguém que não diz o nome. Ah... Mas atrás da minha tela, na frente da sua, jaz uma mulher que lembra, sorri, e fica em dúvida. Lembra talvez dos nossos momentos. Sorri das minhas gracinhas, tão pontuais que chegam já na beirada, no cume do sorriso, e esticam os lábios, de lado. Mais um pouco ainda. A dúvida, dessa revelação lenta, dolorosa, viva. Vejo carne, e sangue nas suas palavras. Um sangue seco.
“Ganhei o dia com o seu comentário”. Essa sua colocação foi como um gancho de esquerda, nos rins, seguida por um murro na cara. Um golpe (será, premeditado?) que derruba. Essa frase tão minha. Esses dias que só eu perco. E perco com toda a força de quem se faz perder. Ninguém mais me faz perder os meus dias, além de mim. E se você não me fez ganhar o dia (acho que não, ando “expert” em me derrubar) conseguiu, ao menos, revitalizar algo que se apagava (espero que não para apenas um último suspiro). Eu que uma vez tive coragem de mandar para uma moça, que poderia, em termos, ser você, a frase musical “Você me ligou naquela tarde vazia e me valeu o dia”, com toda a breguice do mundo e mais uma vez vejo você me valendo o dia, em mensagens postadas no meu blog (eu que tinha tanta vocação pra nunca ter um blog na vida).
Num outro comentário, a senhorita me mandou ler o texto da Marina Colasanti (não entendi, em absoluto a ligação com o outro texto que te mandei, da desilusão, do Thomas Mann). Mas esse texto lindo que diz “a gente se acostuma, mas não devia”. Essa frase mágica, frase que nos desperta do que chamamos: realidade (“ta lá um corpo estendido no chão”, violência, descriminação, misérias carnais, espirituais, mediocridade, falsas vontades, e quando vontades, só as de superfície). Frase que lembra que antes de acontecer, nós nos acostumamos e não devíamos. E de costume em costume logo estaremos casados com qualquer coisa, alimentando bactérias, filhos e vírus todos esses seres que num futuro próximo só pensarão em nos sugar toda a energia, e também trabalharemos em qualquer coisa que não vale a pena dizer, levando menino ao zoológico, e ao fim do dia sentando numa cadeira com “a boca escancarada cheia de dentes”. È esse costume que não quero. É isso. É o número que saí dos dados no ar. E o numero que fica. E consome.
Não mais dados no ar. Sei lá se suporto isso de dados cravados no chão.
Que os dados permaneçam no ar. Mas a gente também se acostuma com a solidão e a inquietude e também não devia. Assim como nos acostumamos com um corpo ao lado, e a segurança do corpo ao lado, as nossas convicções, os nossos escuros preservados e distantes, lacrados. Quantas vezes não vejo casais, e por um segundo sinto ciúme dessa cumplicidade, por um segundo não me pergunto quem seria o otário da situação, e o quanto não estarão eles Mortos, enquanto de cá tomo minha triste cerveja, e falo qualquer tolice tentando profundidade.
Você, moça, acaba despertando esse meu Ouro mesmo que Tolo e que brilhe apenas à meia luz.

Tuesday, December 13, 2005

ERRO E ACASO

Pensei nessas meninas bonitas, sempre elas que retiram das minhas vontades, qualquer energia necessária para ser um revolucionário perdido, nesses anos 2000. Alguém para mudar o mundo, salvar o planeta do terrível e maléfico “Pequeno Burguês”. Essa entidade que vem e invade nossos corpos e mentes. Essas meninas, que esvaziam minhas ânsias revolucionárias, andam em pleno dia, em qualquer lugar, com uma calculadora na mão. Uma menina que, ao te conhecer, faz as contas: dinheiro, lugar que o pretendente mora, interesses, ambição, “filho de quem” e por aí vai. Somam tudo e pensam se estão interessadas ou não. Tira-se então, a partir dessas contas, a porcentagem de tesão, da vontade, do amor que será despendido. E mesmo as meninas feias, e as pobres, e as japonesas e turcas, fazem tudo a mesma coisa. E até talvez os meninos, e eu, quem sabe. Qual a companhia mais cômoda para você? Esse amor que é geográfico, monetário, racial e narcisista.
Vejo, em todas as estações do ano, e com mais continuidade que o suportável, casais mecânicos, como qualquer outra engrenagem de um relógio velho, ou de uma maquinaria qualquer. Um casal que funciona por procedimentos. Se...Então. Esses casais que se engolem, que se agüentam como o menino doente que toma o remédio amargo, apenas porque é pior ser consumido pela doença e morrer. Parece que a vida, em casal, só pode ser essa a do suportável e nada além (retirem, por favor, a hipocrisia da sala). Acho sempre que as pessoas não agüentam a solidão, (também não precisam amá-la, e disso, sei eu). Basta apenas dialogar com ela, um pouquinho que seja, basta entender que falar, fazer som, não significa comunicação, entendimento, compreensão e tudo isso que nós, psicólogos de merda (como diria o Chico) sabemos. Basta gostar um pouco dessas coisinhas, que passam na nossa cabeça, quando estamos sozinhos. Acho que então teríamos mais o que dizer, mostrar e sentir. As pessoas não agüentam a solidão porque no escuro de seus quartos, junto a suas sombras, elas têm que se haver consigo mesmas. E disso não “dãomos” conta.
Foi andando na rua, sozinho, num sábado, que percebi, senti na verdade... (como quase sempre acontece comigo). Senti com todo a força do mundo, como é um privilégio ser filho de meus pais. Esses propagadores do erro, da estupidez, da paixão. Os meus pais. Esforço por lembrar dos dois juntos, discutindo futilidades, andando na rua no domingo, imersos nas contas no cotidiano, na vida real, de mãos dadas vendo televisão no domingo. Nunca consegui imaginar nenhuma dessas cenas. Nada, ao pensar nessas situações banais, vem de pensamento, nenhuma imagem possível, nada que demonstrasse uma coerência admitida, um arranjo provável para a existência hermética desses dois. Sempre pensei neles como um erro, via isso com tristeza, acreditando na harmonia e na coerência que se faz necessário entre um casal. Desse eterno silencio e calma e quietude e cessão e paz e a quinta de Mozart.
E voltava para essas meninas, que, com calculadoras, pensam quantos anos são precisos namorar, noivar, casar, ter filhos. De quanto dinheiro precisarão elas para sobreviver, para estarem vivas. Retornava a imagem para os meus pais, e em como, de fato, eu não sou filho dessas mulheres que fazem contas, e muito menos desses homens que se tornam números digitais, com uma facilidade acima do normal. Se minha mãe usa a calculadora (e ela usa), é só depois de ter cometido todos os erros da vida, e disso, eu tenho muito orgulho.
Mas os dois tão profundamente separados na vida, ele tão intelectual quanto um conquistador, arrogante e pretensioso, disposto a mil lorotas metafísicas. E minha mãe uma perfeita patricinha, mal-acostumada com esses namorados babacas que lembram o Travolta, nos tempos da brilhantina. Tão leves e alegres. Ela provavelmente queria uma casa grande, e jardim, e batedeira elétrica e um carro e casa em Cabo Frio, aquele paraíso na Terra. E ele provavelmente não queria nada, pois penso que ele nunca quis nada dessas coisas.
Esse erro que me faz alterar a frase, “errar é humano”, reforçando que: “apenas errar é humano”. Todo o resto conseqüente, todos os acertos, diz apenas das máquinas, dos procedimentos frios e enfadonhos. Ela se apaixonou por esse rapaz, achando graça talvez nas suas maluquices (ah, e se disso eu não sei) e ele a achou linda demais, linda pra ficar olhando muito tempo, meia eternidade talvez (ah... mas não apenas). Eles cometeram esse erro de ficarem juntos. E foi um erro tão profundamente belo que acabou, num acaso, gerando o primeiro filho. Meu irmão nasceu no mais lindo encontro do erro com o acaso, o erro da paixão com o acaso da concepção forçada pela Vida, sem a violência provocada pela razão e pela calculadora, sem a conta das fraldas que nunca deveria se feita. E depois veio eu e minha irmã, e a ponta desse acaso nunca deixou de visitar nossos nascimentos. Eu, desejo concreto de minha mãe, desconhecimento assentido de meu pai, e minha irmã um pouco filha dos erros dos instrumentos (única parte de humanidade que cabe aos pobres). Filha do DIU.
Que alegria saber que foi de humanidade e vida e amor, e que de tudo isso vim ao mundo, e agora, e agora, querem que eu me enamore, me case com essas que rastejam e passam suas lágrimas, seus poentes, todas as luas, a fazer contas?
Eu não sei muito mais dessa minha vida. Um sincero, não sei o que eu quero, não sei do acordar bem disposto, só sei que luto e perco todos os dias com o “pequeno burguês” que acaba me levando pra tomar um chope, e me faz achar que a vida é leve e boa e que é isso aí.
Não sei pra onde vou, nem com quem, mas sei (e disso agora, EU SEI) que não vou por aí e nem com você, mocinha, de calculadora na mão.

Monday, December 05, 2005

Eu também Raduan, eu também...

Ventre-seco- Raduan Nassar
"(...)Está muito certa aquela tua amiga frenética quando te diz que sou "incapaz de curtir gentes maravilhosas". Sou incapaz mesmo, não gosto de "gentes maravilhosas", não gosto de gente, para abreviar minhas preferências.(...)
Pouco se me dá, Paula, se mudam a mão de trânsito, as pedras do calçamento ou o nome da minha rua, afinal, já cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho, dou-lhe o meu silêncio (...)
Não me telefone, não estacione mais o carro na porta do meu prédio, não mande terceiros me revelarem que você ainda existe, e nem tudo o mais que você faz de costume, pois recorrendo a esses expedientes você só consegue me aporrinhar. Versátil como você é, desempenhe mais este papel: o de mulher resignada que sai de vez do meu caminho".

Thursday, November 24, 2005

Posicionamento

Como é importante o posicionamento. Ocupar um lugar na terra, no momento certo, garantir o deslocamento preciso. Saber não estar em situação de impedimento. Em segundos, se movimentar e aparecer ali, onde não havia ninguém e garantir alegria. E a dor dos outros. Penso em como ela se colocava na minha vista, naquela semana, como ela aparecia no meu campo visual como se aquele caminho, que não era o do seu cotidiano, o fosse, e aí eu, eu no meio campo não lançava a bola, sempre com medo do tal impedimento. Impedido. Zero a zero.
A única alegria dessa segunda-feira, que podia ser até fevereiro, é saber que por um mistério, que a cada dia penso continuará eternamente um mistério, ela confiava nos meus lançamentos que nunca partiram. Imagino ela, ali, sempre no ponto certo, na frente, mas na mesma linha dos zagueiros, só esperando o lançamento e eu, e eu, eu...eu jogo pra trás, não confiava nas pernas, prendia o lançamento, e pensava que logo, logo apareceria uma outra chance. Ela voltava, se posicionava perfeitamente, sem ser óbvia, mas além de desmarcada, se encontrava continuamente bem posicionada; e durante uma semana ficou na minha frente e desenvolvi algumas tabelinhas que não deram em nada, e alguns passes errados, e tropeções, e ela subitamente (claro que não foi subitamente) saiu do campo, da visão, da minha vida efetiva.
Permaneceu com outro uniforme me torturando e lembrando que alguns passes devem ser feitos num momento tão único que dói, dói de ter lançado a bola no ar, na vida, solta como a um destino próprio que seria aquele nosso. Como aquele primeiro e único lançamento que fiz, e que ela com toda graça do planeta respondeu ultrapassando-me em classe e categoria, e fazendo o gol.
È o único pensamento bom que resta. É o que me sobrou daquela menina, desmarcada, sozinha naquela cantina lendo um livro, enquanto eu passava. Torturo-me com essas lembranças. E o que me dá um pouco de sal, de sumo, de mel é saber que por um momento ela confiou nas minhas pernas, no meu ir que acabou não “fondo”. Essa certeza que só existe em mim, mantém uma certa esperança. Arruinado pelo êxito, prorrogador de prazer e auto-sabotador, vivendo do que nunca aconteceu, um tipo vil, baixo. Um meta analisador da vida humana, um diretor de fantoches a brincar com a vida. E foi o momento que passou. Ela deveria desexistir para mim e ser chata e triste e não permanecer nas minhas angustias daquilo tudo que eu deixei de ter sido antes de ser.

