Wednesday, December 26, 2007

O FASCISMO NOSSO... - INSPIRAÇÃO


http://www2.uol.com.br/allansieber/

Monday, December 17, 2007

O FASCISMO NOSSO DE CADA DIA - INTRODUÇÃO

Rafael Prosdocimi

Vários fatos deste ano me motivaram a colocar essa discussão na roda. E penso que não poderia chamar de forma diferente. Estes últimos anos tornaram visíveis velhas e novas amostras de pensamentos preconceituosos, discriminatórios, autoritários e, pior, genocidas. Isso que caracterizo como fascismo nosso de cada dia. Um processo irregular que vai e volta, e que altera sua forma de ação e que tem instituições, como o Estado, ocupando posições ambíguas, funcionando muitas vezes como mão forte e guia do processo, mas em outros momentos surge como instância capaz de barrar tais ocorrências, e restaurar valores como igualdade e liberdade. Mas devemos entender sempre que são pessoas que pensam e agem, as instituições tem um enorme poder de modelar ações, mas que estas só ocorrem pelas mãos e mentes das pessoas. Pontuar o poder da instituição não deve nunca desviar nosso olhar dos seres humanos, da cultura, da vida social.

Alguns desses fatos atuais foram: O brutal assassinato do menino João Hélio no Rio de Janeiro e mais ainda as discussões que se seguiram sobre o destino dos assassinos (“DIREITOS HUMANOS É PRA HUMANOS E NÃO PRA BANDIDO”); o filme “Tropa de Elite” e sua repercussão e desdobramento na sociedade; a execução dos dois traficantes no morro da Coréia no Rio, assim como uma série de ações policiais em favelas no Rio em outubro de 2007, e as alegações feitas pelas autoridade públicas, principalmente o Ministro da Defesa e o Governador do Estado do Rio de Janeiro (“A POLÍCIA TEM QUE AGIR “COM FORÇA” SÓ ASSIM AS COISAS PODEM MELHORAR”); o espancamento da empregada doméstica Sirlei no Rio de Janeiro e as várias notícias similares que se seguiram (“PUTA, TRAVESTI E VAGABUNDO TEM MAIS É QUE SOFRER MESMO”); A ação preconceituosa e racista de dois magistrados brasileiros, o do caso Richarlyson, jogador do São Paulo, no qual o juiz explora com ímpeto todas as teses homofóbicas presentes no imaginário popular, e a sentença de um juiz sobre uma agressão sofrida por uma mulher no interior de Minas Gerais, na qual o judiciário brasileiro nos remete à bíblia para defender a inferioridade da mulher e a supremacia masculina (“O PAPEL DO JUDICIÁRIO NESSE CALDO”); e ainda o fortalecimento do discurso particularista, arbitrário e hegemônico de algumas publicações brasileiras de grande circulação e de poder de construção de uma “opinião pública” única (A MÍDIA E A PRODUÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA).

Tenho absoluta certeza que os casos mencionados acima são uma amostra pequena de formas de justificação e sustentação de ações autoritárias contra determinados sujeitos sociais. Minha idéia um pouco baseada em alguns quadrinhos que tenho visto, principalmente do André Dahmer e do Allan Sieber, mas muito na própria idéia de espaço público, é que temos que colocar essa dimensão autoritária e fascista nas suas cores mais fortes, nos seus traços mais nítidos, tanto nas rodas intimas das mesa de boteco, assim como nas instituições, passando por todas as esferas do mundo público. Carregando as frases naturalizadas e despretensiosas, as piadas machistas e coisas do gênero, das suas origens e conseqüências sociais. Acredito que o Brasil ainda vai piorar muito. Porque, se o que vemos, mesmo que distraídos, é triste e desalentador, podemos imaginar o que não vemos ou escutamos por aí.


O assassinato do João Hélio, que chocou todos e todas, nos carregou do estranho sentimento de que o seu sofrimento, a imagem do seu sofrimento, deveria ser uma espécie de baliza para pensar o mínimo tratamento dos que o mataram. Nisso até um importante pensador brasileiro (Renato Janine Ribeiro) se inflamou e ficou a imaginar os maiores suplícios para os assassinos. Como se este fosse o problema. E é interessante como carregado pela dor imaginada da criança arrastada, ele fixa nos assassinos (que ninguém ouviu) todas as qualidades necessárias de se atribuir ao um bandido que se pode matar de forma legítima: crueldade e a impossibilidade de recuperação. Mas no fim ele coloca uma frase bem interessante “Parece, pior que isso, que temos algumas mini-auschwitzes espalhadas pelo território nacional”. Parece que ele não percebe como contribui para alimentar uma mini-auschwitz dessas. No entanto, essa discussão específica dos assassino do menino João Hélio logo transmuta-se para a banalização de qualquer forma de sofrimento dos “bandidos” no Brasil (e tenho pouca dúvida de que o caso da menina de quinze anos no Pará, que fez todos mundo falar,é só um desdobramento particular desse enunciado geral - TODOS OS “BANDIDOS” DEVEM SOFRER OS MAIORES DOS SUPLÍCIOS). Tal concepção é irmã-gemea do discurso, reacionário e autoritário, que diz que os direitos humanos são para bandidos e bobagens afins, e que os trabalhadores honestos e os cidadãos decentes desse país estariam sendo relegados em nome dos bandidos que desfrutam de regalias defendidas por intelectuais e esquerdistas inconseqüentes. Ora, o argumento relativamente simples, é que os direitos humanos são um mínimo acordado para a sobrevivência daquilo que chamamos seres humanos. Ou seja, é um mínimo que não admite barganha. Não há troca possível, não se trata de uma condição tipo, ser [humano = humano desde que não assassino, assaltante, estuprador, vagabundo]. Nada disso a conta é simples, todos são seres humanos e essa igualdade fundamental estabelecida pelos direitos humanos demarca até onde essas relações podem ir. É exatamente isso que possibilita(ria) chamarmos o que vivemos de estado de direito. E não autoritarismo.

No caso dos dois “traficantes” correndo ladeira abaixo, tentando escapar das balas dos policiais de um helicóptero, a cena choca pela impossibilidade de se ver outra coisa, como, por exemplo, o absurdo de uma prisão (Não é àtoa que correm desesperados, eles SABEM que não serão presos – Pausa: Tem outra cena dessas no melhor filme, ao meu ver, sobre a violência no Rio de Janeiro que é “Notícias de uma Gerra Particular” de João Moreira Salles). A cena parece cinematográfica, mas não é, sempre é bom lembrarmos disso. Não os vemos sendo alvejados, sabemos que eles “aparecem mortos” lá embaixo. As discussões sobre essa execução tomaram a semana. No Fantástico, como é bem do feitio da GLOBO, ao invés de se apropriar de fatos que tomam a cabeça e as bocas de milhões de brasileiros para incitar boas discussões, vimos o fechamento da discussão quando o fato pedia abertura. Segundo o Fantástico a execução dos dois traficantes é justificável visto que eles portavam pistolas (armas muito perigosas contra helicóptero e fuzis, vide Duro de Matar 3). Um tratamento digital faz a gente crer que aquela mancha escura na mão de cada um dos homens era uma arma (e devia ser mesmo). Estando eles armados com um revólver, justifica-se o assassinato frente à opinião pública inteligente. Segue-se daí a noticia da morte de um policial na mesma ação. Morte que obviamente ninguém acha justa, mas que da forma como é colocada e editada, parece que aqueles que defendem a não-execução sumária de seres humanos estão também atirando no policial, na viúva e no seu filho, que agora não tem mais pai. Essa é a grande sacada dos argumentos reacionários, transformar uma coisa em outra, criando uma relação que não existe, mas que depois parece óbvia (Leiam a Retórica Intransigente de Albert O. Hirschman). Acho bom esse exemplo. Acho que nossa democracia deve ser testada nesses exemplos, sórdidos, tristes e revoltantes. Devemos fugir desses argumentos que antes de propor qualquer coisa a ser discutida, qualquer coisa que venha dizer algo sobre o estado das coisas na sociedade, na nossa vida in comum, procuram os culpados e lavam as mãos. E achar culpados é fácil porque estes serão “os suspeitos de sempre”.

Thursday, December 13, 2007

Monday, December 10, 2007

ANDRÉ DAHMER


Ando meio obcecado por tirinhas. Em especial três jovens quadrinistas tem me despertado atenção. O Dahmer é um deles. Quero escrever algo mais substancial sobre esses caras, mas aí vai um aperitivo. Não sou nenhum especialista no assunto (muito antes pelo contrário) , mas ando delirando com a ironia e sagacidade desse povo.

Saturday, December 08, 2007

PIAUÍ II - eNCAIXe

Rafael Prosdocimi

Em 3 segundos Manoel se lembrou que havia passado a noite anterior com a mulher que ainda dormia ao seu lado. Lembrou-se também que haviam preferido vir para a casa dela. O quarto da mulher era cuidadosamente simples, colchão no chão, sem cama (tipo japonês), uma réplica de Picasso, porta-retrato com cachorro, e na estante livros: psicologia em geral (mais Jung) e umas coisas esotéricas, mas, graças ao bom deus, nada de auto-ajuda. Que bomba essa mistura de psicologia, auto-ajuda e bruxaria. Antes de levantar de vez, ele revirou na cama algumas vezes, virando pros dois lados repetidamente, técnica aprendida com uma ex-namorada pra “acordar quem dorme com a gente”. No entanto, ela não acordou.

