Thursday, December 29, 2005

UMA BOA MORTE PARA AS SENHORAS QUE SE VÃO...



Minhas senhoras, a todas vocês que se despedem do planeta, por agora, todas que estão a falecer junto dos seus tecidos e órgãos, e em especial a vocês que já vem morrendo lentamente ao longo de todos esses anos. Desejo a todas vocês uma boa-morte nesses próximos dias ou, no mais tardar, semanas. É o que desejo também àquelas que pegarão apenas o próximo trem, numa estação seguinte (talvez no outono). Peço que aguardem a partida sem angustia. Ainda há netos para abraçar, e filhos para olhar ternamente, e então pensar, calada, o que se fez de errado para aquela, e como aquele outro deu tão certo na vida. Logo será a vez de vocês e podem ter certeza que todas irão. É por isso que desejo uma boa morte, já que esta é certa. Que na hora do seu ultimo suspiro haja uma mão para apertar. Tenha certeza que, para os que ficam, a morte certa e determinada não dói menos do que àquela imprevisível, pois mesmo a certeza de morrer sempre traz em si a esperança de mais um dia, mais um dia, mais um dia numa sucessão infinita.
Que essa mão que te aperta seja de alguém que você, secretamente, goste mais. Temos poucas mãos, e muitos filhos, netos, amigos, e de todos, sempre sabemos, no intimo, de quem gostaríamos de ver, sentir, tentar em vão um ultimo sinal, uma ultima comunicação, no derradeiro momento.
Que nos seus olhos haja apenas resignação, calma, e sincera alegria de ter vivido. Mesmo que tudo isso seja falso. Os velhos são sempre bons, sempre parecem bons, e devem permanecer bons velhos na hora da morte. Os crimes, violências, estupros cometidos, somem nesses olhos baixos e fracos. “O fim é um imenso sossego e um grande perdão”. Ao menos deveria ser. Afaste da cabeça, minha boa senhora, seus erros. Mas se der, ao menos, fale aquilo que você gostaria de ter falado pra filha do meio em maio de 83, mas que não conseguiu. Isso que te veio à cabeça, todas as vezes que você a viu, desde aquele dia. Lembre-se que não a verá mais. Permita-se todo o desvario na vontade. Sua palavra terá uma importância enorme e, portanto, não a gaste falando mal dos outros, mesmo que seja sincero. Ao menos que essa sua palavra negativa traga, aos que ficam, movimento, vontade, revolta que seja. Mas prefiro que você seja uma velhinha formal e idônea para as coisas erradas que acha, pensa e vê. Não maldiga por Orgulho. Leve-O consigo. Ele aqui, apenas perturbará o dizer do seu nome, nos fins de tarde e nas festas da família (que nunca mais serão as mesmas), quando a sua lembrança rasgará o peito. Esse seu orgulho só ira perturbar na lembrança dos seus gestos e machucará eternamente aqueles que tanto gostas. Impeça isso. Deixe o orgulho junto com as flores no seu caixão.
Que no momento mesmo da sua morte haja serenidade, olhar e mão. E que na sua cabeça paire, como um beija-flor, a melhor lembrança da vida. Um filho sorrindo, uma noite de amor, sua mãe te abraçando - essa já morta há tanto tempo, a casa, o sítio, os lugares de colher sorriso na infância. Que seja lembrança ao mesmo tempo boa e calma. Nada muito repentino, ou violento, denso. Que apenas traga torpor a mente, e que nesse tempo final você possa afirmar: “que boa a minha vida e o que eu não faria para vivê-la toda de novo”. Que essa frase tenha a força de apagar um por um os erros da sua vida. Que você não se lembre do amor de verdade que nunca fora vivido, do aborto vergonhoso, do filho nascido e, todos os dias, indesejado, de um sonho nunca tentado ou de uma vontade sempre reprimida. Que nesse fim você sorria, e se lembre desse ultimo bisneto, ou bisneta que tenha sorrido claro naquele dia de domingo. E que esse sorriso tenha a força retroativa de trazer a tona todas essas crianças que você acompanhou da fralda à lama, do bico à glória, em todos esses anos. E por fim desejo que você se orgulhe muito da sua família, mesmo que muito do você, que poderia ter sido, tenha ficado por aí, nas latas de lixo, junto com toda essa fralda suja...

