Thursday, November 24, 2005

Posicionamento

Como é importante o posicionamento. Ocupar um lugar na terra, no momento certo, garantir o deslocamento preciso. Saber não estar em situação de impedimento. Em segundos, se movimentar e aparecer ali, onde não havia ninguém e garantir alegria. E a dor dos outros. Penso em como ela se colocava na minha vista, naquela semana, como ela aparecia no meu campo visual como se aquele caminho, que não era o do seu cotidiano, o fosse, e aí eu, eu no meio campo não lançava a bola, sempre com medo do tal impedimento. Impedido. Zero a zero.
A única alegria dessa segunda-feira, que podia ser até fevereiro, é saber que por um mistério, que a cada dia penso continuará eternamente um mistério, ela confiava nos meus lançamentos que nunca partiram. Imagino ela, ali, sempre no ponto certo, na frente, mas na mesma linha dos zagueiros, só esperando o lançamento e eu, e eu, eu...eu jogo pra trás, não confiava nas pernas, prendia o lançamento, e pensava que logo, logo apareceria uma outra chance. Ela voltava, se posicionava perfeitamente, sem ser óbvia, mas além de desmarcada, se encontrava continuamente bem posicionada; e durante uma semana ficou na minha frente e desenvolvi algumas tabelinhas que não deram em nada, e alguns passes errados, e tropeções, e ela subitamente (claro que não foi subitamente) saiu do campo, da visão, da minha vida efetiva.
Permaneceu com outro uniforme me torturando e lembrando que alguns passes devem ser feitos num momento tão único que dói, dói de ter lançado a bola no ar, na vida, solta como a um destino próprio que seria aquele nosso. Como aquele primeiro e único lançamento que fiz, e que ela com toda graça do planeta respondeu ultrapassando-me em classe e categoria, e fazendo o gol.
È o único pensamento bom que resta. É o que me sobrou daquela menina, desmarcada, sozinha naquela cantina lendo um livro, enquanto eu passava. Torturo-me com essas lembranças. E o que me dá um pouco de sal, de sumo, de mel é saber que por um momento ela confiou nas minhas pernas, no meu ir que acabou não “fondo”. Essa certeza que só existe em mim, mantém uma certa esperança. Arruinado pelo êxito, prorrogador de prazer e auto-sabotador, vivendo do que nunca aconteceu, um tipo vil, baixo. Um meta analisador da vida humana, um diretor de fantoches a brincar com a vida. E foi o momento que passou. Ela deveria desexistir para mim e ser chata e triste e não permanecer nas minhas angustias daquilo tudo que eu deixei de ter sido antes de ser.

Sunday, November 20, 2005

O que fazer com esse pequeno burguês que mora dentro da gente?