Manoel queria levantar, ir embora daquele quarto e daquela mulher. Aos poucos ele se lembrava da noite anterior. Lá ela prestava um interesse supremo nas coisas que Manoel dizia, degustando as belas e portentosas frases que aquele macho alfa proferia. O ápice foi quando Manoel lançou uma frase, roubada de um blog, que reunia Bergman, Lacan e Dostoiéviski, ainda com um Romário cruzando e um Nietszche pra finalizar. Terminar com Nietzsche sempre é bom, Manoel pensava soberano, pois dá a impressão de que no fundo mesmo, a gente não é só um babaca que lê frases curtas de blogs, mas sim um verdadeiro intelectual. Agora, essencial mesmo é o Romário. Ele dá graça à sentença e filtra a obviedade, pois sabe-se que qualquer infeliz, freqüentador de cursos técnicos de formação em filosofia ou “adêvocacia”, coloca o cineasta, entre o psicanalista e escritor russo, com muito queijo, pão com gergelim, tomate e alface. Mas, para Manoel, o Romário, cruza registros entre o acadêmico, e o homem banal, realizando a dialética marxista do homem total (aquele que é meio pedreiro e meio literato), sendo este, no caso, o próprio babaca do Manoel.

Manoel, “empreguiçado” pela tentativa malograda de acordar “aquela que dormia”, como escreveria Saramago, resolveu levantar e ir embora. Ao se levantar, os pêlos do tornozelo dele grudaram na colcha de Chenile. Ele percebeu que era isso que o ligava “àquela quer dormia”, os pêlos do tornozelo dele tensionados contra a colcha dela. Foi aí que se deu conta que era esse o nome da mulher: Chenile. Manoel, na noite anterior havia comentado como aquele era um nome bem interessante, e ela disse algo de maias ou astecas. Em segundos, Manoel fez questão de esquecer de novo o nome daquela que dormia, pois isso já era metade do texto que ele publicaria em seu blog, mais tarde. Melhor ficar com esse nome saramaguiano, até porque trás a idéia da mulher genérica, que não é uma mulher, mas todas. Saindo, da casa lentamente pensou que seria bom lembrar de escrever isso também quando chegasse em casa.

Nichele fingiria que dormia até ter certeza de que o broxa não voltaria. Papo de broxa é foda...

Monday, December 03, 2007

Brincadeira

Há alguns anos quis brincar com um amigo meu. No seu aniversário gravei um cd com os melhores sambas de todos anos, daquela semana, mas nada de novo até aí.
O que fiz de diferente foi criar uma história a partir do título das musicas, dando uma forma alternativa ao índice. O resultado é esse aqui:

Estava passeando por Mangueira, no chão, muitas folhas verdes caídas me fizeram sentir que pisava num (01Chão de Esmeraldas), (02Sei lá, Mangueira) me faz sentir um rei, e faz de tudo ao redor pedra preciosa. Aí fui procurar meu compadre: (03Zeca, cadê você), meu irmão, quéde tu. Tô precisando trocar uma idéia com esse meu irmão. Eu, que até bem pouco tempo atrás, era apenas um (04Moleque Atrevido) que olhava no (05Espelho) e só via um (06Malandro), um pegador de senhoritas, sem coração, e destemido. Depois que cresci, sofri e estudei matemática, aí entendi a tal (07Regra Três) onde menos vale mais. Meu coração então se apaixonou, endoidou e ficou numa (08Disritmia) do cacete. E lá fui eu viver o meu (09Samba Do Grande Amor), sabe como é, (10Deixar Acontecer), porque (11Amar é Bom). Era. E depois começa os problemas e aí só dá (12Briga de Casal) , e quando eu juntava a rapaziada e fazia lá em casa aquela (13Feijoada Nem me fala... Completa) estava a confusão e tudo isso reforçava essa nossa (14 Incompatibilidade Gênios), e aí descobri a sua (15Falsa Consideração) por tudo o que me importa na vida, samba, cerveja e amizade. Eta (16Insensato Destino) que me colocou no caminho um amor, uma mulher, que nunca poderia ser (17Minha), porque de tudo éramos ao contrário. Os amigos sempre diziam: “(18Deixe a Menina)”, e eu deixei, depois teve aquela fase que eu ligava pra ela e dizia, quase todo dia, (19Volta Meu Amor), lembrava sozinho, sentado no bar, ouvindo nossa música e (20Esta Melodia) me dava uma tristeza daquelas. Mas como dizem por aí (21O Show tem Que Continuar) e o único remédio pra (22Tristeza...pé no chão), pandeiro e cerva gelada.

Friday, November 23, 2007

O fascismo nosso de cada dia – Prefácio

Rafael Prosdocimi


Há alguns meses, através das palavras do Juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho, no parecer do caso Rycharlyson, presenciamos umas das maiores demonstrações explícitas de homofobia já contidas num documento oficial no Brasil.

O jogador de futebol do São Paulo, Rycharlyson havia entrado com uma ação por danos morais contra um cartola do Palmeiras que teria dito ao vivo na televisão, que o jogador seria homossexual. O juiz Manoel rejeitou a ação do jogador e, não contente com isso, despejou uma vasta verborragia homofóbica em seu texto que defendia a virilidade constitutiva do futebol brasileiro (o parecer completo se encontra em: http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI1816056-EI6598,00.html).

Tendo em vista seu potencial normativo, tal documento é de importância fundamental na luta pela democracia no país. Assim sendo, ele foi execrado pela opinião pública, pelos movimentos sociais, e por outras instâncias do judiciário, que perceberam como tal parecer viola direitos fundamentais. O texto, absurdamente infeliz, continha sentenças como as seguintes:

- No caso do jogador, "se fosse homossexual, poderia admiti-lo, ou até omitir, ou silenciar a respeito. Nesta hipótese, porém, melhor seria que abandonasse os gramados…";

-"Já que foi colocado, como lastro, este Juízo responde: futebol é jogo viril, varonil, não homossexual";

- "O que não se mostra razoável é a aceitação de homossexuais no futebol brasileiro, porque prejudicariam a uniformidade de pensamento da equipe, o entrosamento, o equilíbrio, o idea...";

- "Para não se falar no desconforto do torcedor, que pretende ir ao estádio , por vezes com seu filho, avistar o time do coração se projetando na competição, ao invés de perder-se em análises do comportamento deste, ou daquele atleta, com evidente problema de personalidade, ou existencial".

O parecer continha ainda uns versos de uma música. Mais tarde descobri que a música é a que se encontra aqui embaixo. Seu título é uma boa dica de como o juiz entende a justiça nesse país. O lamentável parecer, recheado com as pérolas supracitadas, tem como desfecho a defesa do magistrado dos princípios de um “acordo de malandro”. Coitado do Malandro como diria o Chico Buarque.

Esse parecer nos levou a pensar com mais seriedade a importância e o poder de um juiz no nosso país. O absurdo do texto traz em primeiro plano a moralidade do judiciário, o ódio, a pessoalidade, naquilo que muitos tomam como impessoal, neutro, e no ideal: justo. Nesse sentido agradeço a “seu” Manoel por nos fazer ver, analisar e destrinchar a contingência de decisões tão importantes no nosso país. O absurdo do preconceituoso de suas palavras nos lembra o seu inverso: a possibilidade de potência dos nossos atos, do que podemos frente à barbárie. Para mim o texto do juiz Manoel nos lembra que a vida não funciona de forma automática e que as coisas acontecem na medida que as fazemos acontecer, para o bem e para o mal.

Acordo de Malandro
Bezerra da Silva

ai gente boa
se num tem intimidade com caneta
mete o dedão no papel que tá assinado nosso acordo, malandro

mas você manda lá embaixo
aqui em cima quem manda sou eu
eu não piso em seu terreno
nem você pisa no meu

mas você manda lá embaixo
aqui em cima quem manda sou eu
eu não piso em seu terreno
nem você pisa no meu

esse morro é muito grande
vamos fazer um tratado
daqui pra baixo é seu
daqui pra cima é meu lado
e não me quebre esse acordo
senão, malandragem vai virar presunto
a funeraria do morro
tá me cobrando defunto

você manda lá embaixo
aqui em cima quem manda sou eu
eu não piso em seu terreno
nem você pisa no meu

mas você manda lá embaixo
aqui em cima quem manda sou eu
eu não piso em seu terreno
nem você pisa no meu

o seu campo tá muito minado
perigo espreitando por todo lugar
malandro esperto que sou
não piso do lado de lá
porem, você fique sabendo que tá proibido pisar do meu lado
se subir, vem caminhando
mas descer só carregado

mas você manda lá embaixo
aqui em cima quem manda sou eu
eu não piso em seu terreno
nem você pisa no meu

mas você manda lá embaixo
aqui em cima quem manda sou eu
eu não piso em seu terreno
nem você pisa no meu

cada um na sua area
cada macaco em seu galho
cada galo em seu terreiro
cada rei no seu baralho
duas fases positivas quando se encontram só dá explosão
se você quebrar nosso tratado
vai levar eco do meu "três oitão"

mas você manda lá embaixo
aqui em cima quem manda sou eu
eu não piso em seu terreno
nem você pisa no meu

mas você manda lá embaixo
aqui em cima quem manda sou eu
eu não piso em seu terreno
nem você pisa no meu

mas você manda lá embaixo
aqui em cima quem manda sou eu
eu não piso em seu terreno
nem você pisa no meu

mas você manda lá embaixo
aqui em cima quem manda sou eu
eu não piso em seu terreno
nem você pisa no meu

Saturday, October 20, 2007

DIVERSÃO



Tenho me divertido muito com algumas tirinhas do Calvin e da Mafalda. Mas além da diversão (se é que é além) as tirinhas conseguem trazer outros olhares para a vida, desvencilhando de seu próprio tempo-espaço, mas permanecendo profundamente conectado aos fatos e ocorrencias particulares. Criam aquilo que se pode chamar de um particular generalizável. Dessa forma criam-se identificações, mas ao mesmo tempo distanciamento.
Tetando não ser um espremedor de sentidos, tirando todo o sumo das coisas, deleito-me como essas tirinhas...


