Sunday, January 29, 2006

VOCE SE LEMBRA...

Ela é imprescindível de um jeito assim, que lhe dava medo encontrá-la nas quinas tão reais daquela casa. Sentia-se como um crente que tem que se haver com o próprio Jesus Cristo, numa quarta-feira, as três da tarde, na rua São Paulo número 2914, esquina de Bias Fortes. Ainda mais naquela casa, na frente de todas aquelas pessoas estranhas. Ele, ali, teria de reagir de uma forma aceitável e neutra. Ela não era uma mulher para encontros materiais. O sonho, o devaneio, a abstração sempre foram lugares mais propícios para encontrá-la, e ter aí, o tudo da vida.
A verdade é que ele não sabia que se encontrariam mais uma vez, nessa mesma encarnação. Sendo assim, a presença dela lhe causava transtorno. À distância pequena, ele sofria em pensar que a aproximação, o esbarrão, qualquer coisa, estava ao alcance dos pés dela. E que talvez, mesmo que ele corresse, fugisse pela rua deserta poderia ela ainda observá-lo. Mas o medo real, indefinível, indizível começava mesmo no verbo. E se ela dissesse “boa-noite”... “Você tem fogo”...“Onde é o banheiro”, qualquer dessas coisas tolas, seu coração palpitaria forte, o que a faria perguntar: “que barulho é esse?”. O rapaz diria que era ela, ressonando toda no ritmo de seu corpo. Ela já fazia parte do seu desequilíbrio corporal. A disritmia de suas funções vitais dependia do fator “ela”, tal qual depende da taxa de outras coisas como da noradrenalina, do álcool ou da cocaína. O pesadelo final seria se ela começasse algo assim como “você se lembra...”; Ele, então, preparava um ataque epilético devidamente treinado e ensaiado. Sairia bonito e real, com muita secreção, o barulho angustiante dos dentes se chocando, espasmos pluridirecionais e órbitas vazias. Talvez chamariam uma ambulância. Ela se afastaria, pois não é médica, e o socorro chegaria.

A presença dela cercava de incertezas suas angustias, e elas todas, com medo, ameaçavam sumir. Desistiam de dominar o rapaz. No entanto, a falta da cerveja (e porque não - da coragem) ajudava a angústia a se manifestar como força, na fraqueza desse sujeito tão hábil em ser um piqueno minino. E o leme, pesado, deixava esse minino a contemplar mais que pacífico o Atlântico. Ela então se aproximava dele com seu jeito doce para com as crianças, inclusive para com essa, e demonstrava um interesse que não era nada além de gratuita gentileza.
Ela nunca começaria uma frase “você se lembra...” havia sido ele, pra ela, a máscara...Apenas o nome, do “cara da noite”, que é sempre o mesmo. Ela morreu muito velha, enquanto ele dormia e sonhava com aquilo que ela perguntaria, “você se lembra...”, se ela se lembrasse disso tudo que ele nunca esqueceu.

Tuesday, January 24, 2006

DIVISÃO

Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta)

Você poderá ficar com a poltrona, se quiser. Mande forrar de novo, ajeitar as molas. É claro que sentirei falta. Não dela, mas das tardes em que aqui fiquei sentado, olhando as arvores. Estas sim, eu levaria de bom grado : as árvores, a vista do morro, até a algazarra das crianças lá embaixo, na praça. 0 resto dos moveis — são tão poucos! — podemos dividir de acordo com nossas futuras necessidades.
A vitrola esta, tão velha que o melhor é deixá-la ai mesmo, entregue aos cuidados ou ao desespero do futuro inquilino. Tanto você quanto eu haveremos de ter, mais cedo ou mais tarde, as nossas respectivas vitrolas, mais modernas, dotadas de todos os requisitos técnicos e mais aquilo que faltou ao nosso amor: alta-fidelidade.
Quanto aos discos, obedecerão às nossas preferências. Você fica com as valsas, as canções francesas, um ou outro "chopinzinho", o Mozart e Bing Crosby. Deixe para mim o canto pungente do negro Armstrong, os sambas antigos e estes chorinhos. Aqueles que compartilhavam do nosso gosto comum serão quebrados e jogados no lixo. É justo e honesto.
Os livros são todos seus, salvo um ou outro com dedicatória. Não, não estou querendo ser magnânimo. Pelo contrario: Ainda desta vez penso em mim. Será um prazer voltar a juntá-los, um por um, em tardes de folga, visitando livrarias. Aos poucos irei refazendo toda esta biblioteca, então com um caráter mais pessoal. Fique com os livros todos, portanto. E conseqüentemente com a estante também.
Os quadros também são seus, e mais esses vasinhos de plantas. Levarei comigo o cinzeirinho verde. Ele já era meu muito antes de nos conhecermos. Também os dois chinesinhos de marfim e esta espátula. Veja só o que está escrito nela: 12-1-48. Fique com toda essa quinquilharia acidentalmente juntada. Sempre detestei bibelôs e, mais do que eles, a chamada arte popular, principalmente quando ela se resume nesses bonequinhos de barro. Com exceção,o de pote de melado e moringa de água, nada que foi feito com barro presta. Nem o homem.
Rasgaremos todas as fotografias, todas as cartas, todas as lembranças passíveis de serem destruídas. Programas de teatros, álbuns de viagens, souvenirs. Que não reste nada daquilo que nos é absolutamente pessoal e que não possa ser entre nos dividido.
Fique com a poltrona, seus discos, todos os livros, os quadros, esta jarra. Eu ficarei com estes objetos, um ou outro móvel. Tudo esta razoavelmente dividido. Leve a sua tristeza, eu guardarei a minha.
Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta) — A casa demolida — Editora do Autor, Rio de Janeiro, 1968, pág. 201.