Sunday, November 20, 2005

O que fazer com esse pequeno burguês que mora dentro da gente?

É o que eu me pergunto todos os dias.
Ando na rua com um medo enorme de que alguém, um pobre, me veja dentro do “meu” carro e venha discutir, porque eu tenho esse carro, porque diabos ele é meu, e não dele. Tenho medo de não ter argumentos e nem razão. Ando e vejo nesses olhos que eles não se perguntam isso, o que me dá alivio e uma silenciosa angustia posterior: Isso porque: eu me pergunto dessas coisas. Na rua, parado no sinal, a ouvir um samba, tranqüilamente, eles vêm pedem aqueles metaizinhos, não lhes dou nada e eles passam e pedem ao próximo carro. Não me assaltam, não me esquartejam em plena Afonso Pena às 11:30. Lembro do Oscar Wilde e da desobediência como virtude original do homem. Eu não tenho essa certeza de que o carro é meu, e também a carteira, o dinheiro e os olhares delas, os sorrisos. Nunca tive essa certeza. Quando criança tinha um medo enorme de sair na rua comendo alguma coisa, e de que me fosse pedido isso que comia, não seria um simples medo de ser assaltado, mas o medo de perder no sorvete, no salgado, todas as minhas frágeis convicções, que nos outros eram tão fortes. Sempre desconfiei dessa história de ter tudo aquilo que a necessidade (vaidade) me permitiram ter, porque mamãe trabalhava muito, porque se isso é verdade (e até hoje penso que em certo sentido sim) o seu oposto também deveria ser verdade, ou seja, quem nada tinha, não trabalhava e era essa a razão. Um jovem marxista desconfiado das leis da vida, da moral, do que deve ser feito. Sempre achei (e ainda acho) que assaltar era só uma maneira de descontar as privações e desprezos colhidos todos os dias, na rua, no lixo. É claro que não significa que concorde e aprove abertamente os assaltos, só não tenho argumentos morais, lógicos e sociais pra defender a tese contrária. O roubo é a retirada de algo de outra pessoa, algo que não pertence a quem rouba. Agora questiono se pertence a quem é roubado. Nunca acreditei nisso de que bandidos são bandidos e homens de bem são homens de bem. Como se no inicio fosse tudo igual (sendo que obviamente nunca teve inicio), mas se o tivesse as condições já seriam tão diferentes que nem o mais míope dos juízes poderia legitimar tal jogo. Na corrida de 100 metros rasos, um larga no metro 0, lhe é cortado a perna, e amarrado ao seu corpo 30 quilos de chumbo. Eu largo lá no metro 40, estou bem alimentado e tenho o corpo em forma. Alguns saem lá no metro 98 e se encontram numa Ferrari.
E isso de homens de bem e de bandidos esconde todas essas questões de antes da corrida, como se no momento inicial estivéssemos todos no mesmo lugar, e alguns preferissem a favela, outros preferissem a machadinha, a arma, a pobreza, o crime, o crack, quando com tal facilidade pudessem escolher a bela casa na montanha, a gerência, o scotch 21 anos nas festividades de fim de ano. Essa é das histórias mais mal-contadas de todas. E pena que tantos acreditam nela. E sacam logo um caso escabroso pra temperar a vida, algo que envolvendo moças inocentes, casas vazias, bandidos inescrupulosos, e estupros seguidos de muito sangue. É interessante isso de exemplos. Como disse Max Weber, os jornalistas e advogados são desses que um único mau exemplo levam a ruína todos os outros. Assim como os pobres. O pai rico (da dupla pai rico/pai pobre) quando estupra a filha é um caso único, diferente, o caso particular de uma pessoa desequilibrada; agora, quando o pai pobre faz o mesmo com sua filhinha... “Olha lá, essa gentinha não tem jeito mesmo, só matando...” Um exemplo particulariza e outro generaliza. E viva a mediocridade nossa de todo dia.
O pobre é desprovido de qualquer subjetividade possível e o rico de qualquer sociabilidade, sendo que nessa divertida brincadeira, tratamos os pobres como problemas sociais e os ricos (tão filhas da puta quanto, ou ainda mais, pela separação do “reino da necessidade”) enquanto seres desviantes. “É favelado, mas honesto”. Como se a honestidade fosse a exceção. E esse pequeno burguês que mora dentro da gente vai enchendo o peito quando percebe que o mundo é esse aí, e que o negócio é agora, que dá pra levar 25%, e é só ficar esperto olhar pros lados e tomar conta do que é seu. Esse serzinho medíocre e egoísta. Ele mora, invade e expulsa qualquer coisa outra que exista por aqui, e não se assuste, o pequeno burguês já está em todo lugar. É difícil, pra minha pessoa, fazer qualquer coisa que presta na vida quando uma menina bonita na rua vale um dia, ou quando há Rubem Braga na prateleira e pornografia livre na Internet. E o pequeno burguês invade a vida e se estabelece. Qualquer relação com uma outra pessoa ameaça seu domínio e ele vai esvaindo a vida em todas essas horas.
Espero de fato que eles continuem pobres e que nunca me perguntem porque eu tenho um carro e eles não. Talvez devêssemos rezar apenas por isso... “Meu bom Deus que eles nunca descubram nada dessa sujeira toda, senão vem pegar suas coisas que esqueceram aqui em casa”. A maior sacada do capitalismo, e obviamente uma sacada psicológico, foi jogar tudo para o individuo, a consciência e coisas que indicam que somos todos unos e diferentes. Como tal problema é meu e não é nosso, e não é de um sistema e não é de uma estrutura, não há muito o que fazer. “Pobre é tudo assim mesmo”. A conta, por favor...

Thursday, November 17, 2005

Pais, uma fraude necessária

Quem me dera pretender, nessa noite de domingo, escrever um belo tratado sobre a paternidade, contemplando, entre outras coisas, questões que mexem naquele vespeiro que Sigmund Freud trouxe a luz. Quem dera entremeando todos esses complexos que envolvem investimentos libidinas, parentais, pudesse eu destrinchar um lindo arranjo argumentativo. Não. Direi eu apenas de algumas lembranças (não só as minhas) tristes, e vivas. Direi apenas de alguns pais frágeis, fracos e tolos, mas que são tudo para os pequenos.
Um homem é xingado e humilhados dia após dia, mas que volta pra casa sorri e conta um caso bonito pro filho, algo que por acaso teria ocorrido com ele no escritório, não fosse a vida real, não fosse ser ele apenas o faxineiro de tão prezado local. Ele conta um caso complexo de bem e de mal, uma ação justa, um bem realizado, algo no qual o narrador é o próprio herói, mas primeiro e antes espectador. Esse pai que depois de ver alguma situação de sofrimento de uma linda senhorita, no final a salva de um cafajeste imaginário.
E na cama, o filho deitado ouve aquilo tudo e dorme um sono lindo, no qual ele faz algo belo e justo. E no fim do dia, ainda sonhando, esse menino vai pra casa e se deita com uma mulher. E a vida é linda, os pais são fortes, nos defendem, e amanhã tem aula, talvez prova, de estudos sociais. Deveria ter prestado mais atenção nessas aulas.
Sei que o pai é fraco, volta pra cama, pensa naquelas contas e no jogo do botafogo, faz as conta e vê que talvez dê pra levar o menino no próximo domingo. Talvez, quem sabe.
Mas um dia o filho acorda e vê que o pai é um fodido, como quase todos.
O menino que já não é, vai descobrir onde o pai trabalha, o que ele faz, quanto ele ganha e tudo mais. Vai descobrir da infelicidade dê seus pais e das mentiras. Um dia de sofrimento.
Mas essa fraude, fraude aliás que é todo e qualquer pai. Todos, os broxas ou galinhas, e ricos ou podres, e pobres ou cobiçosos, cornos, vadios, viados e covardes, pelo menos em algum sentido são todos fraudes. E algum dia achamos que eles eram alguma coisa que não um pouco disso tudo aí para trás. E não só isso, é claro.
Talvez aí culpamos o pai e queríamos que ele pelo menos fosse diferente, honesto, e que nos contasse sobre sua vida tediosa e miserável, queríamos a verdade doesse a quem doesse; já agora percebemos o quão mentirosas são essas palavras. Hoje acho que esses pais são sempre necessários, é preciso em algum tempo crer nessas figuras, por mais que a desilusão venha e estraçalhe tudo e que isso doa. Lembro de meu pai e de como sentávamos em um bar e ele chorava. E de como isso nunca estava nos scripts de nenhum dos filmes que víamos. E ele ainda diria que nós não éramos filhos dele, mas sim filhos do mundo, da vida. E abria o peito e mostrava todas as feridas, muitas das quais eu nunca entenderei, nunca sentirei pra ele. E ele acabava com toda a farsa e aparecia, frágil e vivo. Mas sempre queremos os pais mortos e fortes, lembranças de homens corajosos, dispostos a tudo na vida. E é isso. Só se é ateu tendo acreditado com toda a força na existência de Deus.

Wednesday, November 16, 2005

Série: Se ninguém leu Rubem Braga, Sérgio Porto ou Antonio Maria, porque haveriam de ler, afinal, Rafael Prosdocimi...