Thursday, October 11, 2007

Saindo pela introspecção

Foi sem dúvida vergonha que senti, quando li o comentário de minha namorada, duas postagens abaixo: “Eu sabia que você ia chegar em casa e escrever sobre isso que você viu e viveu...”. Isso porque senti que é claro e óbvio que vou trazendo os meus dramas para o meu mundinho virtual e inexistente. Tudo bem não é tão claro assim, talvez duas pessoas no mundo saberiam que faço as coisas assim (Gabriela que já me conhece mais do que eu mesmo –pois conhece até aquilo que procuro desconhecer em mim, e o Chico, meu primo). Sinto também que a idéia valiosa para mim de que o blog é um espaço público, onde qualquer cidadão pode acessar é só uma idéia, e que no fundo esse espaço não passa de um diário, mais ou menos público. Então o que faço aqui é jogar as coisas no meu “diário” como o fazia Winston no seu real e imutável 1984, recriando aqui uma atmosfera que hoje não há. Dessa forma toda a ação possível vai sendo escamoteada pela introspecção, e a culpa torna-se o único fundamento de ligação com a realidade. Senti uma farsa ainda maior que a do titulo que coloquei no texto anterior. A farsa da farsa. Sabe o fingidor do Bilac, pois é, tipo.

Sinto assim porque frente a determinados movimentos, frente ao fazer, refugio-me num dizer que nada diz. O “sabia” do comentário anterior revela que minha namorada me conhece a ponto de entender como minha forma de agir (não agir) se processa, e como o modo que criei de lidar com a vida, através de palavras, e que a partir de todo e qualquer sofrimento encontrarei sempre a fácil saída do blog. Para alguém que leva a sério “A” política, no sentido da ação sobre os destinos humanos comuns é algo extremamente grave se descobrir criador de um “1984” que definitivamente (ainda) não há. Isso me remete a um grande problema de minha vida e que tem norteado toda a paixão nas ciências humanas que me move. Tudo o que quero saber é como me tornei esse paralisado, que persiste na vida como um esquizofrênico, vendo, fazendo hormônios trabalhar, angustiando, mas não agindo... vai pra casa, abre a geladeira, faz café, e vê um filme à noite. A partir dessa pretensa paralisia tento criar formas de andar, sem andar, para entender porque não ando.

Entendo que a ação política é uma coisa, e o empreendimento intelectual para entender a ação política é outra. Sem duvida Jacques Rancière é um sujeito que pode ajudar a compreender essa distância. Isso porque ele coloca a política em antítese com o saber técnico, ordenado. Um saber definido pela sociedade posto a categorizar e definir funcionamentos e regras corretos. O sujeito político é exatamente esse que sai do lugar normal designado pela sociedade. A política é o erro que expõe a contingência da vida social, expõe as entranhas das coisas como elas são, ou melhor como elas estão sendo, e ainda mais como elas poderiam vir a ser diferentes.

O meu interesse, portanto, é entender porque eu vim a ser e fazer as coisas como faço, e, por outro lado, como fazem aqueles que escapam da perspectiva minha do ordenamento, para repensar e agir politicamente. Penso em Agnes Heller e reflito se será que um dia poderei eu também, sentar, sentir, e por fim entender que isso que fiz da minha vida, eu não poderia fazer diferente, transformando o acaso da vida num destino. O meu. Como diria a irmã de Heller, menos racional que a Húngara, Clarice Lispector: “Prisão seria seguir um destino que não fosse o próprio. Há uma grande liberdade em se ter um destino”.

Monday, October 08, 2007

Monday, September 24, 2007

A FARSA CHAMADA BRASIL, sociedade, rafael...

Espancaram uma criança na minha rua. Largaram ele desmaiado na calçada. Cheguei havia uma 15 pessoas ao redor da criança, já acordada, sentado e com a cara sangrando... pingava sangue de seu rosto negro. 12 anos, no máximo. Parei.

Da onde vem minha covardia, minha fraqueza? Meu silencio, meu consentimento?

As pessoas ao redor continuavam espancando o menino de 12 anos sentado e sangrando. Questionavam o que ele fazia de errado pra ter sido espancado. Perguntavam por seus comparsas. Ameaçavam a criança. Ele é quem fora espancado tentei falar. Aproximei-me e tentei não ser baixo e medíocre. Perguntei pelo atendimento médico a um policial, que me encarou. Tentei argumentar com o policial que achava normal, e não parecia notar nenhum problema naquela cena. Ainda disse, esses assim, menores é que são os piores. Quis dizer, falar, mas não disse. Ouvi uma senhora dizer para a criança que fora espancado, “menino vocês tem que parar com isso, parar de roubar, tem que ir trabalhar”... Ninguem procurava identificar o carro com os agressores, com os violadores daquela criança. A certeza que o menino tentara roubar um carro, justificava toda e qualquer agressão. Era eu o menino. Sentado, sangrando, e enquanto meu sangue pingava em minha mão, ouvia pessoas me xingando. Tentei imaginar essa cena, mas não consegui, nunca seria eu. Eu sou branco, eu nunca passei por nada parecido, eu sou rico (a certeza do tamanho da miséria que há no Brasil, e principalmente em Belo Horizonte com o tamanho da periferia que sustenta todo esse luxo de Belvederes e Sions, proporcionalmente aumenta minha riqueza. Para os cientistas sociais mais otimistas proponho um conceito de classe social que passe a questionar se o sujeito alguma vez já foi tratado como um pequeno rato sujo....)

Tentei argumentar que nada justificava aquilo. O policial falou que logo levariam ele para um hospital. Meus fragmentos, minhas covardias, meus medos. Minha certeza (que me acompanha a tanto tempo, ora amena e ora aguda) de que sou filho disso aí, dessa burguesia aristocrática, e que minha existência a ela continuará conectada, ligada por minhas artérias a isso de mais podre e mesquinho, enquanto dela retirar os meus minutos, o meu pão, enquanto nesse lugar sugar o sangue do povo. Na hora que vemos uma criança espancada, um menino de 12 anos sangrando, cercado por pessoas que xingam e ameaçam essa mesma criança. Pessoas que devem se achar éticas, solidárias, bondosas. Nessa hora a certeza da mediocridade dessa classe muito brasileira abala qualquer possível identificação. Qualquer projeto de alguma coisa. E também confirma a certeza da minha fraqueza e covardia. Confirma a babaquice da palavra e a dificuldade da ação.Vi minha assinatura no sangue que jorrava do rosto daquele menino. Reconheci, era a minha mesmo. Não havia nenhum indicio de roubo. Nada.

Lembrar de ter muito cuidado para não ter filhos burgueses e medíocres como eu. Para quê tanto barulho? Pra quê um blog que ninguém lê? Pra que estudar a emancipação social? A juventude e a transformação da realidade brasileira, se na hora que um menino aparece na minha frente, sangrando, eu tremo e tenho medo (junta covardia e cinismo) e volto para casa certificado de que há algo errado no mundo. Há algo errado comigo rafael. Difícil é fazer as coisas na hora sem ensaio. Farsa. Fiquei com nojo de mim. Sai rafael, volta pro esgoto... E nada de apaziguar essa dor. Ela não é nada frente ao que passou esse menino.

Saturday, September 08, 2007

ROSA DOS VENTOS

Sinto angústia quando vejo esse tipo de coisa. Ao mesmo tempo, que confirma as escolhas que fiz e faço. A psicologia social e política. A compreensão dos processos de mediação entre sujeitos, outros sujeitos, os prédios, portas e as vidas impossíveis. Há nazismo em voga que dá nojo. Essa é a primeira sensação. Náusea. São senhoras ou senhores que provavelmente vão aos museus de São Paulo e Paris, com regularidade, admiram as finuras do mundo, a delicadeza, compreendem os conceitos estéticos e éticos mais complexos e elaborados. Lêem textos complicados, entendem tudo das porcas e engrenagens da vida social. Senhoras que sabem o que é lindo, feio, errado e certo. Senhoras que dão nojo e tédio. Nada é novo, ou antes nada pode ser novo. O que elas desconhecem logo encaixam nos seus preconceitos, restando fora como algo errado, pré-alguma coisa ou estupidez. Professores que gostam de ser anunciados aos sons de trombeta: “Sua Majestade o professor universitário”. Partem para um problema como se Isso só fosse um problema porque ela ainda não tocara na questão. Falta a honestidade do “não sei” verdadeiro. Essa mulher, que retroativamente me rememorou esse jeito errado de ser, apresentava sua pesquisa ali, pronta, antes de começar. E ai de quem mexer nos seus dados que ainda não existem, mas logo chegarão pontuais e arrumadinhos. E é de uma má ciência que impressiona. O sujeito plural é conjugado com o verbo no singular. Não só de uma má ciência como de uma má gramática. E isso tudo se incorpora tão facilmente as suas ideologias burguesas e estúpidas de quem sabe porque o mundo é errado, e o Brasil um país de quinta... “é lógico com esse povinho que pensa pequeno e atrasado não daria pra ser diferente”. E são sempre de esquerda. São dessas que pensam que o principal problema do Brasil é a falta de educação. Falta de respeito isso sim, dessas senhoras (e senhores). Como alguém uma vez falou, o Brasil não dá certo, porque ele deu certo pra muita gente.