Friday, January 20, 2006

GESTOS IMPRECISOS

Sabe como é. A mão esquerda vai ao encontro dos cabelos, e aí procura a carne do rosto, as bochechas, essa face já um tanto arrepiada. Enquanto isso, e paralelo a isso, a mão direita aguarda sinais sensoriais, para atacar do outro lado, pousar na cintura, com firmeza e delicadeza, nessa união única desses casos de amor. As duas mãos puxariam aquele lindo corpo ao encontro do seu. No caminho pretendido, no entanto, a mão esquerda pára no ombro, hesita, tem dúvida. Pensa que talvez sejam movimentos muito decididos, podendo ser entendidos como desespero. Essa mão fica no ombro, inerte, não consegue subir. Ela espera... Ele abre a boca, tenta dizer algo, não consegue e fecha a boca. Percebe o ridículo dos últimos gestos. E a mão esquerda, meio morta ali no ombro, compõe um quadro de delicada estupidez. Ela, fielmente, espera.
Finalmente a mão sobe dos ombros, passa pelos cabelos, contorna a cabeça na testa, e subitamente se pousa nas costas transformando-se num abraço fraterno, seguido por um beijo na face e então ele diz que “já vai”. Os dois eram amigos há algum tempo, mas nunca gostaram disso de ser amigos simplesmente. A tensão sexual era, aos dois, necessária, e a cada momentos de pecaminosa comunhão, essa tensão parecia que irromperia em lava como num violento vulcão, que, subitamente, volta a dormir sem ter acordado. Os dois acabavam mantendo a compostura já desnecessária. Ele diz, mais uma vez, que vai embora e a beija nas faces. Caminha para a porta, e embaixo dela, pára. Hesita mais uma vez, fica de costas para a moça. Está parado. Ela olha com esperança e aflição...Ele gagueja e finalmente diz que deveriam, os dois, ver o último filme do Spielberg. Ele ouvira falar que era muito bom. Ela diz que sim, e no seu sim há mais não do que em todos os outros “nãos” de sua vida. Sua vontade é mandar voltar a cena. Chamar o roteirista e dar-lhe uns cascudos. E tudo por culpa da mão, pensa ela, pois se essa trabalhasse direito “frames ago” encontraria o seu rosto, a orelha, faria carícias e daí ele olharia para sua própria mão carinhosa, encostada nela. Ela, por sua vez, que estaria com o rosto abaixado, encolhido em volta dessa mão masculina e protetora, olharia para ela, para seus dedos, e como se estabeleceria uma relação de contigüidade entre mão-face-olhos, no final, ele acabaria olhando para os olhos dela. E nesse olhar não caberia um único talvez. O beijo seria só o início. Mas ela ficou lá, sozinha, com suas falsas amigas, num estado entre, raiva total e ainda esperança.
Ele no carro bate a cabeça no volante e blasfema. Tem vontade de voltar e dizer tudo aquilo que ela se preparava para ouvir. Porém ele sabe que, lá chegando, é bem capaz de pedir uma xícara de açúcar, ou o jornal do mês passado. E pensa que não é bom exagerar no patético.
Dias depois, em casa, ela pega o telefone e decide ligar para ele. Já havia quase dois dias que haviam se visto e se tocado. Dois dias que ele havia passado as mãos nos cabelos dela e em sua testa, como quem queria algo, e, então, ido embora. No penúltimo número do telefone dele, ela pára e desliga o aparelho. Vai pra cozinha, sua melhor idéia: fazer um café. Está na hora do café, e a mãe logo chegaria com os pães. A mãe gosta...Que droga! Esse 8 e esse 6 que faltam para completar a chamada e que não saem de sua cabeça.
Ele em casa se tortura; já soltou o telefone 4 vezes e tem medo de desistir pela quinta vez. Tem medo que o fracasso se torne hábito. Ele afinal em nada pensa, liga e diz que o filme do Spielberg está passando naquele cinema perto da casa dela, aquele que tem estacionamento gratuito, no shopping que tem a loja com o sapo de pelúcia de quase 2 metros, feio e grande o bastante para ninguém comprar. Ele a pega em casa, conversam sobre um acidente nuclear numa usina alemã, discutem e acabam decidindo: contrariando a ONU, o chanceler alemão e o próprio presidente do Estados Unidos da América, contra a utilização da energia nuclear. Ela concorda e vê que ele é um rapaz sensível e coerente. Ele não concorda com nada disso, mas vê que fora uma boa idéia ter sido estúpido. A energia nuclear é uma fonte importante e se alguns acidentes acontecem, tudo bem, faz parte, e lembra desses ditados, tipo: “não se faz omelete sem quebrar os ovos”.
Ele preferiu o cinema a um bar ou outra coisa assim, pois ainda não haviam se beijado e no cinema, é óbvio que iriam se beijar. Ele fingia não ter certeza se ela o queria mesmo; e pensava que no cinema ela não teria muito para onde ir. E de lado ele não precisaria olhar nos olhos e nem dizer nada. Escuro, de lado, bastava beijar. Mas era muito idiota. Mesmo para ele. Pensava que deveria beijá-la antes do filme, antes de entrarem no cinema, sabe...Para mostrar que não precisava do escuro, nem do Spielberg, nem de nada disso para ficar com ela. Haviam chegado cedo. Sentados numa cafeteria, tomavam café. Ele sentou muito perto dela, que, aliás, tomava capuccino. Procurou dizer coisas tolas, de que era fã dela, elogiando seu cabelo, perguntando de sua vida, tentando algo que fosse uma “pega”, um atalho, até o beijo. Algo que ele nem mesmo sabia o que era.
Em determinado momento o rapaz pegou na mão da moça (um amigo seu havia dito, certa vez, que o negócio era pegar na mão da gata e contar até 15). No 13, quator...ela resolveu mexer no cabelo. Batimentos cardíacos acelerados (os dele), ela desceu a mão do cabelo e já não encontrou a mão dele, que se encolhia toda tentando calor nos bolsos. Ele falou que estava na hora, e entraram no cinema. Por causa dos 15 segundos, que viraram 13, e do cafés e capuccinos, haviam atrasado e o cinema estava lotado, e agora só havia lugares separados para ambos. Ele sentou mais à frente e ela mais atrás. Ele não viu o filme, só olhava pra trás, mas como no escuro são todas iguais, ele não a achou. Ela achou que depois de “Minority Report” esse era o segundo pior filme de todos os tempos do diretor. Na saída ela comentava do filme que ele, com desinteresse, intervinha com “sins” e “nãos” aleatórios. Ele iria deixá-la em casa, e ela pediu para irem para outro lugar, quem sabe um barzinho. Ele só pensava que ela havia soltado a sua mão na cafeteria, antes dos quinze segundos e por isso queria ir para casa, dormir ou bater uma “punheta”, quem sabe. Ele disse que trabalhava cedo.
Ao parar o carro, em frente à casa da moça, esta foi se despedir cordialmente dele, beijando com neutralidade seu rosto, mas errou, por alguns centímetros, e sua boca, na parte leste, encontrou a parte oeste da boca dele, numa porção realmente ínfima, mas que estremeceu todo o corpo do rapaz. Num descuido do não, e no piscar de olhos da razão ele a agarrou como qualquer primata de outros carnavais, a segurou com firmeza, e se beijaram calorosamente. Ela, já desiludida da vida e nada esperando, teve todo o descontrole real das suas funções cardiorrespiratórias. Ele se sentiu um macho alfa.
Depois ela sorriu, e começou a falar, ele também falou junto, e aí os dois pararam e riram. Um esperando que o outro dissesse, e quando ela ia falar ele também se precipitou, pararam e riram de novo. E foi cômico e patético. Ele então se calou, a acariciou na face, no pescoço passando a outras partes mais carnudas. Ela então falava enquanto ele esquiava na sua pele. Saíram dali e foram pra qualquer lugar, continuar aquele teatro tão lindo de gestos imprecisos.