CANTICO NEGRO

José Régio
Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.
Não, não vou por aí!
Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí

Monday, December 26, 2005

Série: Se ninguém leu Rubem Braga, Sérgio Porto ou Antonio Maria, porque haveriam de ler, afinal, Rafael Prosdocimi...

Dar um Jeitinho
Paulo Mendes Campos


Escrevi na semana passada que há duas constantes na maneira de ser do brasileiro: a capacidade de adiar e a capacidade de dar um jeito. Citei um livro francês sobre o Brasil, no qual o autor dizia que só existe uma palavra importante entre os brasileiro: amanhã.
Pois fui ler também o livro Brazilian Adventure, de 1933, do inglês Peter Fleming, marido da atriz Célia Johnsonm integrante da comitiva que andou por aqui há trinta anos em busca do coronel Fawcett. No capítulo dedicado ao Rio, sem dúvida a capital do amanhã, achei este pedaço: “A procrastinação por principio- a procrastinação pela própria procrastinação- foi uma coisa com a qual aprendi depressa a contar. Aprendi a necessidade de resignação, a psicologia da resignação: tudo, menos a resignação em si mesma. No fim extremo, contrariando o meu mais justo aviso, sabendo a futilidade disso, continuei a emgambelar, a insultar, a ameaçar, a subordinar os procrastinadores, tentando diminuir a demora. Nunca me valeu de nada. Não e possível evita-la. Não há nada a fazer contra isso.
Não é verdade, Mr. Fleming: há uma forma de vencer a interminável procrastinação brasileira: é dar um jeitinho. O inglês apelou para a ignorância, a sedução, o suborno. Mas o jeito era dar um jeito.
Dar um jeito é outra disposição cem por cento nacional, inencontrável em qualquer outra parte do mundo. Dar um jeito é um talento brasileiro, coisa que a pessoa de fora não pode entender o praticar, a não ser depois de viver 10 anos entre nós, bebendo cachaça conosco, adorando feijoada, e jogando no bicho. É preciso ser bem brasileiro para se ter o animo e a graça de dar um jeitinho numa situação inajeitável. Em vez de cantar o Hino Nacional, a meu ver, o candidato à naturalização deveria passar por uma prova: dar o jeitinho numa situação moderadamente enrolada.
Mas chegou a minha vez de dar um jeito nesta crônica: há vários anos andou por aqui uma repórter alemã que tive o prazer de conhecer. Tendo de realizar algumas incursões jornalísticas pelo país, a moça freqüentemente expunha problemas de ordem pratica a confrades brasileiros. Reparou logo, espantada, que os nossos jornalistas reagiam sempre do mesmo modo aos galhos que ela apresentava: vamos dar um jeito. E o sujeito pegava o telefone, falava com uma porção de gente, e dava um jeito. Sempre dava um jeito.
Mas, afinal o que era dar um jeito? Na Alemanha não tem disso, não; lá a coisa pode ser ou não poder ser.
Tentei explicar-lhe, sem sucesso, a teoria fundamental dedar um jeito, ciência que, se difundida a tempo na Europa, teria evitado duas guerras carniceiras. A jovem alemã começou a fazer tantas perguntas esclarecedoras, que resolvi passar a aula prática. Entramos na casa comercial dum amigo meu, comerciante cem por cento, relacionado apenas com seus negócios e fregueses, homem de passar o dia todo e as primeiras horas da noite dentro da loja. Pessoa inadequada, portanto para resolver a questão que forjei no momento de parceria com a jornalista.
Apresentei ele a ela e fui desembrulhando a mentira: o pai da moça morava na Alemanha Oriental: tinha fugido para a Alemanha Ocidental; pretendia no momento retornar à Alemanha Oriental, mas temia ser preso; era preciso evitar que o pai da moça fosse preso. Que se podia fazer?
Meu amigo comerciante ouviu tudo atento, sem o menor sinal de surpresa, metido logo no seu papel de mediador, como se fosse o próprio secretário das Nações Unidas. Qual! O próprio secretário das Nações Unidas não teria escutado a conversa com tão extraordinária naturalidade. A par do estranho problema, meu amigo deu um olhar compreensivo para a jornalista, olhou para mim, depois para o teto, tirou uma fumaça no cigarro e disse gravemente: “O negócio é meio difícil...é...esta é meio complicada....Mas, vamos ver se a gente dá um jeito.”
Puxou uma caderneta do bolso, percorreu-lhe as páginas, e murmurou com a mais comovente seriedade: “Deixa-me ver antes de tudo quem eu conheço que se de com o Ministro da Relações Exteriores.”
A jornalista alemã ficou boquiaberta.