Parábola do Homem Rico
Vinicius de Moraes

Todos são poetas à sua maneira, mas é bem possível que, se todos o fossem realmente, não houvesse mais lugar para a poesia. Porque a poesia é a amante espiritual dos homens, aquela com quem eles traem a rotina do cotidiano. A poesia restitui-lhes o que a vida prática lhes subtrai: a capacidade de sonhar. O desgaste físico e moral imposto pelo exercício das profissões, em que o ser humano deve despersonalizar-se ao máximo para atingir um índice ideal de eficiência – eis a grande arma da poesia. Depois que o banqueiro passa o dia manipulando o jogo de interesses do seu banco, vem a poesia e, na forma de um beijo de mulher, diz-lhe que o amor é menos convencional que o dinheiro. Ou o bancário, que passa o dia depositando e calculando o dinheiro alheio, ao ver chegar a depositária grã-fina, linda e sofisticada, sonha em tornar-se um dia banqueiro. E fazendo-o, invade o campo da poesia. Pois tudo é fantasia. Cada ação provoca um sonho que lhe é imediatamente contrário. Tal é a dinâmica da vida, e sem ela a poesia não teria vez. Isso me faz lembrar certa noite em Paris, num jantar com meus amigos Marie-Paule e Jean-Georges Rueff, em companhia de um grande comerciante francês, um homem super-rico, dono de um dos maiores supermercados da França, superviajado, superlindo e casado com uma mulher superlinda. Nós nos havíamos conhecido alguns anos antes, em Estrasburgo, onde ele e os Rueff então moravam, e um pilequinho em comum nos havia aproximado, depois de um papo de coração aberto que nos levou até a madrugada. O assunto agora era o mesmo, a poesia, e o nosso prezado homem rico, depois de discutirmos um pouco a extraordinária vida desse jovem gênio que foi o poeta Jean-Arthur Rimbaud, fez-nos ver que não há casamento possível entre o Grande Lírico e o Grande Empresário: ou se é uma coisa, ou se é outra. O verdadeiro homem de empresa ao mesmo tempo inveja e despreza o poeta, uma vez que não se pode preocupar além dos limites com as palavras da poesia. Elas são, para ele, o reverso da medalha: o ouro impalpável. E como as mulheres – dizia-me ele ao lado da sua – são seres devorados de lirismo, sobretudo no amor, o capitalista tinha que pagar seu preço ao artista: e esse preço, via de regra, era a própria mulher. – Elas ficam conosco porque nós representamos poder aquisitivo, podemos dar-lhes as coisas de que necessitam para ficarem mais sedutoras, terem mais disponibilidade para cuidar da própria beleza. Mas essa beleza, elas a entregam a vocês, os artistas. No fundo, as mulheres nos odeiam. O que não impede que vocês sejam todos gigolôs do capitalismo. Ponderei-lhe que já conheci vários homens de empresa que tinham passado na cara mulheres de artistas, mas o nosso prezado homem rico não se deixou perturbar e me disse assim: – É porque não se tratava de artistas verdadeiramente grandes e puros. Seriam, provavelmente, contrafações. As mulheres sentem. As mulheres só abandonam um iate em Saint-Tropez por um apartamentozinho na Rive Gauche à base do amor integral. E esse amor, só o artista verdadeiramente puro pode dar. Nós, os grandes empresários, temos um outro tipo de pureza. O nosso maior amor é o dinheiro e, através do dinheiro, o poder. A mulher vem na onda. – Eu conheci e era amigo – ponderei-lhe – de um grande poeta que foi também um grande homem de negócios. – Grande mesmo? Duvido. Esse tipo de dualidade cria uma profunda infelicidade pessoal. Não se serve ao Deus e ao Diabo ao mesmo tempo. Admirei-lhe, não sem uma certa sensação de desconforto, a franqueza e honestidade – ele, um belo homem, em plena força de seus quarenta anos, ao lado de sua mulher extraordinariamente linda, com um solitário no anular quase tão grande quanto um ovo de codorna, a nos escutar com uma atenção diligente. Fechado o restaurante, resolvemos esticar na boate New Jimmy's. O nosso prezado homem rico fez uma grande volta para passar diante do seu empório, a fim de ministrar-me uma aula: todo um quarteirão de supermercado, com três pavimentos servidos por escadas rolantes e centenas de vendedores e vendedoras com ordens expressas de serem simpáticos, mas impessoalmente, nunca além do limite, de modo a não retardar com conversas ou excessos de cortesia o fluxo incessante das compras. – Eu tenho uma média de três a cinco pessoas que são presas diariamente pela minha polícia, por furto de objetos. Em geral, depois de pregar-lhes um susto, eu os deixo ir. Depois, na direção do seu Rolls-Royce, cujo chofer dispensara, tirou do bolso do paletó a cigarreira da prata e com gestos precisos acendeu um cigarro e, olhando-me pelo espelhinho da direção, me perguntou com uma voz que não permitia réplica: – Não é uma beleza, poeta?

Monday, November 07, 2005

Tréplica

Desculpa, mais uma vez pela demora Chico, mas você sabe que eu não sou muito disciplinado nem pontual, e também queria essa resposta natural e familiar, algo que faltou à outra. Eu estava deveras sóbrio, chato e sozinho. Continuo sozinho, mas agora levemente entorpecido, então tudo flui melhor e acabo ficando mais ousado, o que não é bom apenas na frente das fêmeas. Deixo que essa carta assim flua, alcoolizada, leve e se tudo correr bem, banal.
Quanto à ciência nunca duvidei dessa sua aorta cientifica pulsante, e sempre me deu um pouco de inveja desse seu amor, por isso já havia percebido, com um pouco de tristeza, esse seu lento desprendimento. Tem uma coisa que um italiano diz, Antonio Gramsci, que é que os cientistas se preocupam muito com descobrir coisas novas quando deveriam se preocupar também em divulgar melhor as suas descobertas, e divulgá-las a uma maior gama de pessoas, transformando o senso comum em bom senso. Somos tentados a glória do primeiro lugar, do ineditisimo, e esquecemos disso, que na sua carta você diz, diferencia o norte (aí onde você está) do sul, daqui. Ou seja, a Europa já é mais receptiva a descobertas cientificas do que nós daqui. E penso, até mesmo enquanto psicólogo, que não damos devida atenção às práticas moralistas e religiosas que temos aqui, algo que deveria ser inteligentemente investigado. Sei que hoje nessa nossa cidade devemos ter algo em torno de 2 a 4 vereadores evangélicos, e pois como é sabido, eles não são muito a favor nem do álcool, e nem das marquinhas de biquíni (e se resolvessem baixar uma lei proibindo essas coisas, e aí o que seria da gente?). Falta no mundo uma boa divulgação cientifica num sentido de ser realmente boa, mas também interessante e popular.
Quanto a questão da temperatura ideal, tendo a concordar, mas penso que você não deve ater-se muito a essa informação, pois sei que haverá, aí, de esfriar ainda e aqui de esquentar. Já acho isso até meio bobo, mas que nos estados críticos faz sentido, isso faz.
Eu queria uma carta leve, mas ousarei mais uma vez te provocar quanto a sua saudade. Ando com essa tendência meio perversa, mas sei que acabo de chegar do Cartola, hoje domingo, fui sozinho, uma amiga - dessas que se tocassem campainha na minha casa fora dos horários civis eu acabaria abrindo a porta e não me responsabilizando por coisa alguma- me acompanhou numa cerveja pré-ida ao cartola no bar em frente. Lembra do bar em frente? Esse é o da frente do Tatiara. A moça só me acompanhou na pré-cerveja, o que foi uma pena. Fui ao Cartola sozinho e lá vi uma senhorita que me lembrou prontamente vossa senhoria, pois essa te deixaria louco. Morena jambo (reconheces essa cor?) cabelos pretos e curtos, um metro e 73 e um jeito de quem sabe trabalhar as ancas e todo o resto. Apesar de não ser ‘forte’ (daquele jeito que você gosta), era esbelta (mais pra mim e pro Flavio), mas sei que você se apaixonaria, muito por causa dos cabelos. E lá também se encontrava aquela pela qual você já derramou suspiros e versos, aquela de nome igual ao da cantora de sobrenome “o rei dos animais”. Ela estava linda.
Chico o sangue não corre sozinho em minhas veias, há, no dia de hoje, moléculas de álcool, mas eu, eu corro sozinho (um pouco por opção) nessas nossas ruas. Sei que minha solidão não é nada frente a sua, mas tenho certeza que tudo passará, e no final sobrarão gratas surpresas e alegrias (acho que isso é do Braga). Ando me pegando a imitá-lo indiscriminadamente. Tenha uma dele, que secretamente acho a mais bela, na qual diz (momento para copiar do original):
“E se entre meus leitores há alguma pessoa que na passagem do ano teve apenas um amargo encontro consigo mesmo, e viveu esse instante na solidão, na tristeza, na desesperança, no sofrimento, ou apenas no odioso tédio, que a esse alguém me seja permitido dizer: ‘Vinde. Vamos tocar janeiro, vamos por fevereiro e março e abril e maio e tudo o que vier; durante o ano a gente o esquece e se esquece; é menos mal (...) Coragem, a Terra está rodando; vosso mal terá cura. E se não tiver, refleti que no fim todos passam e tudo passa; o fim é um grande sossego e um imenso perdão’.”
Só pra finalizar amendoado diz mais da forma e não da cor, e não é arenque e sim Arendt, Hannah Arendt. Uma mulher dessas que apesar de feia deixaria homens como eu e você (ou seja, homens tolos) seriamente apaixonados. Uma mulher mais inteligente que a gente.
Só espero amanhã dar uma retocada nesse texto, pois sei que você é um puritano quanto a nossa língua e procurarei reduzir os erros. Espero conseguir. Boa noite.

Wednesday, November 02, 2005

Cara Professora,

Digo a ti, agora em meados de novembro, que acho que perderei esse ano. Talvez não só este. Penso que isso se deve ao fato de que muitas daquelas enfadonhas aulas iniciais, de fevereiro e março, eu acabei “matando”. Era como se eu negasse a aprender essas coisas que você nos ensinou lá no inicio. Sei que antes era mais simples, mais fácil de entender, mas como não estava na sala, nada aprendi. Agora ando me esforçando, nessa parte final, que até é mais complexa, e com isso tenho me saído bem nessas difíceis provas finais. A verdade é que as resolvo habilmente até chegar nas contas mais óbvias, mas aí vejo que faz falta aquilo, que quero acreditar, por preguiça, perdi. Tenho, sobretudo, dificuldade pra dividir, multiplicar e adicionar. Dividir é o que mais me atrapalha. Sempre foi.
Sei, professora, que você se esforçou, mas de fato eu não quis aprender e agora pago por isso. Sei que leio esses filósofos alemães, esses psicanalistas franceses (só no idioma original), eu entendo das possibilidades da mecânica quântica e das nanociencias em explicar muitas de nossas dúvidas sobre a natureza da natureza; mas de fato as coisas só são compreendidas até certo ponto, depois, ou melhor, antes desses pontos eu me complico. Explicarei melhor.
Agora na primavera desenvolvo bem os raciocínios, mas me faz falta aquilo do final do verão passado. Agora ficou muito difícil aprender isso de sorrir, e de gostar, e de ser amigo, e de amar. Essas coisas simples que achei, no inicio do ano, que, lá pra Agosto, com a leitura de Vinicius e de outros poetas acabaria aprendendo, afinal todo mundo aprende isso, uma hora ou outra. Era o que pensava. Desconfiava que essas lições seriam aprendidas naturalmente mais pra frente, até porque, pensava eu naquela época, ouviria todas as músicas de amor e que amar viria como uma simples conseqüência. E depois estudaria outros temas como a amizade de verdade e pensaria nesse singelo sentimento, e quando fosse preciso teria confidencias sérias a trocar com alguém num dia frio. Mas faltei a suas aulas e tentei em vão aprender a amar lendo. Esse método posterior não auxiliou a aprender isso, isso que é mais arcaico. Fracassei. Hoje não sei oferecer um ombro amigo e fraterno, disposto a ouvir as mil e uma loucuras de amor desses outros, pois eu mesmo não sei como se faz dessas coisas. Declamações de amor, confissões, drama. Tenho vergonha dessas pessoas. Tenho vergonha disso tudo e acho ridículo fazer essas bobagens, loucuras de amor, da mesma forma, como sentiria vergonha vendo um senhor a brincar com um velotrol.
De fato antes já me achava muito melhor que os meus colegas e resolvi matar as suas aulas. Esperaria algo mais interessante. Afinal você nos ensinava a abraçar, conversar, chamar de amigo, sorrir e dizer bobagens necessárias na rua, em voz alta e a como desprezar esses outros olhares que nos faziam ter vergonhas. Agora sei que me falta isso, que é básico e essencial. Essas pequenas coisas, gestos.
Cara professora, só escrevo pra dizer que tenho certeza, quase chegado o fim, que perderei esse ano. Espero que não fique aborrecida. Sei que tinha esperança quanto a esse meu futuro. Mas tenho absoluta certeza, que se nessa prova final pedisse, para ligar a algum amigo pedindo um conselho, ou uma ajuda, eu acabaria gaguejando e não saberia dizer nada. Se tivesse que pedir a ele que me acompanhasse numa cerveja, pois estaria triste eu teria, outra vez, vergonha e nada do que eu diria viria do coração, da alma, da breguice (meiguice) necessária.
Já sinto essa falsidade minha de quem leu Nietzsche e achou realmente que os fortes aspiram a separar e os fracos a se juntar. Essa mentira do Cowboy que salva a mocinha e foge dos seus braços para os fogosos braços dos rios e das estradas. Acreditei nisso de autonomia e liberdade. Acreditei até agora, até o lugar no qual todas as minhas equações desembocam - outras pessoas - e é por isso que reconheço meu retumbante fracasso escolar.
Peço um ultimo favor, pois não devo mais aparecer na sua sala. Por favor, diga a elas, diga às minhas colegas que pelo amor de deus apenas me perguntem das coisas muito difíceis e complexas. Perguntem-me, por exemplo, do conceito de fundação em Hannah Arendt; e do que é, afinal de contas “eterno retorno” e das implicações para a física newtoniana das descobertas de Einstein; das antimatérias e dos glúons; dos buracos negros e do conceito de sublimação em Freud e Lacan. Qualquer tema que seja difícil, complexo e objetivo. Que elas apenas me perguntem dessas coisas difíceis, mas, por favor, eu lhe suplico, mostre a elas que de fato eu não me encontrava na sala de aula no inicio do ano, se preciso for mostre a lista de chamada, e diga que quando você nos ensinou do amor, da amizade, da gentileza e da bondade eu não me encontrava presente. Principalmente peça a elas que não me perguntem nada sobre o amor. Nunca mais, por favor, senhora Vida...
De seu aluno faltoso e envergonhado...