Tuesday, January 17, 2006

NIETZSCHE - GAIA CIENCIA

§366. Diante de um livro erudito.- Não somos daqueles que só em meios aos livros, estimulados por livros, vêm a ter pensamentos – é nosso hábito pensar ao ar livre, andando,saltando, subindo, dançando, preferivelmente em montes solitários ou próximo ao mar, onde mesmo as trilhas se tornam pensativas. Nossas primeiras perguntas, quanto ao valor de um livro, uma pessoa, uma composição musical, são: ‘É capaz de andar? Mais ainda é capaz de dançar?’... Nós lemos pouco, mas por isso não lemos pior – oh, como rapidamente adivinhamos de que modo alguém chegou a seus pensamentos...(...) No livro de um erudito há quase sempre algo opressivo, oprimido: em algum lugar vem à luz o ‘especialista’, seu zelo, sua gravidade, sua ira, sua sobrestimação do canto no qual fica e tece, sua corcunda – todo especialista tem sua corcunda (...)” . P.267-8

Sunday, January 15, 2006

As bonitas que me perdoem...

Há uma beleza que foge a todo e qualquer padrão. E nada é mais belo do que essa mulher que é linda, quando deveria não o ser. Uma beleza que vem de um lugar desconhecido, pois não há simetria, os olhos não são azuis, e o corpo não compensa em volume, agregado à rigidez, aquilo que falta ao rosto. A idade muitas vezes avançada marca esse rosto que acaba cedendo à devastação. E de tudo que havia para essa mulher ser feia, ela não é de forma alguma. E em alguns casos é linda, e isso dá um gosto na vida tal, que encobre tudo de ruim, inclusive aquilo que é pior: Essas mulheres que deveriam ser lindas e que são feias; talvez pela domesticação já em processo irreversível, e esse olhar obtuso incapaz de um brilho, apesar de formas geométricas esplendidas, de deixar o Euclides boquiaberto.
Uma mulher bela não-contingente, independente de quaisquer fatores. Essa que não pode ser definida por categorias, e que escapa a qualquer enquadramento. Você olha e a sensação física de que ali a vida fez sua casinha e ficou é forte o suficiente para impedir a razão, e a domesticação social, de pensar beleza em termos dessas modelos de propaganda. Em termos de centímetros e quilos. E essa beleza pequena, essa do glamour, das medidas, que a gente propaga e divulga por aí, esconde, essa outra, que é A Beleza. Algumas mulheres velhas contêm nos olhos tanta vida, tanto pesar que muitas vezes é isso que transparece pra mim em forma do belo. Há uma jovem senhora, que trabalha num clube e que me olha nos olhos, com tamanha presença, quando lá chego, que me encanto todo nesse seu olhar generoso, e aí já me coloco a imaginar coisas. Ela é linda de se acordar do lado, depois de uma noite de amor, e é isso. E não ha outro nome. Outras de ventre volumoso, de ancas largas, de corpo, às vezes torto, fraco como um galho. E não chamaria de charme ou estilo, algo assim, é beleza mesmo. E isso me é tão caro, saber que algo que eu não sei o que é e que habita o meu mundo, cria sensações que não foram previamente definidas. “Aquilo que não deveria ser, mas é”. Peço a esse “mas”, toda força do mundo em arrebentar essa idiotia da “exceção”, esse fantasma poderoso, esse inimigo da vida. Esse silenciador de verdades criado pelos procuradores de padrão. Chamar de exceção uma coisa é a melhor maneira de manter o padrão inquestionado. “Toda regra tem exceção”. Muitas vezes não há regra meu chapa, e se você a criou, tentando universalidade, é só porque, VOCÊ, não dá conta de viver com a angustia do instável. Por favor, dirija-se a um analista mais próximo. Essa beleza que independe de fatores é a única coisa que há de real, o resto é só fantasia tola na sua cabeça.

DESPEDIDA

Rubem Braga

"E no meio dessa confusão alguém partiu sem se despedir; foi triste. Se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece em um baile de carnaval — uma pessoa se perda da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão. É melhor para os amantes pensar que a última vez que se encontraram se amaram muito — depois apenas aconteceu que não se encontraram mais. Eles não se despediram, a vida é que os despediu, cada um para seu lado — sem glória nem humilhação.Creio que será permitido guardar uma leve tristeza, e também uma lembrança boa; que não será proibido confessar que às vezes se tem saudades; nem será odioso dizer que a separação ao mesmo tempo nos traz um inexplicável sentimento de alívio, e de sossego; e um indefinível remorso; e um recôndito despeito.E que houve momentos perfeitos que passaram, mas não se perderam, porque ficaram em nossa vida; que a lembrança deles nos faz sentir maior a nossa solidão; mas que essa solidão ficou menos infeliz: que importa que uma estrela já esteja morta se ela ainda brilha no fundo de nossa noite e de nosso confuso sonho? Talvez não mereçamos imaginar que haverá outros verões; se eles vierem, nós os receberemos obedientes como as cigarras e as paineiras — com flores e cantos. O inverno — te lembras — nos maltratou; não havia flores, não havia mar, e fomos sacudidos de um lado para outro como dois bonecos na mão de um titeriteiro inábil. Ah, talvez valesse a pena dizer que houve um telefonema que não pôde haver; entretanto, é possível que não adiantasse nada. Para que explicações? Esqueçamos as pequenas coisas mortificantes; o silêncio torna tudo menos penoso; lembremos apenas as coisas douradas e digamos apenas a pequena palavra: adeus. A pequena palavra que se alonga como um canto de cigarra perdido numa tarde de domingo."