É o que eu me pergunto todos os dias.
Ando na rua com um medo enorme de que alguém, um pobre, me veja dentro do “meu” carro e venha discutir, porque eu tenho esse carro, porque diabos ele é meu, e não dele. Tenho medo de não ter argumentos e nem razão. Ando e vejo nesses olhos que eles não se perguntam isso, o que me dá alivio e uma silenciosa angustia posterior: Isso porque: eu me pergunto dessas coisas. Na rua, parado no sinal, a ouvir um samba, tranqüilamente, eles vêm pedem aqueles metaizinhos, não lhes dou nada e eles passam e pedem ao próximo carro. Não me assaltam, não me esquartejam em plena Afonso Pena às 11:30. Lembro do Oscar Wilde e da desobediência como virtude original do homem. Eu não tenho essa certeza de que o carro é meu, e também a carteira, o dinheiro e os olhares delas, os sorrisos. Nunca tive essa certeza. Quando criança tinha um medo enorme de sair na rua comendo alguma coisa, e de que me fosse pedido isso que comia, não seria um simples medo de ser assaltado, mas o medo de perder no sorvete, no salgado, todas as minhas frágeis convicções, que nos outros eram tão fortes. Sempre desconfiei dessa história de ter tudo aquilo que a necessidade (vaidade) me permitiram ter, porque mamãe trabalhava muito, porque se isso é verdade (e até hoje penso que em certo sentido sim) o seu oposto também deveria ser verdade, ou seja, quem nada tinha, não trabalhava e era essa a razão. Um jovem marxista desconfiado das leis da vida, da moral, do que deve ser feito. Sempre achei (e ainda acho) que assaltar era só uma maneira de descontar as privações e desprezos colhidos todos os dias, na rua, no lixo. É claro que não significa que concorde e aprove abertamente os assaltos, só não tenho argumentos morais, lógicos e sociais pra defender a tese contrária. O roubo é a retirada de algo de outra pessoa, algo que não pertence a quem rouba. Agora questiono se pertence a quem é roubado. Nunca acreditei nisso de que bandidos são bandidos e homens de bem são homens de bem. Como se no inicio fosse tudo igual (sendo que obviamente nunca teve inicio), mas se o tivesse as condições já seriam tão diferentes que nem o mais míope dos juízes poderia legitimar tal jogo. Na corrida de 100 metros rasos, um larga no metro 0, lhe é cortado a perna, e amarrado ao seu corpo 30 quilos de chumbo. Eu largo lá no metro 40, estou bem alimentado e tenho o corpo em forma. Alguns saem lá no metro 98 e se encontram numa Ferrari.
E isso de homens de bem e de bandidos esconde todas essas questões de antes da corrida, como se no momento inicial estivéssemos todos no mesmo lugar, e alguns preferissem a favela, outros preferissem a machadinha, a arma, a pobreza, o crime, o crack, quando com tal facilidade pudessem escolher a bela casa na montanha, a gerência, o scotch 21 anos nas festividades de fim de ano. Essa é das histórias mais mal-contadas de todas. E pena que tantos acreditam nela. E sacam logo um caso escabroso pra temperar a vida, algo que envolvendo moças inocentes, casas vazias, bandidos inescrupulosos, e estupros seguidos de muito sangue. É interessante isso de exemplos. Como disse Max Weber, os jornalistas e advogados são desses que um único mau exemplo levam a ruína todos os outros. Assim como os pobres. O pai rico (da dupla pai rico/pai pobre) quando estupra a filha é um caso único, diferente, o caso particular de uma pessoa desequilibrada; agora, quando o pai pobre faz o mesmo com sua filhinha... “Olha lá, essa gentinha não tem jeito mesmo, só matando...” Um exemplo particulariza e outro generaliza. E viva a mediocridade nossa de todo dia.
O pobre é desprovido de qualquer subjetividade possível e o rico de qualquer sociabilidade, sendo que nessa divertida brincadeira, tratamos os pobres como problemas sociais e os ricos (tão filhas da puta quanto, ou ainda mais, pela separação do “reino da necessidade”) enquanto seres desviantes. “É favelado, mas honesto”. Como se a honestidade fosse a exceção. E esse pequeno burguês que mora dentro da gente vai enchendo o peito quando percebe que o mundo é esse aí, e que o negócio é agora, que dá pra levar 25%, e é só ficar esperto olhar pros lados e tomar conta do que é seu. Esse serzinho medíocre e egoísta. Ele mora, invade e expulsa qualquer coisa outra que exista por aqui, e não se assuste, o pequeno burguês já está em todo lugar. É difícil, pra minha pessoa, fazer qualquer coisa que presta na vida quando uma menina bonita na rua vale um dia, ou quando há Rubem Braga na prateleira e pornografia livre na Internet. E o pequeno burguês invade a vida e se estabelece. Qualquer relação com uma outra pessoa ameaça seu domínio e ele vai esvaindo a vida em todas essas horas.
Espero de fato que eles continuem pobres e que nunca me perguntem porque eu tenho um carro e eles não. Talvez devêssemos rezar apenas por isso... “Meu bom Deus que eles nunca descubram nada dessa sujeira toda, senão vem pegar suas coisas que esqueceram aqui em casa”. A maior sacada do capitalismo, e obviamente uma sacada psicológico, foi jogar tudo para o individuo, a consciência e coisas que indicam que somos todos unos e diferentes. Como tal problema é meu e não é nosso, e não é de um sistema e não é de uma estrutura, não há muito o que fazer. “Pobre é tudo assim mesmo”. A conta, por favor...