Sunday, October 30, 2005

Hannah Arendt a 40 graus Celsius, ou apenas uma carta atrasada pro Chico

Estava sentado estudando nesse quente feriado. Estudava com o prazer de quem faz algo que gosta. No meu caso procuro, na junção de palavras, conceitos que me permitem (presumo eu) entender a realidade social, política, psicológica. Faço isso com um imenso prazer como quem, nesse mesmo dia de feriado, colhe manga num sitio ou faz gol de letra. Faço essa busca por bons conceitos com um prazer que acaba anulando a sensação de trabalho, o que é uma pena, pois como bom cristão (que nunca quis ser e não sou por opção) aprendi (melhor: vivi) que trabalho= sofrer = ser humano. Ou seja, aprendi que não dá pra trabalhar sendo feliz (isso só pode ser coisa de jogador de futebol ou de comunista) o que hoje tem conseqüências, senão desastrosas, sem duvida algumas desgastantes. Como ando fazendo o que gosto todo dia, tenho um pressentimento de que sou um vagabundo. Será?
Sei que nesse feriado de calor e céu azul fui estudar um pouco da espinhosa teoria política de Hannah Arendt. Sentado, logo começo a suar. Esforço-me e acabo alguma coisa lendo e aos trancos e suores vou estudando. Acontece que uma “delas” (essas idéias que não tem permissão de pouso) me invade a cabeça e aí começo a divagar sobre aquelas teorias européias (daí donde você tá Chico) que relacionam a nossa provável e tropical estupidez à incidência perpendicular de raios solares. Suar não combina com estudar, combina com uma porção de coisas, algumas das quais nem poderiam aparecer nesse papel. É fácil imaginar Nietzsche, Kieerkgaard, Schopenhauer e outros senhores com nomes cheios de consoantes, durante um inverno, no velho continente, passando horas “a frio” a estudar e filosofar. Estudar combina com o frio da mesma forma que o frio combina com a angustia. O frio traz o acolhimento e retraimento necessário a qualquer estudo decente. A concentração nas letrinhas e nos numerozinhos, o que seja.
Agora... Aqui no Brasil, nesse calor, num dia de feriado, sentar e estudar, enquanto as células sudoríparas trabalham, é muita persistência. Ainda, sabendo que (como diria o Rubem) “há moças que passam lá fora” o que acaba desmoralizando toda a atividade intelectual. E que essas moças, nesse dia de calor utilizam parcos pedaços de tecidos o que transforma o esforço, de estudar filosofia política, em algo de extra-humano, o que, obviamente, para um filósofo niilista existencialista pseudo-atleticano, não existe.
A partir disso tudo eu então proporia um estudo da relação entre teorias filosóficas e cientificas e o clima (nada muito criativo, já sei Chico), assim como a comida, a estação do ano, a umidade, o jogo do Madureira, o sorriso da Flavia, e a proporção de marquinhas de biquíni na cidade. Penso que teríamos aí boas teorias filosóficas e cientificas. Não dessas que me dizem que eu me diferencio do Chimpanzé em 0,1%. E aí penso no Chico que ta lá na Inglaterra (analisando o que tem nesse 0,1 %). País esse que agora se encontra no outono. País que não tem marquinhas de biquíni. Não tem samba. E os sorrisos são raros e ainda há a inexistência de uma boa feijoada. Não que eu coma muita feijoada por aqui, mas é necessário saber que, a qualquer dia da semana, encontramos uma feijoada por aí, na esquina. Ela deve existir no imaginário, e bem, vez ou outra no estômago. Sei que o Chico ta lá nesse lugar inóspito à existência de alegria, sorriso, batuque e torresminho o que deve fazer dele (que já tinha todo um campo pré-preparado) um puta hiper super-filósofo tristonho. Ateu, cético, agora triste (afinal sem samba!!) penso que o Chico, que agora também escreve freneticamente, vai “dar para um bom intelectual”.
Aproveito pra mandar a critica inicial daquele seu conto do Casamento. Acho que ficou muito grande, a primeira parte da histórica ficou meio chata, mas pelo que vi da segunda parte, isso junto vai criar um fenômeno fantástico, igual ao que aconteceu comigo, num outro dia, quando fui ao Opção. Fui com um certo tédio do mundo e sem esperança de alegria no coração, e acabei encontrando em beijos, abraços e sorrisos uma mocinha de olhos amendoados (não queria ser tão estereotipado na descrição) e pele morena. Isso me lembrou de potencial único daquele lugar em transformar meus desleixos na relação com senhora vida, em amor e tesão. Sei que a diferença, nessa noite, da experiência pra esperança consistiu em um delta positivo. Pouca esperança e uma experiência maravilhosa. O que na verdade acontece ao contrário todos os dias nas sociedades ditas, pós-modernas, na qual a esperança, sempre gigante, não condiz com uma experiência medíocre o que nos leva a uma insatisfação generalizada, mas isso nem mesmo é Hannan Arendt, e sim Agnes Heller e definitivamente não sei o que eu falo mais. È o calor.
Boa noite Chico e que essa carta (email, assim como digitar, não tem o menor senso poético) leve um pouco do calor que tanto conheces daqui, um Fá e um Sol sonoro assim como um tapa no pandeiro (com carinho como se fosse um tapa na mulher amada) e um gole de Skol, ou quem sabe, até mesmo uma Brahma.

Monday, October 24, 2005

Série: Se ninguém leu Rubem Braga, Antonio Maria ou Sergio Porto, porque haveriam, afinal, de ler Rafael Prosdocimi

A estratégia do meu time
Francisco Prosdocimi - http://chicopros.blogspot.com
Creio que não traria prejuízo a este relato se começasse dizendo que também dou valor àqueles que jogam pelo resultado. Cada time tem a estratégia que lhe convém. No meu time, entretanto, temos a filosofia de que um zero-a-zero é mais digno do que um um-a-zero com gol de barriga. A gente perde sim, perde mais do que ganha, mas a vida é assim -- e o futebol nada mais é do que uma mera representação da vida. Nos acostumamos com a derrota; e por mais que isso possa parecer algo ruim, garanto-lhe que serve ao menos para dar às vitórias um aspecto mágico e único que gostamos de guardar. Apesar disso, eu evidentemente não diria que gosto de perder: claro que não! Ninguém gosta. Bom mesmo seria vencer todas as partidas, jogando bem e apresentando o futebol arte. Mas sei que a rapadura é doce apesar de não ser mole e dos jogos que participo, devo confessar que perco a maioria. Já perdi inclusive partidas em que tinha tudo para ganhar, que joguei bem, dei bons passes e meti bolas na trave. Fizesse um gol numa dessas ocasiões, ele certamente teria valido por dois e teria motivado o time de forma tão drástica que uma súbita goleada seria inevitável.Por vezes algum de nossos jogadores faz gol de barriga, de canela ou até de mão, mas ele sabe que não é isso que esperaríamos e já vai andando para o meio de campo com a cabeça baixa. Os companheiros sequer batem em suas costas: não há comemoração. É que tais gols algumas vezes acabam por acontecer, a despeito da vontade dos atletas quando, por exemplo, o goleiro está fora do lance e a bola chega rápida, bate no corpo do infeliz e desvia sua trajetória para o lado de lá da linha branca. A torcida até gosta, comemora, mas a gente mesmo se sente humilhado e dá vontade de voltar no tempo para fazer com que não estivéssemos ali naquele instante, que conseguíssemos nos desviar. Definitamente nosso time gosta é de fazer golaço, gostamos de esperar a gorduchinha chegar redonda para que dominemos, driblemos com classe o líbero, passemos pelos troncudos zagueiros e, com uma finta de categoria, obriguemos o goleiro a pular para o lado errado, depois de ter dado aquele toque de classe que faz a pelota correr só o suficiente pra encontrar as redes do lado de lá da linha e levar a multidão à loucura. São dessas jogadas que realmente gostamos.Além do mais, o forte do nosso time jamais foi o ataque. Dessa forma, nunca nos sentimos na obrigação de fazer gols, apenas de fazermos uma bela apresentação. Gostamos de jogar pelo meio de campo, às vezes até no campo de defesa. Mas apesar de não sentirmos aquela forte obrigação de atingir a meta, temos muita vontade de fazer nossas apresentações artísticas dentro da área do adversário, com o claro intuíto de balançar as redes, mas com a paciência necessária para garantir um gol bonito, de classe. Nos imaginamos recebendo aquela bola perfeita, que vem exatamente na direção da cabeça, para que a peguemos no ar e miremos no chão, de forma a enganar o goleiro e balançar o filó com vigor. E apesar de que às vezes nossos jogadores se desanimam por passarem tantos jogos sem marcar, estamos sempre esperando nosso grande momento. Mesmo nesses casos, quando acontecem várias derrotas seguidas, ainda somos fortes o suficiente para não esquecermos nossa filosofia e continuarmos a esperar aquele bom passe que nos coloque frente a frente com o goleiro para que possamos pegar a bola de voleio ou de bicicleta. Se ela vier mesmo redondinha, talvez nosso atleta ainda a mate no peito e complete com um chute que vá atingir justamente o lugar reservado à coruja que, com seus enormes olhos, verá a bola entrando e voará sem rumo conhecido, mas que jamais esquecerá aquele lance sublime.Por vezes ensaiamos jogadas que funcionam muito bem nos treinos, mas que dificilmente conseguimos reproduzir durante as partidas, dentro das quatro linhas, quando o juiz apita. É que nas jogadas ensaiadas não conseguimos prever ao certo o comportamento do adversário, que normalmente está com a zaga em melhor forma do que imaginamos.De fato, meu time gosta mesmo é do futebol arte. E, mais do que isso, não poderíamos sequer dizer que isso seja de fato um gosto. No fundo achamos que temos um dom, que nascemos para jogar assim. Eu até entendo e valorizo o estilo do Parreira, o jogo pelo resultado, mas no meu time jogamos diferente. Não ganhamos campeonatos nem competições ou copas do mundo, perdemos grande parte dos jogos. Mas felizmente há também aquelas partidas que ganhamos. Ah, e quando vencemos as partidas são sempre vitórias memoráveis que ficarão eternamente na memória da torcida, do adversário e na nossa própria. Gostamos de mostrar aquela perfeita troca de passes; eu mesmo gosto de dominar a bola e seguir com ela no pé, gosto de driblar um ou dois dos zagueiros e chutar ali no ângulo, sem chance para o goleiro. Por vezes, em meu time, os atacantes gostam também de arriscar um pouco e, ao invés de dominar a bola, pegam-na de primeira e dão aquele bicudo. Pode ser que a bola vá para fora e às vezes ela realmente passa longe do gol. Mas quando eles pegam de jeito... Ah, aí é gol de placa. Incluvise podemos ganhar pouco, mas ao menos temos várias placas comemorativas e somos responsáveis pelos mais bonitos gols já realizados nos mais diversos estádios, em diferentes situações e climas. E são essas placas, marcadas na eternidade de nossas memórias, que nos motivam a continuar acreditando e tentando e apostando sempre, e mais uma vez, nessa maravilha que é o futebol arte.