E essa “muita gente” constitui suas comissões de defesa cientifico-político-moral (e econômica é claro) que prestam a vida a provar que não há desigualdade racial, sexual no Brasil. A desigualdade econômica até que existe, mas ela existe porque o trabalhador brasileiro, esse ignorante, não se qualifica para competir por melhor salários. Realmente é preciso ter cuidado com essa classe de intelectuais. Tratava-se de uma apresentação sobre o problema do adoecimento mental de telefonistas do telemarketing. E lá tinha uma sindicalista que falava e a outra não ouvia. É um absurdo. A dona procedia como se as mediações não existissem. E a sindicalista falava como as empresas de telemarketing estão cada vez mais indo para o interior do país, e empregando cada vez mais um contingente de desesperados “dispostos” a ficar mais desesperados ainda. E para essa “pesquisadora” o trabalhador adoeceu, não porque ele trabalhe, falando 8 horas por dia no telefone, com uma meta de atender a 200 pessoas, sendo obrigado a vender 50 assinaturas pra garantir algo como uma azeitona na empada ao fim do mês. Nada disso. Nada do que ele sente na pele e grita importam. Ela quer ouvir o sujeito, aquele mesmo aprisionado no consultório, amarrado no divã do analista. Logo, nossa intrépida pesquisadora descobrirá, na singularidade do sujeito (cada sujeito individualmente), um pai (tio ou avô) que na infância abusou sexualmente desse individuo e é a causa disso tudo (ou o infante queria que tivesse abusado, ou imaginou que abusou, tanto faz). O interessante é que na singularidade de cada um há sempre essa figura genérica. Portanto esses tremores, esse nervosismo, esses distúrbios que você apresenta agora, não têm nada a ver com o seu trabalho não (e logo não tem vínculos com o mundo do trabalho). Isso tem a ver com os seus desejos, e as fantasias reais, imaginárias ou que você tenha criado, do seu pai (tio ou avô)...

É com grande astúcia nos idos de 1956 (!), falando sobre a chamada “neurose das telefonistas” que o psiquiatra Louis Le Guillant escreve: “...estou convencido de que continuará sendo um dos casos clássicos da medicina, em que, a despeito do tempo, não se verifica nenhuma alteração essencial”. Não Le Guillant, não se verifica nenhuma alteração essencial ainda em 2007, apesar da contribuição que você, dentre outros, tenha dado para a demistificação desse fenômeno.

E lá havia ainda uma assistente de palco, uma estagiária, danada de bonita, mas de que isso valia, se a cada palavra errada de sua mestra, enquanto eu anotava para ter certeza de que a mulher falava aqueles disparates, a menina achava lindo e queria ser como a tal. E a professora insistia que existia sim o sujeito de um lado e o mundo do outro. Como se não importasse, dinheiro, trabalho, sindicato, colegas, grupo, trabalho. É por isso que tenho certeza absoluta da necessidade de se manter marginal. Não marginal no sentido que (alguns) psicanalistas dão ao termo. De ficar a margem de diversos processos importantes, cerceado por um conjunto de doutrinas ortodoxas, que se balizam por si mesmas, e aplicando a torto e a direito tais premissas, como se no fundo mesmo não importassem as contingências, agindo sempre da mesma forma a despeito das questões especificas. Mas sim ficar nas bordas sem aderir aos fundamentos centrais de forma cega e automática.

Eu já afundava o barco de todos os intelectuais do mundo, se não fosse um professor, já idoso, que de alguma forma colocou as coisas no tamanho do ridículo, quando disse... “Mas senão existe trabalhador e sim o sujeito, podemos então dizer que também não existe saúde do trabalhador, ou sindicato de trabalhador”. E a mulher me vinha com essa do sujeito da psicanálise. Esse que não tem características. Esse que não trepa, trabalha ou dorme. Esse que é efeito de linguagem. E pensar que essa mulher trabalha numa universidade especifica, num departamento especifico, tem um carro especifico (que obviamente não trocaria por um genérico). Ou seja, essa mulher que é construída pelas mediações que ela faz com a vida ao seu redor. Falta muito sensatez e honestidade.

Depois disso fiquei com uma boa sensação (pelo tanto de trabalho que tenho pela frente) associada a uma preguiça das coisas. A gente tangencia os caminhos pela diferenciação, e é importante saber pontuar e sinalizar semelhanças e diferenças, não para descascar outras pessoas, como fiz aqui, mas para podermos constituir no horizonte comum formas de enfrentar os dilemas da nossa sociedade de maneira mais aberta e honesta. Colocar as cartas na mesa. Esconder menos e trazer mais questões a público, mesmo, as imorais.

Para mim, aquela mulher sinalizava que o caminho que estava e estou é o certo. Sua estupidez me serviu de norte. Rumo ao sul então. Estou indo pois...

Sunday, September 02, 2007

BAR V


Minha missão

(João Nogueira e Paulo César Pinheiro)

Quando eu canto
É para aliviar meu pranto
E o pranto de quem já
Tanto sofreu
Quando eu canto
Estou sentindo a luz de um santo
Estou ajoelhando
Aos pés de Deus
Canto para anunciar o dia
Canto para amenizar a noite
Canto pra denunciar o açoite
Canto também contra a tirania
Canto porque numa melodia
Acendo no coração do povo
A esperança de um mundo novo
E a luta para se viver em paz!

Do poder da criação
Sou continuação
E quero agradecer
Foi ouvida minha súplica
Mensageiro sou da música
O meu canto é uma missão
Tem força de oração
E eu cumpro o meu dever
Aos que vivem a chorar
Eu vivo pra cantar
E canto pra viver

Quando eu canto, a morte me percorre
E eu solto um canto da garganta
Que a cigarra quando canta morre
E a madeira quando morre, canta!


Tuesday, August 14, 2007

BAR IV


Constituindo realidades...

“A polícia é assim, antes de mais nada, uma ordem dos corpos que define as divisões entre os modos do dizer , que faz que tais corpos sejam designados por seu nome para tal lugar e tal tarefa; é uma ordem do visível e do dizível que faz com que essa atividade seja visível e outra não o seja, que essa palavra seja entendida como discurso e outra como ruído. (...)

Proponho agora reservar o nome de política a uma atividade bem determinada e antagônica à primeira: a que rompe a configuração sensível na qual se definem as parcelas e as partes ou sua ausencia a partir de um pressuposto que por definição não tem cabimento ali: a de uma parcela dos sem-parcela. Essa ruptura se manifesta por uma série de atos que reconfiguram o espaço, onde as partes, as parcelas e as ausências de parcelas se definiam. A atividade política é a que desloca um corpo do lugar que lhe era designado ou muda a destinação de um lugar; ela faz ver o que não cabia ser visto, faz ouvir um discurso o que só era ouvido como barulho. Pode ser a atividade dos plebeus de Ballanche que fazem uso de uma palavra que ‘não tem’. Pode ser a desses operários do século XIX que colocam em razões coletivas relações de trabalho que só dependem de uma infinidade de relações individuais privadas. Ou ainda a desses manifestantes de ruas ou barricadas que literalizam como ‘espaço público’ as vias de comunicação urbanas. Espetacular ou não, a atividade política é sempre um modo de manifestação que desfaz as divisões sensíveis da ordem policial ao atualizar uma pressuposição que lhe é heterogênea por prinicipio, a de uma parcela dos sem-parcela que manifesta ela mesma, em ultima instancia a pura contingencia da ordem, a igualdade de qualquer ser falante com qualquer outro ser falante. Existe política quando existe um lugar e formas para o encontro entre dois processos heterogêneos. O primeiro é o processo policial no sentido que o tentamos definir. O segundo é o processo da igualdade. Entendamos provisioriamente sob esse termo o conjunto aberto das práticas guiadas pela suposição da igualdade de qualquer ser falante com qualquer outro ser falante e pela preocupação de averiguar essa igualdade.

A formulação dessa oposição exige algumas precisões e acarreta alguns corolários. Antes de tudo, não faremos da ordem policial assim definida a noite onde tudo se equivale. A prática dos citas de furar os olhos de seus escravos e das estratégias modernas da informação e da comunicação que, ao contrário, abrem infinitamente os olhos, prendem-se ambas a polícia. Não tiraremos de forma alguma a conclusão niilista de que uma e outra se equivalem. Nossa situação é em tudo melhor que a dos escravos dos citas. Há a polícia menos boa e a melhor – não sendo a melhor, aliá,s a que segue a ordem supostamente natural das sociedade ou a ciência dos legisladores, mas a que os arrombamentos da lógica igualitária vieram na maioria das vezes afastar de sua lógica ‘natural’. A polícia pode proporcionar todos os tipos de bens, e uma polícia pode ser infinitamente preferível a uma outra. Isso não muda sua natureza, que é a única coisa aqui em questão. O regime da opinião sondada e da exibição permanente do real é hoje a forma comum da polícia nas sociedades ocidentais. A polícia pode ser doce e amável. Continua sendo, mesmo assim, o contrário da política, e convém circunscrever o que cabe a cada uma delas. É assim que muitas questões tradicionalmente repertoriadas como questões sobre as relações da moral e da política, só tratam, a rigor, das relações da moral e da polícia. Saber, por exemplo, se todos os meios são bons para assegurar a tranqüilidade da população e a segurança do Estado é uma questão que não depende do pensamento político – o que não significa que não possa fornecer o lugar de uma intervenção transversal da política. É assim também que a maior parte das medidas que nossos clubes e laboratórios de ‘reflexão política’ imaginam para mudar ou renovar a política aproximando o cidadão do Estado, ou o Estado do cidadão oferece, na verdade, a política sua mais simples alternativa: a da simples polícia. Pois é uma figuração da comunidade própria à polícia aquela que identifica cidadania como propriedade dos indivíduos passível de se definir numa relação de maior ou menor proximidade entre o seu lugar e o do poder público. Quanto à política, ela não conhece relação entre os cidadãos e o Estado. Ela conhece apenas dispositivos e manifestações singulares pelos quais às vezes há uma cidadania que nunca pertence aos indivíduos como tais.