Tuesday, January 10, 2006

IDÉIA SIMPLES E ANÁRQUICA



Há três semanas uma colega me contou uma história. E lembrei dela (da história) agora num congresso. Esse congresso era realizado no campus da UFMG, em diferentes prédios de um campus que não poderia, nunca, ser chamado de pequeno. Dessa forma, as pessoas tinham que se deslocar pela universidade. Estamos em novembro e chovia. Sendo assim, havia a aventura de fugir da lama (não a metafórica), e das águas celestes, e com tudo isso as pessoas estavam se tornando um pouco irritadas, e começavam a reparar em um outro problema que era a desorganização do congresso (do qual eu fazia parte, enquanto desorganizador). E reparavam em tudo mais, em todas as coisas que reparamos quando estamos tristes e irritados, na fila do restaurante, no atraso de palestrantes, na falta de sinalização indicando onde aconteceriam os eventos... Isso tudo acabava criando um clima não muito propenso a trocas intelectuais, e também a outras trocas, o que nunca foi bom para o avanço do conhecimento cientifico universal.
Enquanto psicólogo medíocre, mestre do bem-estar entre as pessoas, esse clima humano- que refletia bem aquele do céu acima de nós, o cinza - se espalhava e contaminava todos. Foi aí que eu lembrei da tal história que venho enrolando em contar, a que me foi contada por uma boa amiga, lá na primeira linha. Na Holanda, na década de 60 um grupo de anarquistas (os chamados PROVOS) colocou em prática uma idéia muito linda, que é simplesmente a de abolir, momentaneamente, a propriedade privada. Ao que me parece (anarquistas de plantão me ajudem...) essa ação consistiu em se deixar uma bicicleta branca na cidade, uma bicicleta para o uso de todos, mas que não fosse de ninguém. A bicicleta era usada por quem precisasse e então era deixada em qualquer lugar público, e dessa forma outro vinha e também andava, e assim por diante. A bicicleta era de todos e de ninguém. Se funcionou, funciona ou funcionaria, minha pessimista intuição me diz pra não perguntar, com a finalidade de manter o principio e a beleza da idéia, o que às vezes se sustenta por si. E foi então (lembrando da bicicleta e da lama, da chuva, do campus enorme e das pessoas tendo que atravessá-lo), que pensei que deveríamos comprar guarda-chuvas brancos para esse congresso, visto que as pessoas precisavam dos guarda chuvas pra se deslocar entre os prédios, e aí os deixariam nas portas dos prédios e assim sucessivamente. Colocaríamos em evidência tal ação, o que, num congresso de Psicologia Social, poderia ser entendido como uma intervenção psicossocial, pois provavelmente contribuiria pra criar um sentimento de pertença, de algo que nos une. Achei a idéia genial, e que daria um colorido poético ao cinza de algumas linhas atrás.
Era só comprar guarda-chuvas grandes, uns 20, fazer uma etiqueta plastificada explicando a idéia, colocar um porta guarda-chuvas nas portas dos prédios e tal. Não chegava a ser complicado.
Acontece que resolvi manter essa idéia lá naquele plano paralelo das idéias lindas, como me é de costume. Só tive a idéia, a concebi, gozei um pouco com essa minha criatividade e daí tomei um café e comi um pão de queijo. Mas foi uma boa idéia, porque um guarda-chuva assim como a tal bicicleta são objetos específicos para essas situações, pois a única essência de suas existências, a única coisa que importa é existirem quando se precisa, e que funcionem corretamente. Uma tem a função de transportar pessoas e a outra de impedir que elas se molhem. Nada de fetichismo da mercadoria. Pois já acho que os próximos telefones celulares virão com alma.
Nem fiquei me sentindo tão culpado por mais uma vez nada ter feito, mas isso só porque não choveu mais no congresso, e daí não se precisou mais de guarda-chuvas brancos... e nem pretos.

Friday, January 06, 2006

ANEXO 1

Fim-de-semana em Cabo Frio
Paulo Mendes Campos