Thursday, October 20, 2005

Presente para um Amigo.

Estava passeando por Mangueira, no chão, muitas folhas verdes caídas me fizeram sentir que pisava num (01Chão de Esmeraldas), (02Sei lá, Mangueira) me faz sentir um rei, e faz de tudo ao redor pedra preciosa. Aí fui procurar meu compadre: (03Zeca, Cadê você), meu irmão, quéde tu. Tô precisando trocar uma idéia com esse meu irmão. Eu, que até bem pouco tempo atrás, era apenas um (04Moleque Atrevido) que olhava no (05Espelho) e só via um (06Malandro), um pegador de senhoritas, sem coração, e destemido. Depois que cresci, sofri e estudei matemática, aí entendi a tal (07Regra Três) onde menos vale mais. Meu coração então se apaixonou, endoidou e ficou numa (08Disritmia) do cacete. E lá fui eu viver o meu (09Samba Do Grande Amor), sabe como é, (10Deixar Acontecer), porque (11Amar é Bom). Era. E depois começa os problemas e aí só dá (12Briga de Casal) , e quando eu juntava a rapaziada e fazia lá em casa aquela (13Feijoada... Completa) estava a confusão e tudo isso reforçava essa nossa (14 Incompatibilidade Gênios), e aí descobri a sua (15Falsa Consideração) por tudo o que me importa na vida, samba, cerveja e amizade. Eta (16Insensato Destino) que me colocou no caminho um amor, uma mulher, que nunca poderia ser (17Minha), porque de tudo éramos ao contrário. Os amigos sempre diziam: “(18Deixe a Menina)”, e eu deixei, depois teve aquela fase que eu ligava pra ela e dizia, quase todo dia, (19Volta Meu Amor), lembrava sozinho, sentado no bar, ouvindo nossa música e (20Esta Melodia) me dava uma tristeza daquelas. Mas como dizem por aí (21O Show tem Que Continuar) e o único remédio pra (22Tristeza...pé no chão), pandeiro e cerva gelada.

Saturday, October 15, 2005

NOTAS DE UM SAMBA, QUALQUER UM...

Ela rodava com uma saia branca que subia naquele tanto que apenas estimulava a fantasia da visão pura de seu corpo. Aquele sujeito que a rodava, achando que com ela dançava, pegava em sua cintura com descuido, mas nesse pegar, sua blusa subia e a pele, a carne da barriga, da cintura, ficava à mostra e ela rodava e rodava, e ria...e nesse fenômeno de uma linda moça rodando, eu vi algo que tem gente que olha pra uma tela, uma escultura, uma obra de arte e vê... Mas ali era a própria vida, que sorria e dançava, e não comigo. Sempre não.

Papai! Papai, quando eu crescer eu quero uma menina igual àquela com o pandeiro ali ,e a quero sentada na minha sala a tocar pandeiro e olhar pra parede, mas a quero o dia inteiro.

E essa aqui...Ela vem pro meu lado e finge um charme que eu traduzo rapidamente em desespero, e jogo com essa moça que não só é feia, mas, sobretudo, desinteressante e que deve gostar de Maria Rita e fazer faculdade de direito.

O samba é um bom substituto da religião. É um fenômeno de salvação. Eu sambo como quem reza, o que significa que acredito muito que o samba pode tudo, e faz dessa vida uma possibilidade.

Ela e a irmã estavam ao lado e eu não saberia dizer por qual batia meu coração. As duas funcionavam no mesmo comprimento de onda do samba, como eu, o que só significa que nossos corpos eram só a continuação da batida e que todos estávamos materialmente ligados ao pandeiro, que é o mais charmoso e fino instrumento do samba. O rei. Já que é o que menos fala e o que mais define o andamento do resto. Eu proporia a alguém, mais gabaritado filosoficamente, um tratado sobre o assunto. A saber, a responsabilidade do pandeiro, sobre o meu, o nosso coração, a nossa vida, pois o pandeiro é quieto, calmo e repetitivo e totalmente necessário. Elas dançavam e riam e dava pena desse euzinho aqui que ficou olhando, e participando da vida assim, sem pudor e nem vontade de que qualquer coisa fosse diferente.

Thursday, October 13, 2005

Apenas um Bar


“Aquela puta não tinha nada que mandar esse convite”. Eu pensava nisso enquanto queimava a merda do papel. Sentado no balcão de um bar qualquer, lembrava dessa mulher que quase me fez querer casar, ter filhos e levá-los todos domingo ao zoológico, o que, pensando hoje me dá uma desagradável sensação de tédio e aborrecimento. E um pouquinho de nojo também. Como matar baratas descalço.
Como eu fazia antigamente, com relação a suas ações sempre tão estranhas, irracionais e tolas (ou seja: femininas), pensava nos motivos dela me convidar para o seu casamento. Algumas possibilidades: diria ela, talvez, que se esquecia de mim de vez, mas que continuava me achando um cara “legal e bacana” e materializava tudo isso nesse papel caro, fino com seu nome ao lado do nome daquele filíádaputa e endereçado a mim; diria nesse papel, que fazia questão da minha presença no seu casamento, e me convidava do tanto que eu havia me tornado inofensivo. Ou estaria ela pedindo que eu chegasse lá e impedisse toda aquela bobagem, interrompesse aquela festa babaca, a levasse pro um quarto qualquer e acabasse com ela, daquele jeito. Como naquele apartamento do qual ela sempre me dizia, após a cena (em todos os seus atos)... “Ai...Ai... será que tem jeito de ser melhor”. Que bosta ser um romântico, tudo tão fantasiado e floreado que às vezes a gente até acha graça na vida e não se mata de beber.
E esse merda aqui na minha frente que fica olhando torto, que droga de barman. Não se pode mais beber decentemente e queimar convites de casamentos de paixões antigas, mas nunca apagadas, tranqüilamente? Que paradoxo, queimar o convite para apagar a paixão. Em que país vivemos. Ele me olha torto, com essa cara de mau, de valente, camisa sem manga, braço mais gordo que forte, com tatuagem típica de presidiário de filme americano, mas que deve, no fundo, viver com a mamãe e tomar café da manhã com sucrilhos. Não sei se peço a décima cerveja ou se quebro a cara dele. Talvez pedirei primeiro a cerveja e depois, se ele encrencar, quebrarei o cara.
Peço a cerveja que vem sem problemas, o que é bom, porque talvez esse barman fosse mal mesmo, o que em nada ajudaria na minha dor de corno. O que ajudaria mesmo, nesse momento, seria uma boa trepada. Uma dessas com carinho. Mas sem amanhã. As mulheres confundem carinho com amor. E confundem amor, como “monopólio afetivo”. E estendem essa forma de domínio e controle a toda eternidade. Qualquer demonstração de carinho, da minha pessoa, pode então ser entendida como uma proposta de “monopólio afetivo eterno”, e não tem nada disso. Como aconteceu com essa puta que se casa amanhã. Encheu meu saco, cobrando casa, casamento, filhos, jardim. Não que eu não gostasse dela, só não fazia sentido com uma vida apenas, gastá-la todinha com essa moça com cerca branca, contas e fralda suja. Se bem...Se bem o caralho.
Um dia fodido de trabalho, funcionário público, bêbado, abandonado (por opção), ex-amor da vida inteira com casamento pra daqui a 24 horas, só uma boa mulher me faria um bem agora. Elas que sempre me atordoam, nos olhos, ombros e carnes. E aquela puta ali atrás que fica me olhando, não desgruda o olho de mim. Ah, mulher.
Putas profissionais são boas porque elas vão embora, apesar de cobrarem, o que me dá nos nervos. Inclusive penso que pagamos apenas para elas irem embora. Eu sempre acho que o que gastamos com prostitutas é menos do que se gasta com as outras, ditas, amadoras. Sabe como é a piada: “a diferença de sexo pago e sexo de grátis é que o primeiro sempre sai mais barato”. Mais isso de pagar explicitamente pra dar prazer a uma mulher, onde já se viu. Olha essa aí: Ancas largas, cabelos desgrenhados (mas que podem ficar ainda mais) uma cara de safada. Só mais umas cervejas e vou lá.
Peço mais uma cerveja pro barman que diz que “é hora de fechar amigão”. Odeio esses caras que dizem, amigão, como se isso impedisse, que eu, a qualquer hora, ficasse puto com ele e o mandasse a merda, de punho cerrado. Olho ao redor e realmente o bar está fechando, além de mim estão a puta que me espera, um velho pianista negro toca ao fundo, totalmente chapado, e acompanhado de uma velha que já não se agüenta em pé. O papel do convite queima lentamente em cima de um cinzeiro. Visto meu chapéu, pago a conta e vou embora. Olho pra puta que vem na minha direção. E você que seja feliz por toda eternidade, porque felicidade a vida toda deve ser uma merda, além do quê deve dá muito sono.

Monday, October 10, 2005

Série: Se ninguém leu Rubem Braga, Antonio Maria ou Sergio Porto porque haveriam, afinal, de ler Rafael Prosdocimi...