Não se deve esquecer também que, se a política emprega uma lógica totalmente heterogênea à da polícia, está sempre amarrada a ela. A razão disso é simples. A política não tem objetos ou questões que lhe sejam próprios. Seu único principio, a igualdade, não lhe é próprio e não tem nada de político em si mesmo. Tudo o que ela faz é dar-lhe uma atualidade sob a forma de caso, inscrever, sob a forma de litígio, a averiguação da igualdade no seio da ordem policial. O que constitui o caráter político de uma ação não é o seu objeto ou o lugar onde é exercida mas unicamente sua forma, a que inscreve a averiguação da igualdade na instituição de um litígio, de uma comunidade que existe apenas pela divisão. A política encontra em toda a parte a polícia. Ainda se deve pensar esse encontro como encontro dos heterogêneos. Deve-se para isso renunciar ao beneficio de alguns conceitos que asseguram por antecipação a passagem entre os dois campos. O conceito de poder é o primeiro desses conceitos. Foi ele que permitiu, outrora, que uma certa boa vontade militante assegurasse que ‘tudo é político’, já que por toda a parte há relações de poder. A partir disso podem separar-se a visão sombria de um poder presente em toda a parte e a todo instante, a visão heróica da política como resistência ou a visão lúdica dos espaços de afirmação criados por aqueles e aquelas que viram as costas à política e a seus jogos de poder. O conceito de poder permite concluir de um ‘tudo é policial’ um ‘tudo é politico’. Ora, a consequencia não é boa. Se tudo é político, nada o é. Se então é importante mostrar, como Michel Foucault o fez magistralmente, que a ordem policial se estende para muito além de suas instituições e técnicas especializadas, é igualmente importante dizer que nenhuma coisa é em si política, pelo único fato de exercerem-se relações de poder. Para que uma coisa seja política, é preciso que suscite o encontro entre a lógica policial e a lógica igualitária, a qual nunca está pré-constituída.”

(Jaques Rancière “O Desentendimento” p. 43-4)

Friday, August 10, 2007

RITUAIS DE ADORAÇÃO

Rafael Prosdocimi

Cheiro de gente velha. Suor impregnado nas mesas, no chão. Cheiro de choro. Traição. Briga. Gozos alucinatórios. Tudo isso que marca gente que vive e não toma prozac. Escutando uma música me veio essas alucinações olfativas (e que um psiquiatra mal humorado não me escute).

A música (obviamente um samba), nas vozes cansadas de Roberto Ribeiro e Clara Nunes me elevaram a esse mundo cheio de intenção e beleza.

Faltou risos e a visão sempre libertadora de um copo lagoinha cheio de cerveja. Alguns sorrisos de paisagem. Mulheres feias, algumas gordas e velhas, mas todas portas-bandeiras. E todas cheias de falsas malícias e decotadas, umas mais e outras menos. O pudor, dependure na cadeira e apenas vá sambar...

Monday, July 30, 2007

Encontro com a solidão. Sem muitas ou meias palavras. Frases curtas para sofrimentos que não tem fim. A solidão é ainda monossilábica. Indiálogável, intratável, seca, estéril, calma. O encontro com a solidão é sempre um reencontro. Nessa tarde sem tempo, sem vida, ela me traz a certeza incapaz de discrições de sua eternidade. A solidão sopra nos meus ouvidos o desespero. Mas o desespero vazio. O desespero sem vós. A solidão me lembra do que nunca vai acontecer. De uma felicidade que é palavra, e letras.

A solidão é a certeza de uma morte inodora, indolor, silenciosa, irrevogável. A solidão que encontro nessa tarde se soma aos milhares de pequenos momentos tristes da vida. Me fazem saber que meu corpo é um corpo, não sonho e nem fantasia.

Thursday, July 19, 2007

BAR III

País Dificil

Rubem Braga

Há hoje no Brasil uma espécie de preciosismo técnico-burocrático que vai complicando os problemas com uma terminologia tão pedante que desespera. Isso se manifesta em vários ramos; pululam técnicos em alergias crepusculares, em padronização do tamanho de clipes e em sociologia das ruas transversais. Parece que estamos em país sofisticadíssimo, superfino, e há sujeitos que não dormem porque não têm certeza de que conseguirão penicilina se por acaso precisarem de penicilina. Chegamos à perfeição de ver entre os pontos de exame no Itamarati para carreira diplomática à discussão da autoria das Cartas Chilenas , devendo o estudante saber quem era a favor desta e daquela tese e quais os argumentos de um lado e de outro. Descobriu-se, subitamente, a necessidade inadiável dos rapazes aprenderem latim ou grego. Surgiram de uma hora para outra estudiosos de questões especialíssimas, mil críticos de Proust e técnicos em estados corporativos.

É por causa de tudo isso que um homem simples às vezes leva um choque quando repara em alguma coisa simples. Eu, por exemplo, tive outro dia entre as mãos o resultado de inquéritos de laboratórios feitos em vários lugares da Amazônia e do Rio Doce sobre vermes intestinais. Praticamente 100 por cento dessas populações sofrem de vermes. A grande maioria é opilada e quase nunca há um verme só na barriga de cada sujeito; em geral o sujeito acumula várias espécies. Ora, isso não é novidade nenhuma. Todo mundo sabe que nossas populações rurais são cheias de vermes, que o homem do campo é quase sempre opilado e tem no ventre uma série de bichinhos que sugam o seu sangue e escangalham sua saúde. Ninguém ignora isso – mas acontece que isso não está na moda. O que está na moda é ter alergia de pena de Peru. Um outro relatório que vi, contava a história de um médico que foi chamado a certo lugar do interior para combater uma “doença misteriosa” que estava matando o pessoal. Devia ser, com certeza, uma dessas doenças que a gente adquire lendo Seleções e tem um nome tão interessante que dá vontade pôr no cartão de visita. O médico, um desses médicos do interior, meio rude, que vive isolado da nossa grande civilização carioca, chegou à seguinte e estúpida conclusão: a doença mistérios era fome. Outra coisa fora de moda, outro problema sem atualidade. O importante hoje é fazer uma intensa campanha no sentido de convencer a todas as pessoas cultas de que o complexo vitamínico JM, que se encontra em grandes proporções no cabinho das azeitonas pretas, só tem valor contra a tendência a soluçar de madrugada quando combinado com a aplicação de raios infralilases sob as unhas da mão esquerda.

Graças a tudo isso o nível cultural do país vai subindo assustadoramente. Está visto que essas transformações têm suas vantagens. Por exemplo: antigamente um funcionário postal morria decentemente de tuberculose, deixando toda a família na miséria. Hoje apesar de todas as dificuldades criadas pela guerra, ele ainda pode conseguir o mesmo, desde que cumpra todas as formalidades exigidas pelos dasps e ipases.

Sei uma anedota que é um pouco velha, mas pode ser que algum leitor não conheça. É a história do sujeito que tinha um papo enorme e enjoou de consultar médicos e mais médicos. Não havia meio do papo sair. Afinal um conhecido desse que sabia de um remédio formidável: graxa de sapatos.

“-Esquente um pouquinho a lata de graxa e passe bem devagar pelo papo, com um paninho. Depois descanse uns cinco minutos e passe outra vez pegue então um pedaço de flanela e esfregue com todo o cuidado; quanto mais esfregar, melhor.

-Mais isso cura mesmo o papo?

-Bem, se cura não sei, mas dá um brilho formidável!”

Oh, graxas, vaselinas, iapeterques, ipasitiquins.


MARÇO DE 1944

Thursday, July 12, 2007

BAR II

Nietzsche - Gaia Ciencia

373. A Ciência como preconceito. – (...) O mesmo se dá com a crença hoje em dia satisfaz tantos cientistas naturais materialistas, a crença num mundo que deve ter sua equivalência e medida no pensamento humano, em humanos conceitos de valor, “um mundo da verdade”, a que pudéssemos definitivamente aceder com a ajuda de nossa pequena e quadrada razão- como? Queremos de fato permitir que a existência nos seja de tal forma degradada a mero exercício de contador e ocupação de matemáticos? Acima de tudo não devemos querer despoja-la de seu caráter polissêmico: é o bom gosto que o requer, meus senhores, o gosto da reverencia ante tudo o que vai alem do horizonte! Que a única interpretação justificável do mundo seja aquela em que vocês são justificados, na qual se pode pesquisar e continuar trabalhando cientificamente no seu sentido (querem dizer, realmente, de modo mecanicista?), uma tal que admite contar, calcular, pesar, ver, pegar e não mais que isso. é uma crueza e uma ingenuidade, dado que não seja doença mental, idiotismo.(...) Não seria antes bem provável que justamente o que é mais superficial e exterior na existência- o que ela tem de mais aparente, sua sensualização, sua pele – fosse a primeira coisa a se deixar apreender? Ou talvez a única coisa? Uma interpretação do mundo “cientifica”, tal como a entendem, poderia então ser uma das mais estúpidas, isto é, das mais pobres de sentido de todas de todas as possíveis interpretações do mundo: algo que digo para o ouvido e a consciência de nossos mecanicistas que hoje gostam de se misturar-se aos filósofos e absolutamente acham que a mecânica é a doutrina das leis primeiras e últimas, sobre as quais toda existência deve estar construída, como sobre um andar térreo. Mas um mundo essencialmente mecânico seria um mundo essencialmente desprovido de sentido! Suponha-se que o valor de uma música fosse apreciado de acordo com o quanto dela se pudesse contar, calcular, por em formulas- como seria absurda uma tal avaliação “cientifica”da música! O que se teria dela apreendido, entendido, conhecido? Nada, exatamente nada daquilo que nela é de fato música!... p.276-8

Tuesday, July 03, 2007

E a vida, (ela também tem sua loucura)

Escrever da vida é escrever do que penso, quero, faço, devia fazer, sou. O que movimenta minhas pupilas, me dá animo, tesão, profundo desespero, melancolia, angustia. Aquilo que salta de meus dedos. Aquilo que acho importante, mas as minhas fraquezas, as minhas coisas torpes e vazias ficam guardadas comigo e não vão para você. Acho feio compartilhar mesquinharias. A cada um a medida certa de seu sofrimento, conforme sua capacidade de lidar com ele.