Estava tudo mais que perfeito. Cabo Frio é tão fácil. Paisagens se desdobravam como cartas de baralho. Meu corpo funcionava com regularidade. Sístoles, diástoles, inspiração, equilíbrio de energias, a escrita do sono em dia. Física e moralmente a saúde me visitava.
Nova e limpa era a cabana, o chuveiro não estava enguiçado, o cobertor aquecia, o restaurante se salgava nas contas e repetia indefinidamente o Lp de Nat King Cole (que sujeito mais chato!), tinha peixada e vinho.
Em frente, amendoeiras, uma piscina à beira-mar, um barco decorando a praia do clube, um campo de golfinho, ah, tinha até um campo de golfinho.
No outro clube, o do Canal, o Werneck era uma flor de anfitrião, o pessoal de serviço aprendeu logo os nossos nomes, poupando-nos o aborrecimento de mexer em dinheiro, o uísque, autentico, as batatinhas feitas na hora, e ninguém se ria demais ou se mostrava.
No meio do canal uma rede armada para os peixes, graças em lento movimento, um casarão antigo do outro lado, a capoeira com verdes e amarelos dum desbotado bacanérrimo.
As mulheres tomavam sol, reconciliadas com os maridos, num silencio intumescido de gratidão; ah, se os maridos as levaram para o fim-de-semana em Cabo Frio, eram mesmos uns sujeitos excelentes, perdoados de todos os egoísmos e ausências do passado.
Jogamos o futebol, voleibol, ganhamos tudo na mais delicada cordialidade, o Alim improvisou um picadinho na casa dele, todos corados e cansados o suficiente para se esperar da vida uma novidade.
As crianças, ah, as crianças! Estavam esfuziantes, tão emolduradas no momento que nem de dava para pungir o espinho de se organizar tão raramente um programa daqueles.
Céu limpo, aragem, dinheirinho no bolso, luz, tanta luz.
Num paredão avançado para dentro da água, ostras em penca ao alcance das mãos.
O gim é um veneno delicioso de manhã, sobretudo a bordo do Pitangola, sobretudo quando a gente suspende os remos e assiste à seguinte seqüência: long-shot duma menina-e-moça, estirada na relva, louríssima sem escândalo, branca sem acidez, com um maio vermelho de duas peças; perto, um menino atira pedras numa placa de madeira que indica o caminho para o hotel; o peixinho louro diz ao menino para acabar com aquilo, era a filha do dono do hotel; o moleque responde com duas pedras na mão; a garota se levanta, agarra o menino e lhe dá uns tapas merecidos; o garoto se safa, apanha calhaus maiores e volta a destruir a placa; a garota da um pique de cem metros pela estrada, segura o menino, baixa-lhe o sarrafo, aplica-lhe uma chave-de-braço e o conduz a polícia; depois retorna e se estende de novo sobre a relva; o Pitangola aproxima-se; close da cara da menina, angelicalíssima.
Tudo perfeito, tudo mais que perfeito.
Uma sauna rápida, seguida dum mergulho no canal, liga o inferno ao paraíso, e só através do contraste aprendemos a dor e o gozo.
A dor e o gozo.
Era horrível o fim-de-semana em Cabo Frio. Duma imparcialidade desumana. Dentro do meu bem-estar físico e psíquico, estava arrasado. Que tinha eu com tudo aquilo? Que tem o ser humano com o bem-estar?
Ou me entendem agora ou nunca: quero dizer o seguinte: o sol, o azul o à toa, essas coisas estraçalham meus fantasmas, perdia-me deles. Sem minhas atribulações, sou o atribulado, a própria atribulação; sem minhas angustias, sou a angustia; sem minhas infelicidades, sou o infeliz. Descobri isso finalmente. A felicidade, madame é horrível. Que horror, era horrível! Espapaçado ao sol, entre amigos, na juventude do fim-de-semana, com a aragem, as ostras, o peixinho de vermelho, o golfinho, a plenitude das crianças, eu não sei, não chego até lá, me descaminho, acabo me doendo até os ossos. Sem sofrer sofro demais. Assim tudo, Senhor, menos ser feliz. Minha libertação não é essa, essa eu não agüento. Tudo menos achar que a vida é boa. Deus me abandonou à felicidade e me dei mal.
Afortunadamente, domingo ao crepúsculo, fiel crepúsculo, no restaurante apenumbrado, antes do regresso, as fúrias e as penas voltaram ao meu coração. Eu as deixei entrar com alívio e elas se assentaram todas em torno de mim. E prosseguiram, graças ao bom Deus, em assembléia permanente.