A LIRA CONTRA O MURO-----RUBEM BRAGA


Meu poeta, pois então vamos falar sobre mulheres. Garanto que é um belo assunto. De um certo modo reconheço que isso é um pouco humilhante, quando se é moço. Basta pensar isto: enquanto estou escrevendo, lá fora, na rua, passam mulheres. Minha obrigação era descer as escadas e ir vê-las. É um verdadeiro crime um homem ficar dentro de uma sala escrevendo, sob a luz artificial, quando lá fora a tarde ainda está clara e há mulheres andando. É aflitivo pensar que a vida está correndo e nós estamos aqui conversando. Confesso que as vezes acho qualquer coisa de humilhante na literatura...Mas o certo é que vivemos um mundo assim. É espantoso como este mundo em que vivemos não presta. Dizem que não adianta bater com a cabeça contra o muro. Bato freqüentemente. É possível que qualquer dia a minha cabeça arrebente. Mas lá fora, do outro lado, deve chegar um som qualquer de minha cabeça.
Lá fora...Certamente nem eu nem você saberíamos viver lá fora. Seria como se nos tirassem da cabeça o peso da atmosfera ou como se, de repente acabasse a força da gravidade. Morreríamos afogados no ar. Conheci, há pouco tempo, um homem que passou vinte e cinco anos na cadeia. Mas não quero falar daquele homem. Sinto que se o muro caísse, eu seria como aquele homem. Cuspiria no chão a horas certas, para ter a gloriosa certeza de que não é proibido cuspir no chão. Bem, mas é preciso não esquecer de que lá fora não existe. Isso é um segredo tão terrível que você pode contar a todo mundo. Ninguém acreditará. Todos os homens farão um sinal com a cabeça. “Sim, já sabíamos há muito tempo”.Mas no fundo do coração ninguém acreditará.
Na verdade, estamos todos presos, e precisamos ter uma aguda consciência disso. Você, poeta não tem consciência de classe. Tem coragem de dizer que ama tudo o que é lindo e humano, a beleza em gera, as mulheres, os sentimentos delicados, a poesia essas coisas- e detesta política. Você sabe, poeta que há mulheres que são como flores empoeiradas? Se você encontrasse uma pequena flor coberta de poeira, jogaria gotas de água sobre aquela flor. As pétalas poderiam, então, sentir a caricia fresca do vento- suponhamos-, da brisa terral. Seriam assim umas onze horas da noite. A brisa terral vindo lá de dentro, do meio do grande país, indo para o mar lá longe, o mar aberto, o grande mar. E a brisa terral beijaria aquela flor, e aquela flor seria mais linda. Você ficaria comovido e se sentiria bom. Pois, meu poeta, ali estão as mulheres empoeiradas. Há mãos de lírios limpando panelas engorduradas. Mãos que poderiam ser de lírios e estão grossas e vermelhas. Há moças em massa, há moças em massa ficando feias, metodicamente feias, ficando feias. Há mulheres em massa, belas mulheres murchando, murchando, murchando depressa. Há mocinhas, surpreendentes mocinhas que ficarão doentes antes de florescer. Há crianças que jamais serão mocinhas. Morrem muitas crianças, e na maioria não morrem de propósito para virar anjinho; morrem devido a moléstias intestinais.
Mas estamos falando de mulheres. É extraordinário notar que elas não são simplesmente mulheres, e não existem apenas quando passam por nós ou são beijadas, ou suspiram. É extraordinário saber que elas vivem. E grande número são subalimentadas, e precisam de educação e higiene duas coisas caríssimas. Naquela noite aquela pequena não foi se encontrar com você porque a meia esquerda desfiou e o outro par estava molhado. Aquela outra não sorriu para você porque só pode pagar a um péssimo dentista. Aquela outra está com a pele ruim porque alguma coisa dentro dela não está funcionando direito, e ela não pode procurar um especialista. Não pense que a filha daquele funcionário dos correios ficou tuberculosa para imitar a Greta Garbo da Dama das Camélias. Acontece que um litro de leite custa mil e duzentos. Não sei de quem é a culpa, mas seguramente não é das vacas, nem de Margueritte Gauthier. Muitas mulheres amariam os seus versos se elas soubessem ler, ou se não soubessem apenas ler.
Não, poeta, eu não levarei o meu mau-gosto a ponto de falar das operárias- dessas estranhas mulheres que não tem o direito se ser bonitas nem saudáveis- ou das mulheres da roça que vivem para trabalhar e parir. Não quero magoar você, poeta. Apenas quero que você pense nesse formidável capital de beleza e, portanto, de lirismo, que este mundo aí está massacra sistematicamente.
As flores empoeiradas...Há flores cobertas de poeira, flores que murcham sufocadas pela poeira. Que as mulheres trabalhem. Mas que elas vivam, possam respirar bem, florescer em beleza, crescer debaixo do sol, amar sem doenças e dar à luz filhos fortes e livres. Que a vida, poeta, a grande vida cheia de sentimentos e de mistérios dos humanos, possa ser vivida um pouco por todos. Você vai me chamar de materialista e reclama o “primado do espiritual”: mas eu quero que nos lugares onde faz frio haja um chuveiro quente em cada casa para que as mulheres que não podem tomar banho firo possam tomar banho todo dia, com facilidade. Elas não perderão a poesia: perderão apenas a poeira. Perante este povo imenso de tantas mulheres sujas eu pergunto: por que não há mais chuveiros quentes? Ou simplesmente: chuveiros? Temos enormes quedas d’água para despejar eletricidade sobre o país; eletricidade e água, água muita água...Mas, poeta, não quero convidar você a lutar contra o imperialismo e contra toda a exploração. No fundo este nosso povo pobre é tão espiritual. Sofrer é belo, enobrece as almas. Mas as flores estão cobertas de poeira. Elas estão murchando. Já nascem murchas. Você acha que uma vida mais limpa e mais livre poderia matar a poesia? Não, poeta, você sabe que o lirismo não é o lixo da vida, e que a poesia não morre, que a poesia é eterna e infinita no peito humano. Meu poeta, você está convidado a bater a com a cabeça no muro. Pode bater com a lira também. Se ela quebrar, não faz mal. Soltará um belo som, e esse som será uma profunda poesia.
São Paulo, 1937

Thursday, October 06, 2005

Apenas um hábito

Ainda conservo um último hábito prazeroso, um último movimento que prende algo de libido às horas, aos dias, à vida. Um último refúgio no qual me prendo a esse mundo sem saber de um outro possível. Deito-me e, independente da temperatura, me coloco dentro das cobertas, de preferência usando meias. Nesse momento as tiro. Tirar meia em dia de calor = beber água em dia de ressaca. Voltando. Tirando a meia ponho em contato meu corpo quente ao frio do tecido. Dentro da cama passo a movimentar os pés, as pernas, espreguiço ligeiro e repetidas vezes. Fico assim meio bobo como a me aventurar sexualmente com a minha cama. Como se fossemos dois jovens a se beijar, abraçar e colar os corpos para se sentirem melhores, para se conhecerem fisicamente, como aconteceu aquela outra imprevisível noite, que, afinal, não deu em nada.
Antes eu já parava o mundo no copo de café. Um copo que apesar de plástico me fazia sentir um rei, um rei que do mundo, que da vida, tirava apenas um café e secretamente, até pra mim mesmo, imaginava o mundo inteiro esperando uma decisão minha, e nessa pressa, desses outros, estaria eu tomando meu café, respirando dentro do copo, esquentando minhas narinas. E pensando qual seria a solução para o meu reino. Pouco depois o café precisava vir acompanhado de um pedaço de queijo. O café e o queijo, em comunhão, produziam um sentido. Já fora o tempo do prazer de descobrir palavras escondidas no mundo, palavras escondidas à minha espera. Encontros com Rubem Braga e Sergio Porto (principalmente o ultimo), cuja raridade dos achados, e o trabalho da busca, transformavam-me num pirata ou mesmo num arqueólogo da frase perfeita (como a autodefinição de Rubem Braga, enquanto peladeiro: “um meia-direita medíocre, mas furioso”). Esses dois buscavam as mulheres mais tentadoras que seriam descritas de uma forma, que de tão banal, virava até poesia. Poesia de verdade sem nada de musica das estrelas, ou mesmo alusões às flores ou algo assim. Esses homens que falam das mulheres as descrevendo pelos ombros, cotovelos e canelas merecem essas que eles tiveram. Ah, naquele tempo vivia-se o que se escrevia, pelo menos é o que eu quero crer.
Aí veio o samba, veio o Chico Buarque o Gonzaguinha o Raul Seixas, os Beatles esses que possuem as músicas mais lindas, as que permanecem desconhecidas, à minha espera.
Até mesmo Led Zeppelin, meu deus! O quão confortável foi ouvi-los depois de tanto tempo, até pensei uma coisa meio tola, mas bonitinha, que foi a capacidade de “Stairway to Heaven” de decorar os mais inóspitos ambientes e transformá-los em casa. Conforto. Duvido que uma decoradora entenderia o que digo.
Rememoro épocas em que dormir não consistia apenas em descansar pra que amanhã nos cansemos de novo. Mas o quanto sonhava coisas, moças que pareciam tão reais e ainda na cama sentia um perfume, seios que são diabolicamente transformados em um travesseiro feio. Acordava apesar de tudo feliz, e contava as horas pra de novo voltar à cama. Apesar disso tudo se estivesse em Matrix, provavelmente escolheria a pílula azul, sairia de Matrix (um bravo) e me arrependeria silenciosamente o resto da vida, ansiando por imagens cerebrais belas, sensações agradáveis. É preciso acatar nossa mais tenra mediocridade, tratá-la bem, pois é ela que nos une. Nós todos. E de tudo da vida, que tem graça ultimamente, passo o dia esperando a cama e nela deito a roçar as canelas. É claro que tudo isso é mentira, pois tenho minha pequena que me olha muito pra mim e sonha qualquer coisa dela na qual eu devo aparecer, mas achei mais uma vez bonito não ter muitos prazeres na vida (o que é verdade) e se grudar a relar a perna na cama como a desprezar a vida, pois se dissesse da felicidade, do gozo e da pizza, anteontem, vocês provavelmente teriam um pouco de nojo dessa alegria...Eu teria.

Sunday, October 02, 2005

O Encontro Marcado

Acho que todos temos que nos encontrar de vez em quando por aí. Às vezes, andamos meio perdidos, ou perdidos e meio, sem saber muito quem somos, onde é melhor pra tomar uma cerveja, de qual moça derramamos mais suspiros, qual tom de castanho feminino combina mais com o mel de meus olhos, ficar aqui ou sair da cidade, para sempre talvez. Andamos assim um pouco chorosos cansados de todas essas perguntas, dos dias cinzas, da chuva, da falta inclusive de medo. É aí, é nessas horas que precisamos encontrar com a gente pela esquina, que seja lá na Amazonas com Paracatu, e então a gente se vê vindo do outro lado, sorri um pouco e diz - necessário ser dito em voz alta- “ah..aquele ali é que sou eu”. E de repente fica sabendo muito bem qual sundae do Mc Donalds é melhor e que o melhor ano futebolístico de nossa vida foi mesmo, 1997, e que isso é muito importante assim como aquela discussão com um amigo (desses poucos), sobre toddy ou nescau. E pensar que eu preferia nescau. O que é bom, inclusive pra saber que nós mudamos. E foi tudo isso que me aconteceu ontem.
Andava não só triste, triste é até bom, mas cansado de uma monótona tristeza sem samba no coração (e também sem permissão de entrada) e sem cerveja no sangue. Nesses dias que agente sai da cama e volta 4 vezes, com a certeza absoluta de que é o único lugar do mundo. Um dia que não dá pra ver borboleta, passarinho, sol, lua, menina bonita, sorriso, passe do Zidane. Nada disso, nesses dias, faz da vida, algo que não só dá pra digerir como é inclusive bom, ainda mais com um cafezinho e um pedaço de queijo minas. Eu andava triste, amargurado. E ontem tive esse feliz encontro comigo mesmo, encontro no qual nenhum de nós dois faltou.
Logo de manhã, voltava da aula, voltava de uma prova na qual tinha a feliz certeza de dizer algo que precisa ser dito, mesmo usando o espaço alheio da chatice e da objetividade de toda a prova, algo que foi dito e nesse dizer valia, inclusive, os pontos que perdia na questão seguinte. Voltava satisfeito com uma missão cumprida, depois de tantas abortadas. Voltava de ônibus e foi aí que ela entrou. Ela que se há 10 anos entrasse nesses ônibus, ocorreria pela primeira vez um infarto de um moleque de 13 anos. Essa “ela”, ontem, encontrou um coração, não apenas controlado, mas certo de que ela passou. E a moça de nome mais que lindo, nome que não pode ser dito assim, aqui agora, sentou ao meu lado. Ela usava um grande óculos e acho sempre uma pena moças bonitas de óculos escuros. Óculos de grau pode e deve. Ela me viu, sentou ao meu lado e fomos conversando. Eu estava tranquilo, calmo e voltava no tempo e me via naquele menino tão profundamente apaixonado por essa menina, tão sábia na arte de ser mulher, quando ambos tínhamos nossos 9 anos de idade. Tão mais mulher que essas de hoje que pensam saber dizer “não sorrindo”, quando um “não sorrindo” é ação do mais alto porte que podem elas realizar em vida. E eu fiquei falando amenidades e lembrando desse outro tempo. Ela também falou futilidade quanto teria sido lindo se só calada estivesse ficado. Dá algum ódio da vida, quando descobrimos que algumas mulheres falam. Bonito seria o silencio, silencio que é sempre não só inteligente como profundo, fico eu aí só nos olhos, nesse lugar indecifrável sem verbo ou objeto. E nós fomos juntos, ela falando e se perdendo na minha alma, talvez pra sempre.
À tarde andava em direção ao estágio e vi aquele senhor tão velho e igual aquele outro que ele era há 15 ou 20 anos atrás. Esse pediatra tão clássico quanto é preciso um pediatra ser. Velhinho, com olhos ternos, piadinhas de criança sempre prontas, mas de voz e ação decisiva. O que mais acontece nessa relação é a confiança. E eu lembrava do consultório dele que tinha todos os bichos do mundo do Mogli pintados na parede. E tinha cadeiras pequenas e sofás de gente grande. E dentro do consultório havia outras salas e corredores ao qual era vedada nossa entrada, na qual viajava a imaginação em território impróprio e impossível, território com seus lugares secretos, espaços da imaginação que fazem tanto falta em 2005. O lugar onde as coisas são diferentes e senão melhores pelos menos especiais. Um consultório que apesar de sempre ir doente, volta à minha cabeça com uma alegria silenciosa e boba. Um tempo no qual quase nada de mim obedecia a meus comandos, o que era bom. Eu o vi meio atordoado, acho que nem me reconheceu, também com esse mundo de crianças que esse senhor via todos os dias. Crianças sempre iguais pras quais aquele senhor era sempre tão especial.
E no fim do dia encontrei mais duas colegas desse outro tempo no qual também era moleque. Uma muito chata e a outra muito impassível, quieta. Dessas pessoas que são necessárias para compor um filme. As coadjuvantes de minha vida, que são absolutamente necessárias. Mas só um pouco. E para as quais sem dúvida sou eu um mero figurante. É bom saber que agente figura o filme dos outros, e apenas isso.