Friday, December 23, 2005

DADOS NO AR

Rafael Prosdocimi

“Quem é você? Diga logo que eu quero saber o seu jogo, que eu quero morrer no seu bloco, que eu quero me arder no seu fogo...”

Não diga, silêncio. Quem é você, é uma pergunta feita e só. Feita para que dali surja outra pergunta. E outra e outra. Já surge alguém na minha vista. Outras, algumas, poucas.
Nesses dados suspensos no ar, na vida. Dados que são belos enquanto no ar, enquanto não são ainda nada, e mesmo tudo, e qualquer coisa que eu quiser. Não precisa ser carnaval, não precisa de máscaras, mas não me diga quem é você. Pelo menos não ainda. É belo falar com uma mulher, pensar nos seus jeitos, sem que ela exista, sem que haja um nome, e manias, e medos. Acho que é essa a minha sina, o meu pecado, a minha cruz. Viver de desconhecimento, da ilusão que é mortífera, a que quando revelada, desfaz todo o nó da vida.
E você me vem agora, dizer do pai, do futebol, dos termos psicológicos, de uma paixão passada. Ah, moça tenho um desejo muito enorme de saber quem é você e não saber, e que você me perdoe, por isso, de tão tolo e covarde. Você já me conhece, não seria algo novo. Você não é uma desconhecida, nunca foi, é uma mulher conhecida, mas um mistério, que apenas me suspende, um pouco, do Tédio.
Não sou atencioso com você como quem escolhe ser atencioso (gentil ou amável) e essas detestáveis coisas. Você me escreveu coisas tão belas aqui, que deu gosto nisso tudo, nesse barulho, nesse som que ando e andas fazendo. “Anônimo disse...”. Anônimo é uma pessoa, alguém que não diz o nome. Ah... Mas atrás da minha tela, na frente da sua, jaz uma mulher que lembra, sorri, e fica em dúvida. Lembra talvez dos nossos momentos. Sorri das minhas gracinhas, tão pontuais que chegam já na beirada, no cume do sorriso, e esticam os lábios, de lado. Mais um pouco ainda. A dúvida, dessa revelação lenta, dolorosa, viva. Vejo carne, e sangue nas suas palavras. Um sangue seco.
“Ganhei o dia com o seu comentário”. Essa sua colocação foi como um gancho de esquerda, nos rins, seguida por um murro na cara. Um golpe (será, premeditado?) que derruba. Essa frase tão minha. Esses dias que só eu perco. E perco com toda a força de quem se faz perder. Ninguém mais me faz perder os meus dias, além de mim. E se você não me fez ganhar o dia (acho que não, ando “expert” em me derrubar) conseguiu, ao menos, revitalizar algo que se apagava (espero que não para apenas um último suspiro). Eu que uma vez tive coragem de mandar para uma moça, que poderia, em termos, ser você, a frase musical “Você me ligou naquela tarde vazia e me valeu o dia”, com toda a breguice do mundo e mais uma vez vejo você me valendo o dia, em mensagens postadas no meu blog (eu que tinha tanta vocação pra nunca ter um blog na vida).
Num outro comentário, a senhorita me mandou ler o texto da Marina Colasanti (não entendi, em absoluto a ligação com o outro texto que te mandei, da desilusão, do Thomas Mann). Mas esse texto lindo que diz “a gente se acostuma, mas não devia”. Essa frase mágica, frase que nos desperta do que chamamos: realidade (“ta lá um corpo estendido no chão”, violência, descriminação, misérias carnais, espirituais, mediocridade, falsas vontades, e quando vontades, só as de superfície). Frase que lembra que antes de acontecer, nós nos acostumamos e não devíamos. E de costume em costume logo estaremos casados com qualquer coisa, alimentando bactérias, filhos e vírus todos esses seres que num futuro próximo só pensarão em nos sugar toda a energia, e também trabalharemos em qualquer coisa que não vale a pena dizer, levando menino ao zoológico, e ao fim do dia sentando numa cadeira com “a boca escancarada cheia de dentes”. È esse costume que não quero. É isso. É o número que saí dos dados no ar. E o numero que fica. E consome.
Não mais dados no ar. Sei lá se suporto isso de dados cravados no chão.
Que os dados permaneçam no ar. Mas a gente também se acostuma com a solidão e a inquietude e também não devia. Assim como nos acostumamos com um corpo ao lado, e a segurança do corpo ao lado, as nossas convicções, os nossos escuros preservados e distantes, lacrados. Quantas vezes não vejo casais, e por um segundo sinto ciúme dessa cumplicidade, por um segundo não me pergunto quem seria o otário da situação, e o quanto não estarão eles Mortos, enquanto de cá tomo minha triste cerveja, e falo qualquer tolice tentando profundidade.
Você, moça, acaba despertando esse meu Ouro mesmo que Tolo e que brilhe apenas à meia luz.