Thursday, January 05, 2006

É SABINO, VOCÊ TAMBÉM NÃO SABE A FALTA QUE ELA ME FAZ...

Rafael Prosdocimi

Desligo a música que tocava, curto o silêncio, e com isso paro de pensar em outras coisas que não na nossa curta, e já antiga história Agora faz silêncio. Como é difícil ter silêncio nessa cidade, nessa casa. E eu que sempre gostei muito das segundas e das quartas-feiras, ando preferindo os fins-de-semana, principalmente os domingos, apenas pelo silêncio. E é nesse silêncio que ela me vem à cabeça. Já faz algum tempo que não a vejo. Materialmente. Faz mais tempo ainda que não a olho nos olhos e digo do mundo e da vida sem produzir sonoridades. Um tempo suficiente pra olhar pra trás com ternura, tristeza e um certo desprendimento de mim mesmo. Já sinto que aquela nossa breve história não nos pertence. Isso significa que acabou, para sempre. Essa ultima frase me entristece, ainda mais lida em voz alta, e espero estar enganado. Sei que não estou, mas afinal o que tenho eu com aquilo que “sei”...
Sei que quando na sala de aula, ou em qualquer outro lugar, armado de uma caneta e encarando um papel; é ela, é o seu nome que me vem à cabeça. Escrevo seu nome todo no papel. “A. M. A”. Nunca tinha visto assim, pensado dessa forma. Seu nome completo, junto, ama. Amava. Deveria tê-la amado. Ao menos mais, de forma etérea, segura e progressiva.
Escrevo seu nome como a tentar circunscrever seu encanto, dar nome, entender quem ela é. Mesmo que nunca tenha sido perfeita. Como diria o Bob Dylan, “Just like a woman”. Uma mulher com alguns medos, preconceitos e paixões. Com algumas idéias e um tanto delas erradas e tristes.
Essa moça encontrou um rapaz muito assustado com a novidade das mulheres, e isso tudo representado pelo encontro da pele e do olhar, isso que é “mais grande”, dessa cumplicidade que há entre duas pessoas. Ah, esse rapaz aprendeu alguma coisa com ela. E sei que também ensinou. Foram apenas 10 meses. E mais algum tempo de distensão, indecisão, de arrogância dele. Tempo esse que culminou numa última, linda, cruel e dilacerante noite.

“She makes love, just like a woman (…)
But she breaks just like a little girl.”

Ele, infelizmente, achava que havia um mundo de outras “possibilidades”, de “contingências” de “novidades” (já não sabe quais). Esse desconfiado do “amor”. Um explorador dado a poesias. Dado a encarar desconhecidas por detrás de medos e pára-brisas, à procura de beleza, sorriso...Sabe? Essas coisas. E ela já tão devotadamente amorosa, pensando em coisas certas e fixas, pautada numa realidade muito definida. Nele, esse fenômeno a dois, tinha sempre o súbito despertar da poesia. Essa que fica ressonando até encontrar palavras. Mas ela vivia seu romance como qualquer “milady” de um livro do século XVIII. Havia pássaros na sua vida, e sinfonias. E a cerca, de sua casa, seria branca, e a férias seriam em Cabo Frio, odioso Cabo Frio, que já não existe. E ele se afundava nessa tragédia que se tornava a sua vida fácil, sentia que precisava tentar lonjuras, e abismos, e angustias maiores. E a poesia a dois foi se escasseando para ele. Surgia o misterioso Mundo. E do outro lado Cabo Frio se mostrava o pesadelo para a poesia. Essa vida besta (e angustiante) como tão belamente me contou Paulo Mendes Campos. Mas a verdade é que hoje ela faz muita falta no sentido do dia, do dia e da noite. E não há angustia maior. A falta do ventre, dos seios, dos olhos, das marcas. Do cheiro. Desse contato com a vida, maior do que ler “e-mails”, atender telefonemas, e, quando muito, dizer: “bom dia, tudo bom, né?”, para alguém que passa a caminho de lugar nenhum.
Ela preenchia a minha Vida, e agora, nos últimos meses, vem me visitando com mais freqüência do que o necessário. Do que o suportável. Mesmo com o tal desprendimento – mentira - e ternura, tristeza.
A.M.A, tinha muitas dores, e de todas eu sempre fugi. Sinto que ela encontrou seu porto seguro, para que a tal Vida, essa que eu já não suporto também, não a incomodasse mais. Provavelmente irá agora no próximo show do Skank, deve ter visto o ultimo capítulo da novela, e amanhã, no bar, vai reclamar e fazer coro sobre a violência de hoje em dia. A.M.A trabalhará muito, ganhará dinheiro e de vez em quando lerá minhas pobres coisas, no parar de sua vida; achará algo bonito da nossa história, e logo se preocupará em fazer qualquer coisa que despiste o pensamento. Eu continuarei eternamente muito disposto a ser uma eterna promessa de qualquer coisa que nunca será nada. Perguntarei-me muito “Como se chegar a ser o que se é?”. E nunca terei a tal resposta.