Thursday, November 17, 2005

Pais, uma fraude necessária

Quem me dera pretender, nessa noite de domingo, escrever um belo tratado sobre a paternidade, contemplando, entre outras coisas, questões que mexem naquele vespeiro que Sigmund Freud trouxe a luz. Quem dera entremeando todos esses complexos que envolvem investimentos libidinas, parentais, pudesse eu destrinchar um lindo arranjo argumentativo. Não. Direi eu apenas de algumas lembranças (não só as minhas) tristes, e vivas. Direi apenas de alguns pais frágeis, fracos e tolos, mas que são tudo para os pequenos.
Um homem é xingado e humilhados dia após dia, mas que volta pra casa sorri e conta um caso bonito pro filho, algo que por acaso teria ocorrido com ele no escritório, não fosse a vida real, não fosse ser ele apenas o faxineiro de tão prezado local. Ele conta um caso complexo de bem e de mal, uma ação justa, um bem realizado, algo no qual o narrador é o próprio herói, mas primeiro e antes espectador. Esse pai que depois de ver alguma situação de sofrimento de uma linda senhorita, no final a salva de um cafajeste imaginário.
E na cama, o filho deitado ouve aquilo tudo e dorme um sono lindo, no qual ele faz algo belo e justo. E no fim do dia, ainda sonhando, esse menino vai pra casa e se deita com uma mulher. E a vida é linda, os pais são fortes, nos defendem, e amanhã tem aula, talvez prova, de estudos sociais. Deveria ter prestado mais atenção nessas aulas.
Sei que o pai é fraco, volta pra cama, pensa naquelas contas e no jogo do botafogo, faz as conta e vê que talvez dê pra levar o menino no próximo domingo. Talvez, quem sabe.
Mas um dia o filho acorda e vê que o pai é um fodido, como quase todos.
O menino que já não é, vai descobrir onde o pai trabalha, o que ele faz, quanto ele ganha e tudo mais. Vai descobrir da infelicidade dê seus pais e das mentiras. Um dia de sofrimento.
Mas essa fraude, fraude aliás que é todo e qualquer pai. Todos, os broxas ou galinhas, e ricos ou podres, e pobres ou cobiçosos, cornos, vadios, viados e covardes, pelo menos em algum sentido são todos fraudes. E algum dia achamos que eles eram alguma coisa que não um pouco disso tudo aí para trás. E não só isso, é claro.
Talvez aí culpamos o pai e queríamos que ele pelo menos fosse diferente, honesto, e que nos contasse sobre sua vida tediosa e miserável, queríamos a verdade doesse a quem doesse; já agora percebemos o quão mentirosas são essas palavras. Hoje acho que esses pais são sempre necessários, é preciso em algum tempo crer nessas figuras, por mais que a desilusão venha e estraçalhe tudo e que isso doa. Lembro de meu pai e de como sentávamos em um bar e ele chorava. E de como isso nunca estava nos scripts de nenhum dos filmes que víamos. E ele ainda diria que nós não éramos filhos dele, mas sim filhos do mundo, da vida. E abria o peito e mostrava todas as feridas, muitas das quais eu nunca entenderei, nunca sentirei pra ele. E ele acabava com toda a farsa e aparecia, frágil e vivo. Mas sempre queremos os pais mortos e fortes, lembranças de homens corajosos, dispostos a tudo na vida. E é isso. Só se é ateu tendo acreditado com toda a força na existência de Deus.

Wednesday, November 16, 2005

Série: Se ninguém leu Rubem Braga, Sérgio Porto ou Antonio Maria, porque haveriam de ler, afinal, Rafael Prosdocimi...