Friday, September 23, 2005

Certas Coisas

É preciso que saibamos certas coisas, coisas que pensamos ter certeza, das quais nunca duvidamos, coisas que a mediocridade ensina, nós ensinamos às pessoas e depois falamos a elas que foi a vida, quando na verdade aprendemos com nossos pais e com nossas incertezas e medos, que também são chamadas de tradições. Diz Nietzsche que é preciso tomar cuidado com os primeiro passos, porque eles serão quase sempre “bons”.
Por favor, pare um pouco. Façamos uma pequena experiência. Pense no que é contrário, o oposto de “Não”...Ah é óbvio, você dirá que é “Sim”. Está errado. E não é pouco, está muito errado. O contrário de não, não é outra coisa que “não” não. Chamamos o oposto de uma coisa de outra coisa, colamos um verdadeiro inegável acoplado e pronto. Uma coisa assume uma outra fantasia e parece ser uma coisa que não é, e esse sujeito fantasiado entra na festa, nós achamos uma coisa, mas é outro e isso tudo faz o maior estrago. Diz também, um sujeito argentino e muito tosco, chamado José Ingenieiros, que a honestidade não é uma virtude. De forma brilhante ele sustenta que a única coisa que o honesto faz é não roubar, e não roubar não é virtude alguma. Para “nosotros” não roubar passa a ser uma virtude, posto que o contrário de algo ruim é algo bom. Santa mediocridade. Não bater em uma criança não faz de mim um bom rapaz.
Quem não rouba não é ladrão, e não ser ladrão não é nenhuma virtude. E assim a relatividade das coisas faz ver no não canalha um homem bom. Na mulher que não é bonita uma mulher feia. No homem que não chora um sujeito feliz. A vida é mais difícil que isso, sinto muito. Há uma positividade no vício assim como na virtude, assim como num semivicio, ou num hábito estranho. Bondade não é ausência de maldade. Ausência de maldade é ausência de maldade. Atribuir 1 pra sim e 0 pra não, é o que faz o computador e deveríamos fazer um pouco mais que isso. Ou não.

Friday, September 02, 2005

O retorno do fracassado

Eu fui criado em fins dos anos 80 e começo dos 90. Os meus heróis eram fortes, corajosos, e muitas vezes enviados de Deus, pois ninguém, pelo menos desse mesmo mundo, conseguia me explicar a “sacação” de filmes como “Rambo”, “Predador” e “Duro de Matar”. Essa “sacação” sugeriria serem estes alguns dos chamados divinas santidades, pois, realmente, faziam milagres. “Comando para Matar” é sem dúvida o melhor exemplo desses filmes, o sujeito não contente em pular de um avião matava pelo menos 400 sujeitos em 12 horas. Vocês que façam as contas. De qualquer forma tudo demonstrava a infalibilidade de nossos heróis, algo que deveríamos seguir. Os fígados atuais, ou pelos menos que sobrou desses órgãos, de alguns jovens que seguiram a dieta de Mr. Van Damme poderiam talvez atestar o que digo, vitimas de uma enxurrada de anabolizantes.
A vida era uma aventura, da qual sairíamos mortos ou vivos, não importando, mas sempre divertidos e elétricos, porque tudo, mas tudo, era questão de vida ou morte, e no limiar dessas coisas o nosso herói ainda fazia uma graça qualquer, como quem desdenhava de morrer, pra ele talvez a “vida não é uma só”, devem ser muitas. James Bond é o sujeito caricato dessas histórias, a morte é tão distante que nada nos faz pensar nela, nem o tanque repleto de tubarões, ou o barco que afunda, o carro que explode e o avião que resolve dar um tempo e cair a 10.000 pés.
Eu sei que aos 17 anos li aquele “Amanuense Belmiro” e minha vida nunca mais foi a mesma. O tal Belmiro era o fracasso incorporado, o sujeito que tinha como meta de vida paquerar uma colega, mas que nunca conseguia, e sua vida se resumia a ir beber com os amigos, um bando de malas que discutiam e brigavam pelas mesmas coisas, lembrava muito alguém que tinha 17 anos e não conseguia paquerar a colega, e cuja alegria consistiria em tomar cerveja no bar com os amigos (que não eram chatos assim); mas só se o garçom não cismasse com nossas caras imberbes e não pedisse a tal carteira de identidade, momento esse de grande drama, a lá Baggio, 1994.
E na velhice e na formação de pelancas de caras como Bruce Willis, Stallone, Szchazzeneger e Van Damme os filmes de ação (não no sentido arendtiano, que fique claro) perderam todo o charme. E aí entra em cena o Paul Giamatti que fez “American Splendor” e “Sideways” e a vida medíocre de todos nós, volta, retorna. Aí a decisão nunca mais será de vida e morte, e sim de qual fila entrar no supermercado, e a escolha das palavras a serem ditas a tal mulher que é feia, decisão nunca acertada pelo fracassado. A mediocridade arromba a sala, a estante, a televisão. O subtítulo de “American Splendor” acerta onde dói, e proclama o surgimento do banal e do tédio na vida humana: “Até uma vida bastante medíocre pode ser muito complexa”. E eu falaria de “Adaptação” com Nicholas Cage, um sujeito feio, com uma barriga horrorosa, e ainda careca que tem pensamentos bem Woodallenianos, que aliás pode ser considerado o grande mentor de todo o surgimento desse apogeu da mediocridade retornada. E a vida que todos levamos representada pelo ônibus, pelo “bater ponto” no trabalho, pelo relógio sempre consultado com atraso e pelo embaraço e vergonha de uma vida tão sem graça, resolve aparecer também no cinema, o que não sei se é bom ou ruim. Toda essa ética e estética da mediocridade, esse elogio do idiota incapaz de sustentar um sorriso, vai constituindo todo o espírito de nossa época. Lembro do tempo que dizia “eu sou um bosta” e sem querer concordar com tal frase me disporia a fazer o que quer que fosse, incluindo o maior desafio de todos que sempre foi se dispor a sustentar um sorriso feminino. Hoje em dia, responderia eu à pergunta “você é um bosta?”. Sim.
Lembrei de tudo isso quando me veio a memória, de forma insolente, pois não havia chamado, um filme com a Jennifer Aniston, “Por um sentido na vida” (um bom título para um filme medíocre) e na discussão que tive com Ela (agora na Inglaterra) e sua conclusão sobre o filme tão errada e interessante, dizendo muito dessa sujeita.
No filme, a personagem principal era casada com um sujeito, feio e gordo, um pintor de parede que tinha todo o gosto na vida em fumar maconha com seu amigo. Ela era caixa de um supermercado. Os dois não conseguiam ter filhos, mas continuavam tentando sem muita alegria. Ela conhece um outro. Um rapaz que se autoproclamava Holden Caulfield por causa do famoso romance “O Apanhador no Campo de Centeio”. Um menino muito idiota disfarçado de qualquer coisa interessante. Um desses incompreendidos pela vida. Os dois começam um romance. Ela fica grávida. Enquanto o marido descobre que ele é que era o estéril. Bom, aí vocês pensam, ela abandona o marido e fica com o rapaz que lhe dera o filho. Esse filme não é tão óbvio. Ela abandona o menino e volta pro marido que não se pergunta (nem teria muitas condições cognitivas pra tal façanha) sobre a relação entre ele ser estéril e sua mulher estar grávida e aí acaba o filme. Ela que se encontra no velho continente ousou pensar que o marido teria qualquer papel nesse filme que não o não-papel. Ele é o que não vai traí-la, não vai abandonar o filho ou a casa, não vai faltar ao jogo de beisebol do filho e não o fará chorar (o que não garante nada). O tal “sentido da vida” era só o filho e nada mais. O marido é só uma garantia de poucas perguntas, poucos problemas e nada mais. Ela sabia que o menino amante era idiota e louco (o que lhe traria problemas) e que o marido era ainda mais idiota, mas quieto (sem muitos problemas). Um idiota desses, que não traz problemas por não saber como o fazer. Eu sei que quando vi esse filme, havia aquela magrela na minha cama, e que paramos o filme pelo meio, transamos pela última vez, ela chorou durante, eu não percebi porque, ela foi embora (e não só da minha casa) e eu terminei de ver o filme sozinho e assim fiquei um bom tempo.

Tuesday, August 09, 2005

Estória de musica.