Um pouco mais ainda, um recado pessoal, para você, que eu covardemente (como é de meu feitio) coloco aqui no meio de coisas vagas e gerais, com uma expectativa abstrata de que chegue a você. Ainda te procuro nesse seu carro de marca japonesa que nunca lembro direito a cor, se é dourado ou cinza (chumbo). Preferiria que ele fosse dourado. Procuro você dentro do carro dessa marca, de qualquer uma dessas duas cores, mas acabo não resistindo e te buscando em qualquer outro carro, em qualquer outro lugar da vida, até em bicicleta ou restaurante, cemitério ou jet ski. Antes era mais fácil, pois te buscava naquele carro prata, 1984, testemunha muda e coadjuvante do traumatizante, lindo, e épico Ultimo Dia.
Ah, mas se fosse só a rua que me prendesse à sua lembrança. Mas esta casa minha, de tudo, tem um pouco da sua fantasmática presença. Em cada canto lembro de algo seu que ficou, na parede, na mesa de vidro, na cama. E não ficou pouco. A varanda, às vezes trancada, às vezes aberta e por muitas testemunha de um amor veloz. E você se lembra daquelas bolas de vidro que ficavam (e ainda ficam), em cima da mesa da sala? Lembra...Aquelas bolas que num abrir muito inesperado de portas foram reviradas na velocidade do despertar para a realidade e se bateram uma com a outra, e ambas bateram no suporte de vidro, que quebrou um pouquinho. E hoje resta um buraco nesse suporte de vidro (e não só nele). A cama hoje solitária, quieta. Aqui tudo me lembra você. Ainda mais agora, no final do ano. O melhor natal da vida de uma criança, um moleque cheio de esperança aos 20 anos de idade. Aquele arroz piemontês, lembra?
Havia vida no meu mundo, entre as minhas monótonas diástoles e sístoles. Seus ossos e sua carne correspondiam e respondiam fielmente ao meu corpo e tudo isso era tão banal, tão automático, havia tão pouco esforço de minha parte em fazer aquilo de bom acontecer, que eu achava que era fácil de se encontrar por aí. Nessas outras. E nunca foi. A banalidade era parte do plano do Demônio Maligno, em me enganar fazendo achar que havia algo chamado Mundo. Não existe o Mundo, não há Cabo Frio, e o que dizer de Búzios? Ah... Búzios, aquele seu vestido (diabólico vestido que você nunca mais usou), e ainda a senhorita caindo como uma bêbada naquela rua de grandes pedras e muitos dólares. Lembra?
E para os reacionários de plantão e para você também, saiba que não é do tempo que tenho saudade. Saudades sinceras de sua risada absurda, meio soluçada; de seus olhos, que brilhavam como se você chorasse; e de seus ossos, todos eles, pontudos que quase doíam, senão me fizessem amar. O tempo não existia nessa nossa equação. Aquele tempo era só o de estarmos sós. E nunca mais me houve paz como aquela. E num depois, que é ainda hoje, tento e tentei em vão. Não muito. Já não acredito em grandes números. Mas tentei. Que a sua vida seja boa e que a cerca seja branca, e que sempre haja sol em Cabo Frio. Que você se lembre de mim um pouco de vez em quando. Aquele seu choro, o seu choro solitário na minha cama. A sua conclusão sábia e triste sobre o nosso óbvio fim, marcada pelas suas lágrimas, pulsa, lateja na minha cabeça. E eu que nada entendi daquilo (ainda não entendo), prossegui na minha ilusão tenra, doce e despreocupada, de sempre um possível e tranqüilo amanhã, como agi sempre com todo o nosso amor. Mas mesmo apesar desse tranqüilo amanhã, e, talvez, por um entendimento inconsciente das coisas, eu já vinha, progressivamente, “te decorando pra levar comigo". E te levei para sempre quando você se foi.

Tuesday, January 03, 2006

Dois amigos conversam...