O ser humano se desenvolve de uma maneira peculiar de uma forma ainda e sempre estranha. Porque lembro de uma aula da quarta série sobre como proceder para achar uma palavra no dicionário, não acho que isso possa ser facilmente deduzido por qualquer teoria psicológica. Palavra mais que importante é o contingente. O espacinho que pequeno cabe Deus, o amor, o mistério, o desconhecido, as vezes o acaso, o nada. Nenhum mistério. Devemos prestar mais atenção no contingente. As crianças se deixam levar pelo contingente e penso que é por isso que não concebemos como uma criança aprende. Estamos atados às finalidades da aprendizagem e esquecemos que a criança não. Ela ali sentada e se atém a qualquer coisa. Por isso insistem os professores, já constatando o fracasso em impedir que as crianças se distraiam, que por favor todos “prestem atenção”. Inútil. Na sala de aula, olhando pro professor, na frente, escrevendo no quadro 2+2, já se encontra presente todo o espaço possível para aprender algo da vida que não 2+2. Dessa forma, acho que o que se chama socialização deveria ser levado mais a sério, e mais à brincadeira, retomando o papel do contingente. Acredito que a democracia deixará de ser farsa quando poder fazer representar mesmo, sem fingir eliminar ou mascarar, os mecanismos de controle do mundo. Os poderes que regem as ações e locomoções dos seres humanos. Quando as pessoas num sentido geral e especifico se verem identificadas com aquilo que fazem. Mesmo que seja errado. Acredito que o mundo vai ser organizado de tal forma que logo isso aqui vai ser apenas filosofia ou literatura. Abstrações ingênuas de um rapaz que queria ser escritor sem ser. Se temos psicólogos que entendem da mente das pessoas, ou se temos cientistas sociais que entendem como será uma boa sociedade, então para quê cada um tomar conta da sua vida? Conta só a do psicanalista ou do sociólogo. E à vista, por favor. Creio em corpo, hormônio, genética, evolução. Creio num sentido filogenético de desenvolvimento da espécie, mas nada me dizem de particular e restrito. Imagem, pensamento, ação, discurso, seguem linhas mais prosaicas e contingentes. O que não significa que não devem ou merecem ser analisadas, mas de uma forma diferente do que se faz em relação ao necessário. Já que o contingente é contingente exatamente por não ser necessário, e não desenvolver nenhum tipo de relação imutável e eterna de causalidade. Acredito que a psicologia social deve se investigar a toda hora e depurar seus dois vícios, que dever ser até mais. Psicologismo e sociologismo. Individualismo e coletivismo. Dialética deve ser mais do que uma palavra difícil e de significado nebuloso. Não dá pra investigar as ações de um sujeito e depurá-lo de toda a sujeira. Ou seja, de tudo aquilo que o faz ser ele. O mal do mundo continua sendo a rotina, a massificação, a coisificação, o capitalismo e a burocracia, a indiferenciação que encarna em tudo e em todos, e ninguém nem mais se atina que isso aqui foi um jogo que começou, e logo pode parar. O pensamento continua não criando a realidade, mas a realidade cria muito pensamento, inclusive o pensamento de que pensamento cria realidade. Os abismos já profundos, não aumentam de altura, mas de largura. O fosso tem a mesma profundidade. Aumenta a distancia que nos separa dos outros e as formas de chegar ali. A ilusão da comunidade humana perpetua a idéia de que não há fosso nem separação. A burguesia ainda é burguesia e esperamos que a tal revolução de 1789 chegue também, porque sinto que ela se perdeu por aí. Talvez na Groenlândia.

Saturday, June 23, 2007

Bar I

-RAIZES SUBJETIVAS DO PROJETO REVOLUCIONÁRIO

(trecho do livro A Instituição Imaginária da Sociedade – Cornelius Castoriadis, Pp111-116 )

"Às vezes ouvimos dizer: esta idéia de uma outra sociedade apresenta-se como um projeto, mas em verdade é apenas a projeção de desejos não confessados, disfarce de motivações que permanecem escondidas para os que as utilizam. Ela só serve para veicular, em alguns um desejo de poder; em outros, a recusa do principio da realidade, o fantasma de um mundo sem conflitos no qual todos estariam reconciliados com todos e cada um consigo mesmo, um sonho infantil que desejaria suprimir o lado trágico da existência humana, uma fuga permitindo viver simultaneamente em dois mundos, uma compensação imaginária.

Quando a discussão toma tal rumo, é preciso inicialmente lembrar que estamos todos no mesmo barco. Ninguém pode afirmar que o que diz não tem ligação com desejos inconscientes ou motivações que não confessa a si mesmo. Quando ouvimos ‘psicanalistas’ de uma determinada tendência qualificar, a grosso modo, todos os revolucionários de neuróticos, só podemos nos felicitar por não compartilhar de sua ‘saúde’ de Monoprix e seria facílimos descascar o mecanismo inconsciente de seu conformismo. (...)

Tenho o desejo e sinto a necessidade, para viver, de uma outra sociedade diferente dessa que me rodeia. Como a grande maioria dos homens, posso viver nesta aqui e me acomodar-me - de qualquer forma, vivo nela. Por mais criticamente que tente olhar-me, nem minha capacidade de adaptação, nem minha assimilação da realidade me parecem inferiores ao meio sociológico. Não peço a imortalidade, a ubiqüidade, a onisciência. Não peço que a sociedade ‘me dê a felicidade’; sei que isso não é uma ração que poderia ser distribuída pela municipalidade ou pelo Conselho operário do bairro, e que, se esta coisa existe, somente eu posso construí-la para mim, nas minha medidas, como já me aconteceu, como ainda me acontecerá, sem dúvida. Mas na vida, como ela é feita para mim e para os outros, entrechoco-me com uma quantidade de coisas inadmissíveis, digo que elas não são fatais e que decorrem da organização da sociedade. Desejo e peço que antes de tudo meu trabalho tenha um sentido, que eu possa aprovar aquilo a que lhe serve e a maneira como é feito e que me permite entregar-me a ele verdadeiramente e usar minhas faculdades bem como enriquecer-me e desenvolver-me. E digo que isso é possível, com uma outra organização da sociedade, para mim, e para todos. Digo que já seria uma mudança fundamental nesse sentido, se me deixassem decidir, com todos os outros, o que tenho a fazer, e, com meus companheiros de trabalho como fazê-lo.

Desejo poder, com todos os outros, saber o que se passa na sociedade, controlar a extensão e a qualidade da informação que me é dada. Peço para poder participar diretamente de todas as decisões sociais que podem afetar minha existência ou o curso geral do mundo em que vivo. Não aceito que meu destino seja decidido, dia após dia, por pessoas cujo projetos me são hostis ou simplesmente desconhecidos e para quem não passamos eu e todos os outros, de números num plano ou peões sobre um tabuleiro de xadrez e que em ultima análise, minha vida e morte estejam nas mãos de pessoas que sei serem necessariamente cegas.

Desejo poder encontrar o outro como um ser igual a mim e absolutamente diferente, não como um número, nem com um sapo empoleirado sobre outro degrau (inferior ou superior, pouco importa) da hierarquia dos rendimentos e dos poderes. Desejo poder vê-lo e que ele possa ver-me como um outro ser humano, que nossas relações não sejam um campo de expressão de agressividade, que nossa competição permaneça dentro dos limites do jogo, que nossos conflitos, na medida em que não possam ser resolvidos ou superados, digam respeito a problemas e lances reais, envolvam o mínimo possível do inconsciente, o mínimo possível de imaginário. Desejo que o outro seja livre porquanto a minha liberdade começa onde começa a liberdade do outro, e sozinho posso no máximo ser ‘virtuoso na infelicidade’. Não espero que os homens se transformem em anjos, nem que suas almas tornem-se puras como lagos da montanha – que aliás sempre me entediaram profundamente. Sei, porém, o quanto a cultura atual agrava e exaspera a sua dificuldade de ser e de ser com os outros e vejo que ela multiplica ao infinito os obstáculos à sua liberdade.

Sei, certamente , que esse desejo não poder ser realizado atualmente; nem também a revolução se ocorresse amanhã, poderia realizar-se integralmente durante a minha vida. Sei que haverá homens um dia para os quais não existirá nem mesmo a lembrança dos problemas que possam mais nos angustiar hoje. É esse o meu destino, o qual devo assumir a assumo. Mas isso não pode reduzir-me nem ao desespero, nem à ruminação catatônica. Tendo esse desejo que é meu, só posso trabalhar para a sua realização. E já na escolha que faço do principal interesse da minha vida, no trabalho a que me consagro, cheio de sentido para mim (mesmo se nele encontro, e aceito, o fracasso parcial, os prazos, os desvios, as tarefas em si mesmas sem sentido), no participar de uma coletividade de revolucionários que tenta ultrapassar as relações reificadas e alienadas da sociedade atual – estou em condição de realizar parcialmente esse desejo. Se eu tivesse nascido numa sociedade comunista, a felicidade ter-me-ia sido mais fácil – nada sei e nada posso quanto a isso. Não vou, sobre esse pretexto, passar meu tempo livre vendo televisão ou lendo romances policiais.