Tuesday, December 13, 2005

ERRO E ACASO

Pensei nessas meninas bonitas, sempre elas que retiram das minhas vontades, qualquer energia necessária para ser um revolucionário perdido, nesses anos 2000. Alguém para mudar o mundo, salvar o planeta do terrível e maléfico “Pequeno Burguês”. Essa entidade que vem e invade nossos corpos e mentes. Essas meninas, que esvaziam minhas ânsias revolucionárias, andam em pleno dia, em qualquer lugar, com uma calculadora na mão. Uma menina que, ao te conhecer, faz as contas: dinheiro, lugar que o pretendente mora, interesses, ambição, “filho de quem” e por aí vai. Somam tudo e pensam se estão interessadas ou não. Tira-se então, a partir dessas contas, a porcentagem de tesão, da vontade, do amor que será despendido. E mesmo as meninas feias, e as pobres, e as japonesas e turcas, fazem tudo a mesma coisa. E até talvez os meninos, e eu, quem sabe. Qual a companhia mais cômoda para você? Esse amor que é geográfico, monetário, racial e narcisista.
Vejo, em todas as estações do ano, e com mais continuidade que o suportável, casais mecânicos, como qualquer outra engrenagem de um relógio velho, ou de uma maquinaria qualquer. Um casal que funciona por procedimentos. Se...Então. Esses casais que se engolem, que se agüentam como o menino doente que toma o remédio amargo, apenas porque é pior ser consumido pela doença e morrer. Parece que a vida, em casal, só pode ser essa a do suportável e nada além (retirem, por favor, a hipocrisia da sala). Acho sempre que as pessoas não agüentam a solidão, (também não precisam amá-la, e disso, sei eu). Basta apenas dialogar com ela, um pouquinho que seja, basta entender que falar, fazer som, não significa comunicação, entendimento, compreensão e tudo isso que nós, psicólogos de merda (como diria o Chico) sabemos. Basta gostar um pouco dessas coisinhas, que passam na nossa cabeça, quando estamos sozinhos. Acho que então teríamos mais o que dizer, mostrar e sentir. As pessoas não agüentam a solidão porque no escuro de seus quartos, junto a suas sombras, elas têm que se haver consigo mesmas. E disso não “dãomos” conta.
Foi andando na rua, sozinho, num sábado, que percebi, senti na verdade... (como quase sempre acontece comigo). Senti com todo a força do mundo, como é um privilégio ser filho de meus pais. Esses propagadores do erro, da estupidez, da paixão. Os meus pais. Esforço por lembrar dos dois juntos, discutindo futilidades, andando na rua no domingo, imersos nas contas no cotidiano, na vida real, de mãos dadas vendo televisão no domingo. Nunca consegui imaginar nenhuma dessas cenas. Nada, ao pensar nessas situações banais, vem de pensamento, nenhuma imagem possível, nada que demonstrasse uma coerência admitida, um arranjo provável para a existência hermética desses dois. Sempre pensei neles como um erro, via isso com tristeza, acreditando na harmonia e na coerência que se faz necessário entre um casal. Desse eterno silencio e calma e quietude e cessão e paz e a quinta de Mozart.
E voltava para essas meninas, que, com calculadoras, pensam quantos anos são precisos namorar, noivar, casar, ter filhos. De quanto dinheiro precisarão elas para sobreviver, para estarem vivas. Retornava a imagem para os meus pais, e em como, de fato, eu não sou filho dessas mulheres que fazem contas, e muito menos desses homens que se tornam números digitais, com uma facilidade acima do normal. Se minha mãe usa a calculadora (e ela usa), é só depois de ter cometido todos os erros da vida, e disso, eu tenho muito orgulho.