Chico e Rafa Prós
Era mais um Natal, outro desses que passam ano após ano sem a nossa consulta, mas aquele foi um pouco diferente. Deixamos as crianças, as mulheres – todas elas – e também a suposta alegria típica deste dia fora de nossa sala, nosso mundo e vida. Ficamos só nós dois, ali na varanda. Havia também o Atlântico. Como era importante o Atlântico. Se havia fartura, era só de cerveja e tristeza, acompanhadas de um ou outro tira-gosto. Ambos com 56 anos, nesse desolado ano de 1969, ano que o homem chegou à lua, a mesma que agora ilumina o mar e a praia de uma forma tão sutil. Eu, só um pouco mais velho que ele em rotações astrais, mas tão “envilecido” que na nossa conversa sentia-me como um avô frente a um rapaz inquieto e apaixonado pela vida; vida essa, a dele, que progride esvaindo-se em uísque e mulheres, ainda não sei bem se mais do primeiro ou do segundo. É bem sabido, inclusive, que são exatamente essas – e que fique bem claro que me refiro aqui às mulheres, não ao santo uísque – as coisas que mais acabam com a vida de um homem, mas também apenas aquilo que nos permite abençoar e cobrir com um véu de beleza a nossa Vida, que surgiu mesmo para um dia chegar se acabar. Ao contrário da minha – agora vida, não mulher – que se vai em tédio e jantar requentado do almoço. Ele poeta, boêmio e apaixonado, cada vez mais e sempre por várias mulheres, uma de cada vez, no tempo do “enquanto dure”. Mas ficava apaixonado mesmo, eu diria ser ele o mais honesto dos homens com seu amor. Às vezes olho pro sujeito e penso, “Ou é o maior apaixonado do mundo ou o maior dos enganadores, e engana até a si mesmo”, pois se nem nas minhas próprias paixões, moldadas manualmente com todo romantismo de uma pequena escola de Cachoeiro do Itapemirim, acredito piamente... Principalmente depois que elas passam, fico invariavelmente sem saber se suas intensidades foram mesmo reais e fiéis, verdade mesmo é que elas sempre passam e aí ficam tão pouco.
No Natal combinamos de trocar toda festividade pela varanda, pela cerveja e pela conversa despretensiosa, não necessariamente nesta ordem. As crianças, que já nem eram tão crianças assim, que se virassem! Assim como as mulheres ou pelo menos a dele que durava naquele instante, já que a minha, enquanto um ser pelo qual devemos nos juntar em festividade familiares, jamais se encontrou na lista de convidados de minha vida. Já percebi que meus anseios amorosos são por paixões rasteiras com quarto e sala a alguns quilômetros do meu apartamento. Pensamos em passar este Natal bêbados e melancólicos de verdade, e não como de costume, empanturrados e razoavelmente alcoolizados, tontos daquela forma mediana que ainda preserva a consciência dura de nossa tristeza. Brindamos as cervejas, já que fazia uma noite quente no Rio de Janeiro e aqui nos trópicos prefiro a gelada cevada ao formal scotch.
A conversa não poderia descambar pra outra coisa que não fossem as mulheres. Não essas nossas, mas todas as outras, uma forma idealizada deste ser. Ele, um amador inconfundível e declarado, e eu que me dizem sisudo e bravo, mas sem dúvida ambos apaixonados por elas: lindos, fugidios e mágicos seres. Para ele as mulheres eram como anjos e deviam tudo, toda a energia da vida e de sua beleza, para a devoção ao amor e ao homem. Assim, todas deviam ter essa frágil força de se fazer qualquer coisa por um grande amor, esse tipo de força que aguarda e chora em silêncio pelo seu objeto de desejo. Eu nunca concordaria com ele e então contra-ataquei: “As mulheres, pelo menos aquelas a quem amamos, devem tornar possível a visão de si mesmas como uma faca a espreitar-nos e com uma real possibilidade de cravarem-se quando menos esperemos em nossas costas. Uma mulher que nunca fará uma coisa dessas não me vale um ‘Oi’”, “Você não entende mesmo de mulheres, preste atenção, a mulher é puro amor, é sentimento, é paixão... e se hoje elas se fazem de racionais, objetivas, isso é só o que nós fizemos com elas, nós homens e essa sociedade pseudo-igualitária. Temos mais é que tentarmos reaver essas mulheres belas e fortes, mas fortes na arte de viver só sentimento”, “Mulheres que sejam só sentimento, poeta, entediam horrores. Gosto de encará-las com um medo indizível desse pronome possessivo, de forma a semear nela um receio de que ela de fato não seja minha, de forma que sabia que antes de tudo eu é que sou meu, nunca dela. Não confio a pessoa alguma a coisa que me é mais cara, minha própria vida, e penso que te machucas muito ao fazê-lo. As mulheres que mais apaixonei foram essas que me abandonaram, não como quem rompe comigo, mas como quem se reavê enquanto criatura”, “Que criatura? E para que serviria a mulher se não fosse o amor, única possibilidade real de vida, de liberdade”.
Ficamos um pouco em silêncio, jamais conseguiria convencê-lo disso ou daquilo e nem ele a mim. Tomamos mais uma cerveja e ele então passou para o uísque e para o violão. Naquele dia compusemos uma música que na manhã seguinte decidimos como melhor por embolarmos o papel e jogarmos à iemanjá, não deveria existir nesse mundo nada tão melancólico assim. Mas ainda me lembro da melodia...