Será que minha atitude significa recusar o principio da realidade? Mas qual é o conteúdo deste principio? É o que é preciso trabalhar – ou então que é preciso que necessariamente o trabalho seja desprovido de sentido, explorado, contradiga os objetivos pelos quais supostamente ocorre? E esse principio valerá sob esta forma para alguém que vive de rendas? Valeria ele, sob esta forma para os indígenas da ilha Trobiand ou de Samoa? Vale ela ainda hoje, para os pescadores de uma pobre aldeia mediterrânea? Até que ponto o princípio da realidade manifesta a natureza e onde começa a manifestar a sociedade? Até onde manifesta a sociedade como tal e a partir de onde tal forma histórica da sociedade? Por que não a servidão, as prisões os campos de concentração? De onde pois uma filosofia extrairia o direito de dizer-me: aqui nesse milímetro preciso das instituições existentes vou mostrar-lhe a fronteira entre o fenômeno e a essência, entre as formas históricas passageiras e o ser eterno do social? Aceito o principio da realidade, porque aceito a necessidade do trabalho (enquanto aliás, for real, pois torna-se cada dia menos evidente) e a necessidade de uma organização social do trabalho. Mas não aceita a invocação de uma falsa psicanálise e de uma falsa metafísica, que introduz na discussão precisa das possibilidades históricas afirmações gratuitas sobre impossibilidades sobre as quais ela nada sabe.

Será meu desejo infantil? Mas a situação infantil, é que a vida nos é dada, e que a Lei nos é dada. Na situação infantil, a vida nos é dada para nada e a Lei é dada sem nada, sem mais, sem discussão possível. O que quero é exatamente o contrário: é fazer minha vida, e dar a vida se possível, pelo menos dar para a minha vida. É que a Lei não me seja simplesmente dada, mas que eu a dê a mim mesmo. Quem permanece na situação infantil é o conformista ou apolítico: pois aceita a Lei sem discuti-la e não deseja participar da sua formação. Aquele que vive na sociedade sem vontade em relação à Lei, sem vontade política, somente substitui o pai particular pelo pai social anônimo. A situação infantil é, de início, receber sem dar, em seguida fazer ou ser para receber. O que eu quero é uma troca justa para começar e a superação da troca em seguida. A situação infantil é a relação dual, a fantasia da fusão – e, nesse sentido, é a sociedade atual que infantiliza constantemente todo mundo, pela fusão no imaginário com entidades irreais: os chefes, as nações, os cosmonautas, ou os ídolos. O que eu quero é que a sociedade deixe enfim de ser uma família, falsa além do mais até o grotesco, que ela adquira sua dimensão própria de sociedade, de rede de relações entre adultos autônomos.

Perseguiria eu a quimera de querer eliminar o lado trágico da existência humana? Parece-me mais certo que quero eliminar o melodrama, a falsa tragédia – aquela onde a catástrofe chega sem necessidade, onde tudo poderia ter-se passado de outro modo se apenas os personagens tivessem sabido isto ou feito aquilo. Que pessoas morram de fome na Índia, ao mesmo tempo em que na América ou Europa os governos instituam penalidades para os camponeses que produzem ‘muito’ – é uma farsa macabra, é o Grand Guinol onde os cadáveres e o sofrimento são reais, mas não é a tragédia, não existe nisso nada de inevitável. E se a humanidade perecer um dia sob os efeitos de bombas de hidrogênio, recuso-me a chamar isso de tragédia. Chamo de imbecilidade. Quero a supressão do Guignol e da transformação dos homens em fantoches por outros fantoches que os ‘governam’.”

Friday, June 22, 2007

CAIXA DE RESSONÂNCIA


Só há causa naquilo que manca, como só há atenção e cuidado para a criança que chora. As que choram mais alto serão atendidas primeiro, por favor. Psicólogos? Não, somos, de fato, apenas policiais. Defendemos a intocável, inabalável e certeira senhora Vida, e o senhor “Tempo É Dinheiro”, muito ocupado que são esses dois. Nossa função, clara e límpida, é a suja produção dessa monótona repetida e triste realidade. Não atrapalhar nem as pessoas importantes (e o que fazer com as não-importantes?), e nem as coisas que devem naturalmente ocorrer (mas quais... meu Deus?).

O rio que não mais existe, pois passará ali, agora, ou amanhã, uma estrada larga e com financiamento internacional, faz chorar uma velha que pescou lambaris e piaus e que quer cobrar do senhor governador do Estado, ou presidente, os 7 lambaris de outrora. Ele diz poder pagar 1.000 reais, mas ela insiste em querer 7 lambaris, nem mais, nem menos. Ela está indignada com a ordem natural das coisas que baixam avenidas e estradas onde passavam rios. Chamem rápido uma psicóloga pra conversar com aquela dona ali. E lá vou eu, achando que faço da vida meu picadeiro, improvisando meus dedilhados nas relações humanas frescas e existenciais. E a moça, a senhora, perdão, depois de conversar comigo se mostrará logo iludida por um passado que definitivamente não há, nem houve. Não ouve. Você não ouviu. Viu choro, e desespero pueril, quando havia argumento. Nós, psicólogos sociais, especialistas dos problemas humanos, não pensamos em qual tipo de problema nós somos especialistas. Nem qual o repertório de soluções que nós temos. Principalmente, nós que iremos ocupar as equipes técnicas, mas sempre inter ou multidisciplinares dos que decidem sobre as vidas dos pobres, pra ser correto e direito, e também direto. Nós que nos preocupamos com o social, e que iremos ocupar as secretarias de saúde, educação e trabalho, e as ongs, terceiros (quase segundos) setores, e OSCIPS (haja malabarismo institucional), seremos responsáveis pelo silêncio consentido entre as partes daqueles que não cabem mais parte alguma, a não ser ficar calado. Àqueles aos quais a vida se sustenta sobre a manutenção de índices sociais que devem garantir a reeleição de alguém ou uma nova candidatura a um cargo mais elevado. Esses índices sempre passíveis de serem testados, em CNTP, há um quartil abaixo. Nosso trabalho é garantir esse mínimo. Garantir que a pessoa em questão vá entender, “pelamordedeus”, que nesse lugar onde você construiu sua casa, passará uma avenida larga e grande que vai trazer benefícios pra todo mundo na cidade (incluir números e cifras, e rápido), que por fim, se houver mais uma resistência, resta a ameaça de chamar o advogado e rever a legalidade do terreno dessa dona que “se diz” proprietária, e por ai vamos testando a racionalidade desse povinho, mas olha o politicamente incorreto. Ou seja, nosso objetivo é o silencio, o consenso sem discussão, o apagamento de discursos, o abaixamento da poeira toda que ta aí, grudada nas relações, na vida nossa de todo dia. Seja, na escola, na prefeitura, nos projetos sociais. Muito bom, acordar pela manhã e dizer: o sistema ta funcionando, a sociedade, se reproduz como espécies no cio, a não ser por aquelas pessoas ali que fazem barulho, e aí vocês já sabem... chamem os psicólogos... Se não funcionar chamem a polícia (essa segunda linha de combate).

Há dias, e haverá muito mais, no qual teremos a certeza do poder de vida que temos, não como magia, mas como possibilidade de fazer falar muitos mundos no mundo, nas relações. Veremos que nossa apoliticidade, nosso relativismo, nossa primazia do privado, assenta-se num absoluto desprezo pelos sujeitos outros do mundo, revela a nossa assinatura bela e plástica nos tratados mais preconceituosos e discriminatórios dos projetos de modernidade. Saberemos, portanto, que nunca houve barulho. Há falas e discursos menos e mais articulados com uma ou outra questão. Veremos que os discursos requerem recolocação numa cadeia tal, interrompida exatamente por nós, e que o lugar que ocupamos é exatamente esse, o da interrupção. Somos represas. Não deixamos os sujeitos e suas palavras passarem. Proponho funcionarmos como uma caixa de ressonância. Fomos colocados estrategicamente nos lugares no qual há barulho, se há barulho, há problema, há questão, há conflito. Proponho deixarmos reverberar, ressonar todo esse barulho nos seus termos, nas suas perguntas, nos seus anseios. Que o sistema social democrático e plural lide com os belos sons que vem da rua e que nós só vamos silenciando, pela vida a fora.

Monday, June 11, 2007

BASTIDORES I

Mas...Me diz aqui, foram 7 ou 6 Km?

Sei lá cara, mas vão pôr 7, tem essa coisa de ser um número canibalismo...

Canibalismo... ce é retardado mental né...é cabalístico, pô...piada...

Pois é então. Ficou assim: “João Hélio, de 6 anos de idade foi arrastado por 7 km! E você não fez nada!!”

Olha só...pensa comigo, eu até entendo que você queria mobilizar as pessoas e tal. Eu sei que é importante aquela dona da esquina ver a placa e chorar e blablabla, imaginando a carne do menino ficando pelo asfalto, seus ossos raspando..

Porra bicho, que merda, pára com isso...

Olha só, que tipo de publicitariozinho de merda você é... Nós temos que aprender como afetar mais internamente todas as pessoas que verão esse anúncio. Já que é um convite para esse seminário, é bom mobilizar muita gente, e o caso do menino, é o que mais mexe com as pessoas. Eu mesmo, por mais escroto que seja, não consegui parar de chorar quando a coisa aconteceu.