Mas os dois tão profundamente separados na vida, ele tão intelectual quanto um conquistador, arrogante e pretensioso, disposto a mil lorotas metafísicas. E minha mãe uma perfeita patricinha, mal-acostumada com esses namorados babacas que lembram o Travolta, nos tempos da brilhantina. Tão leves e alegres. Ela provavelmente queria uma casa grande, e jardim, e batedeira elétrica e um carro e casa em Cabo Frio, aquele paraíso na Terra. E ele provavelmente não queria nada, pois penso que ele nunca quis nada dessas coisas.
Esse erro que me faz alterar a frase, “errar é humano”, reforçando que: “apenas errar é humano”. Todo o resto conseqüente, todos os acertos, diz apenas das máquinas, dos procedimentos frios e enfadonhos. Ela se apaixonou por esse rapaz, achando graça talvez nas suas maluquices (ah, e se disso eu não sei) e ele a achou linda demais, linda pra ficar olhando muito tempo, meia eternidade talvez (ah... mas não apenas). Eles cometeram esse erro de ficarem juntos. E foi um erro tão profundamente belo que acabou, num acaso, gerando o primeiro filho. Meu irmão nasceu no mais lindo encontro do erro com o acaso, o erro da paixão com o acaso da concepção forçada pela Vida, sem a violência provocada pela razão e pela calculadora, sem a conta das fraldas que nunca deveria se feita. E depois veio eu e minha irmã, e a ponta desse acaso nunca deixou de visitar nossos nascimentos. Eu, desejo concreto de minha mãe, desconhecimento assentido de meu pai, e minha irmã um pouco filha dos erros dos instrumentos (única parte de humanidade que cabe aos pobres). Filha do DIU.
Que alegria saber que foi de humanidade e vida e amor, e que de tudo isso vim ao mundo, e agora, e agora, querem que eu me enamore, me case com essas que rastejam e passam suas lágrimas, seus poentes, todas as luas, a fazer contas?
Eu não sei muito mais dessa minha vida. Um sincero, não sei o que eu quero, não sei do acordar bem disposto, só sei que luto e perco todos os dias com o “pequeno burguês” que acaba me levando pra tomar um chope, e me faz achar que a vida é leve e boa e que é isso aí.
Não sei pra onde vou, nem com quem, mas sei (e disso agora, EU SEI) que não vou por aí e nem com você, mocinha, de calculadora na mão.

Monday, December 05, 2005

Eu também Raduan, eu também...

Ventre-seco- Raduan Nassar
"(...)Está muito certa aquela tua amiga frenética quando te diz que sou "incapaz de curtir gentes maravilhosas". Sou incapaz mesmo, não gosto de "gentes maravilhosas", não gosto de gente, para abreviar minhas preferências.(...)
Pouco se me dá, Paula, se mudam a mão de trânsito, as pedras do calçamento ou o nome da minha rua, afinal, já cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho, dou-lhe o meu silêncio (...)
Não me telefone, não estacione mais o carro na porta do meu prédio, não mande terceiros me revelarem que você ainda existe, e nem tudo o mais que você faz de costume, pois recorrendo a esses expedientes você só consegue me aporrinhar. Versátil como você é, desempenhe mais este papel: o de mulher resignada que sai de vez do meu caminho".