Está posicionado entre as coisas mais deliciosas dessa vida, junto com moussé de chocolate, cerveja depois do futebol e marquinha de biquíni; a história da música brasileira. Não tem muito como posicionar e hierarquizar essas coisas acima, mas sem duvida ler e conhecer as histórias da música popular (nunca gostei desse “popular” entre música e brasileira) brasileira é algo de uma delicia semelhante a, por exemplo, marca de biquíni, devidamente associada a fartura de matéria e a decote. Digo dessa paixão (pela mpb) como leigo, como curioso, como amante de boa-música, definida aqui para os socráticos de plantão, como qualquer musica que possa, em um momento ou outro, arrancar um sorriso ou uma lágrima. O adjetivo é sem duvida “delicioso”. Como uma feijoada. Não é leve (como tudo que presta por aí), essa história tem momentos de arrepiar, gente morrendo de forma estúpida, momentos que custam a descer, entalam, pobreza, miséria, alcoolismo, tuberculose. Digo isso, pois estou agora lendo a biografia de Noel Rosa, já havia lido alguns livros sobre a nossa música e digo que pouca coisa me faz arrepiar. Saber que Vinicius de Moraes era intelectual profissional e fascista no inicio da segunda guerra mundial, e que se rende absurdamente à música popular com tamanho amor, com tão lindas canções, falando do amor, da capoeira, de Itapoã e tudo mais, acabam valendo um dia. Saber que numa Porto Alegre na década de 30 se encontram em um cabaret, Noel Rosa, Francisco Alves e Lupicinio Rodrigues, sendo que este ultimo era um simples soldado de numero 417 e que gostava de compor; é lindo demais. Saber de Cartola, Ismael Silva, Noel. Saber que foi pelas mãos de Dr. Graça Mello que veio ao mundo Tom Jobim e o próprio Noel. É absurdo esses encontros que a música brasileira proporciona.
Acho que todos esses encontros, muitos desencontros, são o que há de mais lindo nessa nossa história. Esse samba que marca o encontro de morro e cidade, esse batuque que ganha ar de “cultura nacional”. Essa música tão gostosa de se sentir, essa poesia, essa “tristeza que tem que ir embora”, esse olhares que parecem tiro ao “álvaro”, esse “acontecer de eu não mais te amar”, e isso só pra ficar aqui no samba. Tem muito mais por aí. A música caipira, as marchas, as canções. Essa música que surge de dor, de tristeza, de vontade de sorrir, de medo de amar, da traição. Um viva a traição, pois o que seria de musica sem isso, sem dor-de-cotovelo. Provavelmente não se faria música se não houvesse os cornos.
Nada aparece do nada. A música como um depósito das marcas que a vida faz na gente. Gente que perde um amor e ao invés de matar, de se matar, compõe e invariavelmente chora. A história da música das pessoas do Brasil é a história do país, não a oficial, não a dos eventos cravados nos dias 7, 15 ou 22, mas sim a grande, a imensa história das quartas-feiras e segundas de chuva. A imensa análise dos foras tomados por milhões de brasileiros todas as sextas à noite. Tristeza desses milhões e alegrias de outros tantos. A história da falta de comida e do trabalho escravo. Do amor fingido, e do fugitivo amor. A música feita por quem quer dizer algo e talvez não se sinta ouvido. As pessoas ouvem mal e acabam prestando mais atenção no rádio do que na moça sentada na cama. Também uma história do capitalismo, da música ganhando o seu rótulo, MPB. Histórias de música feitas pra vender, história de malandros, de bandidos, de mocinhas sempre lindas. De escolhas amorosas.
Teve uma vez que o Tom Jobim se encontrou com Villa-Lobos em uma festa ou algo assim. Parece inicio de piada, mas dizem que é fato (o que para mim importa quase nada), Tom era um encantado com aquele maestro (tanto que sobre a morte disse: “Se o Ary e o Villa-lobos morreram...eu também posso”) e chegou perto dele, que estava sentado, compenetrado no piano. Estava uma bagunça ao redor deles, musica alta, falatório. Villa-Lobos parecia estar compondo e foi aí que o Tom perguntou ao velho maestro: “- Como você consegue compor com essa barulhada aqui? No que obteve sua resposta... -Meu caro, o ouvido de dentro não tem nada a ver com o ouvido de fora.”
E eu que não ouço coisas assim com freqüência, e muito menos falo, tive que comprar mais livros, deitar sozinho na minha cama, e voltar no tempo.

Saturday, July 16, 2005

Minha pequena.

E ela vem e olha pra mim. E eu olho pra ela. E eu a chamo pro duelo, e ela começa bem, mas fica com um pouco de medo, que eu, sabiamente, finjo que não tenho. Funciona, e na seqüência eu reparo nessa veia grande que a pequena tem na testa, e que pulsa, muito mais quando ela sorri e estica a cara toda. Essa veia que pode bem ser uma artéria, importando nada ou quase, pro seu sorriso moreno de olhinhos quase-puxados. Essa veia, que sobe sangue pra cabeça, vem do coração dessa mulher e isso tudo acaba levando amorarmonia, paixão poesia pras idéias, que saem perfumadas e coloridas. Suas idéias são essas lindas, idéias que levam a mobilização de sentimento e que acabam culminando com um sorriso a 1432 km de distancia (sorriso anônimo), três dias depois, na velocidade do olhar sorrir, provocar sorriso, levar e buscar vida. Essa moça é pequena, não liga nada pra isso, diz que fica muito brava, o que ainda não presenciei, e espero com um bocado de ansiedade. Ah paixão... Ainda brava comigo. Não agüento. Ela que acha que eu não levo a sério suas crenças e percepções acaba me levando muito a sério e esquece que de crenças eu também tenho as minhas. Mas de fato todo esse jogo de ilusão e fé se perde quando a mordo, a beijo e mais ainda mordo sua bunda numa recusa enorme e num movimento de resistência a qualquer metafísica, preocupando unicamente com a materialidade de sua carne.
A pequena que é grande em olhos e desejo de minha pessoa. Mulher que fuma e que pede uma falsa permissão, como se importasse meus anseios salutares, porque ela vai e fuma, mas com respeito. Na cama acho bonito que ela fume depois, quando estamos os dois pelados e cansados. Nós que surgimos depressa um pro outro, andamos a nos conhecer. Eu acabo que sei que ela sabe mais de mim do que eu dela. Ela garante que tem surpresas. Espero que as tenha por muito tempo. Minha flor, que é de fato uma perigosa menina, que é uma grande mulher no sentido de saber me deixar tarado, ainda finge certo pudor desnecessário, mas singelo. E ela cabe toda nos meus braços e eu gosto muito do tanto que ela cabe em cima de mim e de como ela nasceu pra esse lugar. Ela deita sobre meu corpo e fica, às vezes dói em uma costela, às vezes eu olho pra ela e fico. Ela deve até procurar minha alma e eu vejo sua retina e acho bonita. Gosto dela de forma um pouco ciumenta e egoísta, mas acho que entre nós dois seria ideal uma ilha, e nada mais.

Tuesday, June 21, 2005

Uma coisa medíocre

Rafael Prosdocimi

Acho uma coisa medíocre o que farei agora. Uma meta-babaquice, qualquer coisa assim. Pois irei escrever sobre o porquê não ando escrevendo mais, o que é um contrasenso, como esses sujeitos estúpidos que colocam o nome em seus times de futebol, daqueles campeonatos de fim-de-semana, de Sem Nome, com letra maiúscula. Eu contribuirei com toda tolice que agora junto em minha essência e escrevo porque não ando mais a sentar e escrever coisa alguma, mas faço isso obviamente sentando e escrevendo.
Para dizer porque não escrevo mais, devo dizer porque em algum momento de minha vida, escrevi qualquer coisa que fosse. Lembro que foi por minha primeira namorada, e lembro que talvez tenha sido o primeiro e último instante de poesia em minha vida. Olhei pro céu, pra ela, pras coisas e senti palavras povoando minha mente... Cheguei em casa e escrevi à caneta. Fiquei feliz em me ver poeta. Gostei da sensação. Acho que tudo o que vi depois disso foi uma poesia baixa, a função das belas imagens e das sensações passou a ter sentido unicamente quando eu as escrevia. A poesia em minha mente não me bastava. Descobri-me medíocre, ver o belo e o sublime não me bastava, precisava de ossos, de prêmios, de parabéns, “continue assim”. Descobri então que sou um sujeito de Skinner, ávido por afagos, sexo e comida, modelando minhas ações pela proporção recebida dessas coisas. A poesia seguia agora na minha cabeça o formato do “Word”, com seus sublinhados verdes e vermelhos. Bill Gates agora controlava minha capacidade de poetar. É por isso que penso ter sido aquela a primeira e única poesia, quando eu, no portão de Flora, esperando que ela decidisse parar de brigar comigo, na tensão daquele momento de espera, e ela invadiu minha mente...pensava que poderia até acabar o mundo que eu nada faria, além de esperar uma resposta dessa menina. Esse pensamento foi a poesia. No primeiro momento ela veio, ao menos creio que ela veio primeiro, depois o costume e a vaidade de ver algo belo que passei a pensar. Escrevia como uma forma de me justificar, uma forma de dar sentido a minha medíocre existência. Infelizmente sou um bicho social, preciso falar, ouvir, mais falar é verdade, mas preciso de outros. Adoro a solidão, mas só quando esta é marcada por períodos de intenso convívio humano, calor. Escrevia para impressionar, e olha que muito funcionou, algumas senhoritas me chamaram de poeta.
Como já disse gosto de pensar que sou o sujeito comportamental baseado unicamente em reforço e punição, sendo assim, a resposta ao meu problema de parar de escrever é óbvio, nunca tive reforço suficiente. Embora aquela baixinha de olho azul tenha me falado, como em segredo, que havia lido alguns de meus textos, e eu posso jurar que fora por isso que ela se interessou por mim. Reforço suficiente, portanto, não deveria ter parado de escrever. Porque eu escrevia já não sei, algo de vaidade, esforço pra ser diferente, ousar o título de poeta, intelectual, deixar marcas na vida quando eu me for. A idéia de ser um cara genial, com idéias avançadas e futuramente escrever no Estado de Minas e aparecer no Jô Soares pode ter funcionado como catalisador...Mas como isso tudo é muito estúpido e sem sentido, penso que acabei por naturalmente perceber que não havia porque escrever, se ninguém ainda leu Mario Vargas Llosa ou Rubem Braga, porque haveriam de ler Rafael Prosdocimi? A idéia de um escritor puramente social, que escreve para obter afagos acaba por não me agradar de toda forma. Permanece a idéia de que algo brota dentro de mim, e me faz escrever...Algo descontrolado...Idéia deveras psicanalista, poética e feminina para o meu ser...Odeio poesia quanto mais feminina, dessas mulheres que só fazem poesia porque não trepam decentemente, e acham que o fato de escrever poesia e serem tristes as livram do fardo, e da obrigação moral de gozarem enquanto fazem sexo. A hipótese de algo intrínseco ao meu ser também não procede, pois nada há de intrínseco ao meu ser, senão nunca teria começado a escrever aos 18 anos de idade. Acho que nunca descobrirei porque comecei a escrever, mas tenho certeza que tem a ver com o que a mais charmosa das professoras que tive definiu, de forma brilhante, como a materialidade da dimensão subjetiva. Quero que outros vejam o que penso, quero materializar meus anseios e pensamentos. Para que daqui a anos eu me leia e sinta que eu pensava muitas bobagens anos atrás. Para que exista a ponte, mundo objetivo e subjetivo. A idéia de novo social, a necessidade de comunicação que temos com o mundo, a necessidade de compreender e ser compreendido. Escrevo para me mostrar, é a porta que alcancei, a ponte que construí, porque fui alfabetizado, primeiramente, porque meu pai é louco e boêmio, meu padrasto boêmio e louco, porque me caíram livros na mão quando menino, porque descobri Vinicius de Moraes aos 17 e Rubem Braga os 20, porque tenho um computador em casa, porque minha mãe trabalha e eu posso me dar ao luxo de escrever em uma segunda-feira às 15:35 da tarde, porque meus bisavós eram italianos, e não africanos, porque acreditei no poder de sentenças e na força da palavra escrita. Isso tudo, para que você, Paula, entenda o que senti com seu “Não sorrindo”.