Mas é muito estranho isso né...O negócio aconteceu já faz um tempo lá no Rio de Janeiro, aposto que acontece isso e pior todo dia por aí aqui do lado da gente... Mas os caras insistiram porque insistiram que nós usássemos esse caso como tema do convite. Meio bizarro ficar lembrando a morte desse menino todo dia né... Daqui a pouco a mãe vai querer receber royalties pelo nome dele sendo usado assim por qualquer imbecil... Menino morrendo de morte “punk” tem um tanto por aí...Ontem mesmo, morreu um menino lá perto de casa, na base da paulada...Parece até mesmo que foi o pai dele... ou padrasto sei lá..

Mas ele tinha quantos anos?

Ah, uns 12..

Aí, 12 já ta velho pra dá ibope.

Eu acho tudo isso muito escroto e to puto, e vão acabar logo que eu to a fim de tomar uma...

Tá. Mas achei a sua frase ruim. Sabe porque...porque a dona Luzia, desempregada, la do bairro da Piedade, não tinha como fazer nada quando o menino morreu. Então não fica bom culpar a dona Luzia, porque ela não tinha comoajudar, entendeu?

É verdade, nem pensei nisso...Acho que só importa o nome do menino mesmo, e os 7 Km... concordo contigo. Vão colocar assim: “João Hélio, de 6 anos de idade foi arrastado por 7 km! Vamos tomar alguma atitude?”. E aí...o que que ocê achou?

É..é...gostei... acho que ficou bom. Ao mesmo tempo que denuncia o absurdo propõe algo pras donas de todo meu Brasil fazerem. Ficou bom... O problema é que tem aquela caninha que chama atitude né... Aí tem sempre um gozador que fica aí falando assim, vão lá tomar uma atitude...entende...?

Num conhecia essa caninha não...Só a “providência”. Talvez a gente podia mudar. O que que você acha? Talvez, “vamos fazer alguma coisa”. Ou venha nos ajudar a pensar em alguma coisa.”

Essa última tá ruim. Parece que a gente não sabe o que fazer. A gente não, o pessoal do congresso. E a primeira pode incitar o povo a alguma coisa do tipo fazer a justiça com as próprias mãos e isso pode ser ruim pra gente.

Vão pôr aquilo mesmo. “João Hélio, de 6 anos de idade foi arrastado por 7 km! Vamos tomar alguma atitude?”. Bom, então tá, vão mandar pros caras, se eles acharem ruim, tudo bem a gente muda. Senão fica isso mesmo, certo?

Ta bom. Isso, se tiver algum problema depois a gente pensa mais nisso. E vão logo pro boteco tomar uma providencia então, ou quem sabe uma atitude, heheheh....

Sunday, June 03, 2007

TIRAR A VIDA PARA A POESIA

Rafael Prosdocimi

É ela... é ela...

Somente a poesia enche nosso peito, nossos pulmões de sentido, de nomes de amor. De ar, o alimento de devaneios que se pedem e me perdem. Que nos faz inspirar, e sentir na inspiração uma íntima troca com o mundo. Tirei a noite de ontem para a poesia. Foi fácil olhar pros lados como se não soubesse que eram lados aqueles. O show que acontecia a frente tinha às suas costas uma lua tímida, envergonhada, escondida atrás de uma benevolente montanha. Uma montanha que parecia dizer assim: “Vai, vai amiga lua...dança...baila.” Como uma mãe que incentiva o filho a ir pra vida, mesmo que para ser errado. Vai ser, diz a mãe. Havia uma ligação entre todos ali, e não sairia de mão nenhuma, um soco que fosse. Estávamos cobertos de gestos gentis, era a música que ouvia.

Diria que era arte. Diria que a arte faz a vida... vida. Mas arte é tanta coisa junta. Tem tanto dinheiro, tanta falsidade e mentira, e tanto querer aparecer que não gosto dessa palavra. E há muito rebuscamento, muito mármore, muita higiene. A poesia não. A poesia é sempre um delírio de amor. E o delírio é sempre sujo. O poeta não é aquele que faz poesia, mas aquele que delira e depois faz delirar. E ali, naqueles acordes buscados com tanto zelo, havia um sujeito, um trabalhador, o segurança, este que pela força da profissão, fica de costas para o palco a observar se o público comporta-se bem. Esse segurança, sentindo a poesia, sacou sua máquina fotográfica que fala, e tirou uma foto da lua despontando atrás da montanha. Um rapaz gordo e barbudo cantava algo estranho, fora da música, do tom, enquanto um amigo seu, feio, bailava com uma moça que segurava um vinho barato, levantando-a, girando-a, com tanto amor.

Eu ficava sentindo. A música era tão linda, e havia tanto espaço ali pra gente ser a gente, que tinha gente que não queria saber de música, pois além havia a grama, o vinho, o chá e a pipoca, e mulheres e homens com frio. Era uma música consciente tanto da sua beleza quanto da sua humildade. Eu achei lindo essa mistura. Há muito tempo não sentia a beleza se apossar de mim. Se apossar e me despojar de preocupações mesquinhas. A cerveja, passa, nesses instantes, por purificação e se santifica. A vista, se fortalece e acha aquilo que se quer ver.

Que a poesia nos visite todos os dias. Que entre um numero, e outro, que entre um ônibus e uma porta existam olhos. Que entre um suspiro e outro salte um momento. Que entre um nascer do sol e o pôr, haja um lá, a música e o lugar. Que no inverno, as coisas sejam simples e um corpo se encontre com outro corpo. Que façamos das nossas aspirações mais banais, nossas orações mais densas. Que deixemos as palavras correrem com largas margens. Haverá erros, de concordância, de gênero, de madeira, de matéria, mas que não aconteçam os erros de vontade, de passo. Que o passo seja dado.

Friday, June 01, 2007

FALA DELORES,

Rafael Prosdocimi

Delores não perdoa mesmo...Aí deve ter uns 20 quilos de bosta, pensava Clóvis. Com uma grande pá, o encarregado dos animais, no circo “Los Irmanos”, catava os dejetos fecais da elefanta Delores. Clóvis não era exatamente inteligente, de fato era um dos sujeitos mais burros que o trapezista Rodolfo, que também não era dos mais espertos, conhecia. Sua maior qualidade era o carinho dispensado aos animais. Um mágico que passara no circo nos idos de 90, hoje aposentado, dizia que Clóvis tinha essa amabilidade com os animais por estar mais perto deles do que dos humanos. Talvez fosse exagero.

Ele, Clóvis, nascera no circo. Era filho de acrobatas mortos de maneira trágica. Ironia à parte, os trapezistas morreram quando o picadeiro caiu sobre suas cabeças. Restou Clóvis que, apesar de toda a tragédia familiar, nunca desistiu do circo. Persistia incansavelmente tentando encontrar seu dom perdido entre malabares e galhofas, sem sucesso. Por fim pensara levar jeito com os pratos. Achara que era um exímio lavador de pratos, mas de fato não era. Logo descobriu seu dom, no grande apreço que tinha pelos animais, e foi assim que ficou responsável pelo cuidado dos bichos do circo. Mas ele se sentia tão bem com os animais, que não satisfeito em dar-lhes de comer, desembestava a conversar muitas e muitas horas com os mesmos. Foi aí que, um dia, um dos donos do circo, seu Valente, pediu a Clóvis que parasse com aquilo, pois ele parecia biruta, foi o que disse na época. Depois disso Clóvis nunca mais dirigiu uma única palavra aos animais.

Pois no fatídico dia, enquanto retirava os tais 20 quilos de bosta da jaula de Delores, Clóvis ouviu a seguinte frase:

-Depois que terminar isso, troque a água por favor, ela está suja...

-Mas quem disse isso! Mais no pulo que na palavra- resmungou Clóvis.

-Ora, quem mais está aqui alem de nós dois. Sou eu mesma...A Delores quem fala...

-Mas, num pode não... bicho não fala não.

-Isso é o que você acha né...É verdade que quase fico muda, de tanto que não pratico. Se você tivesse me ensinado antes eu já falaria há muito tempo. Mas não, você não fez nada...Ficava o dia inteiro aí calado, é mesmo um ignorante.

-Não vou tolerar esse tipo de agressão, ainda mais levando em conta que meu tio é ventríloquo, quer dizer, era. Se ele ensinava boneco a falar imagina que maravilha não faria com uma elefanta. Então não venha com crueza, porque eu bem sei que tentei te ensinar a falar, mas fui proibido de continuar. Também me faltava a brilhanteza de titio, é bem verdade. Mas que eu tentei, eu tentei. Deixa as ignoranças pra lá Delores, e...

-Tentou, mas tentou pouco né, seu preguiçoso. Você me deixou aqui nessa solidão a mascar essas folhas secas, a tomar essa água suja...

-Olha, me desculpa aí, mas também não precisa esculachar...

-Não, agora é tarde. Nunca mais falarei com você ou com mais ninguém. Essa foi a primeira e última vez. Você me desapontou muito. Adeus.

O palhaço Perereca, que fazia hora extra, saiu por detrás da jaula a rir longamente. Clóvis chorava. Ainda gritou por Delores, implorou por sua palavra, tentou se explicar, mas o silêncio dela enchia seu coração de angustia. Em casa, Clóvis tentou se matar. Não conseguiu. E no amanhã restaria uma segunda feira.

Wednesday, March 28, 2007

NOSSA BREVE, FRÁGIL, CONTINGENTE E TÃO GRANDE VIDA

Esse poema perseguiu meus olhos e ouvidos.
Meu padrasto (que era sim lindo, apesar dessa palavra tão feia)
dizia esses versos com propriedade e lágrimas verdadeiras.
Meus olhos acharam esses versos numa aula enfadonha e claustrofóbica
nos idos de 98.
Mostrei a uma menina que imaginava que ela também achava

aquelas aulas (e porque não aquela vida) enfadonha e claustrofóbica. Ela gostou.

Cântico negro
José Régio


"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!