Parábola do Homem Rico
Vinicius de Moraes

Todos são poetas à sua maneira, mas é bem possível que, se todos o fossem realmente, não houvesse mais lugar para a poesia. Porque a poesia é a amante espiritual dos homens, aquela com quem eles traem a rotina do cotidiano. A poesia restitui-lhes o que a vida prática lhes subtrai: a capacidade de sonhar. O desgaste físico e moral imposto pelo exercício das profissões, em que o ser humano deve despersonalizar-se ao máximo para atingir um índice ideal de eficiência – eis a grande arma da poesia. Depois que o banqueiro passa o dia manipulando o jogo de interesses do seu banco, vem a poesia e, na forma de um beijo de mulher, diz-lhe que o amor é menos convencional que o dinheiro. Ou o bancário, que passa o dia depositando e calculando o dinheiro alheio, ao ver chegar a depositária grã-fina, linda e sofisticada, sonha em tornar-se um dia banqueiro. E fazendo-o, invade o campo da poesia. Pois tudo é fantasia. Cada ação provoca um sonho que lhe é imediatamente contrário. Tal é a dinâmica da vida, e sem ela a poesia não teria vez. Isso me faz lembrar certa noite em Paris, num jantar com meus amigos Marie-Paule e Jean-Georges Rueff, em companhia de um grande comerciante francês, um homem super-rico, dono de um dos maiores supermercados da França, superviajado, superlindo e casado com uma mulher superlinda. Nós nos havíamos conhecido alguns anos antes, em Estrasburgo, onde ele e os Rueff então moravam, e um pilequinho em comum nos havia aproximado, depois de um papo de coração aberto que nos levou até a madrugada. O assunto agora era o mesmo, a poesia, e o nosso prezado homem rico, depois de discutirmos um pouco a extraordinária vida desse jovem gênio que foi o poeta Jean-Arthur Rimbaud, fez-nos ver que não há casamento possível entre o Grande Lírico e o Grande Empresário: ou se é uma coisa, ou se é outra. O verdadeiro homem de empresa ao mesmo tempo inveja e despreza o poeta, uma vez que não se pode preocupar além dos limites com as palavras da poesia. Elas são, para ele, o reverso da medalha: o ouro impalpável. E como as mulheres – dizia-me ele ao lado da sua – são seres devorados de lirismo, sobretudo no amor, o capitalista tinha que pagar seu preço ao artista: e esse preço, via de regra, era a própria mulher. – Elas ficam conosco porque nós representamos poder aquisitivo, podemos dar-lhes as coisas de que necessitam para ficarem mais sedutoras, terem mais disponibilidade para cuidar da própria beleza. Mas essa beleza, elas a entregam a vocês, os artistas. No fundo, as mulheres nos odeiam. O que não impede que vocês sejam todos gigolôs do capitalismo. Ponderei-lhe que já conheci vários homens de empresa que tinham passado na cara mulheres de artistas, mas o nosso prezado homem rico não se deixou perturbar e me disse assim: – É porque não se tratava de artistas verdadeiramente grandes e puros. Seriam, provavelmente, contrafações. As mulheres sentem. As mulheres só abandonam um iate em Saint-Tropez por um apartamentozinho na Rive Gauche à base do amor integral. E esse amor, só o artista verdadeiramente puro pode dar. Nós, os grandes empresários, temos um outro tipo de pureza. O nosso maior amor é o dinheiro e, através do dinheiro, o poder. A mulher vem na onda. – Eu conheci e era amigo – ponderei-lhe – de um grande poeta que foi também um grande homem de negócios. – Grande mesmo? Duvido. Esse tipo de dualidade cria uma profunda infelicidade pessoal. Não se serve ao Deus e ao Diabo ao mesmo tempo. Admirei-lhe, não sem uma certa sensação de desconforto, a franqueza e honestidade – ele, um belo homem, em plena força de seus quarenta anos, ao lado de sua mulher extraordinariamente linda, com um solitário no anular quase tão grande quanto um ovo de codorna, a nos escutar com uma atenção diligente. Fechado o restaurante, resolvemos esticar na boate New Jimmy's. O nosso prezado homem rico fez uma grande volta para passar diante do seu empório, a fim de ministrar-me uma aula: todo um quarteirão de supermercado, com três pavimentos servidos por escadas rolantes e centenas de vendedores e vendedoras com ordens expressas de serem simpáticos, mas impessoalmente, nunca além do limite, de modo a não retardar com conversas ou excessos de cortesia o fluxo incessante das compras. – Eu tenho uma média de três a cinco pessoas que são presas diariamente pela minha polícia, por furto de objetos. Em geral, depois de pregar-lhes um susto, eu os deixo ir. Depois, na direção do seu Rolls-Royce, cujo chofer dispensara, tirou do bolso do paletó a cigarreira da prata e com gestos precisos acendeu um cigarro e, olhando-me pelo espelhinho da direção, me perguntou com uma voz que não permitia réplica: – Não é uma beleza, poeta?

Monday, November 07, 2005

Tréplica

Desculpa, mais uma vez pela demora Chico, mas você sabe que eu não sou muito disciplinado nem pontual, e também queria essa resposta natural e familiar, algo que faltou à outra. Eu estava deveras sóbrio, chato e sozinho. Continuo sozinho, mas agora levemente entorpecido, então tudo flui melhor e acabo ficando mais ousado, o que não é bom apenas na frente das fêmeas. Deixo que essa carta assim flua, alcoolizada, leve e se tudo correr bem, banal.
Quanto à ciência nunca duvidei dessa sua aorta cientifica pulsante, e sempre me deu um pouco de inveja desse seu amor, por isso já havia percebido, com um pouco de tristeza, esse seu lento desprendimento. Tem uma coisa que um italiano diz, Antonio Gramsci, que é que os cientistas se preocupam muito com descobrir coisas novas quando deveriam se preocupar também em divulgar melhor as suas descobertas, e divulgá-las a uma maior gama de pessoas, transformando o senso comum em bom senso. Somos tentados a glória do primeiro lugar, do ineditisimo, e esquecemos disso, que na sua carta você diz, diferencia o norte (aí onde você está) do sul, daqui. Ou seja, a Europa já é mais receptiva a descobertas cientificas do que nós daqui. E penso, até mesmo enquanto psicólogo, que não damos devida atenção às práticas moralistas e religiosas que temos aqui, algo que deveria ser inteligentemente investigado. Sei que hoje nessa nossa cidade devemos ter algo em torno de 2 a 4 vereadores evangélicos, e pois como é sabido, eles não são muito a favor nem do álcool, e nem das marquinhas de biquíni (e se resolvessem baixar uma lei proibindo essas coisas, e aí o que seria da gente?). Falta no mundo uma boa divulgação cientifica num sentido de ser realmente boa, mas também interessante e popular.
Quanto a questão da temperatura ideal, tendo a concordar, mas penso que você não deve ater-se muito a essa informação, pois sei que haverá, aí, de esfriar ainda e aqui de esquentar. Já acho isso até meio bobo, mas que nos estados críticos faz sentido, isso faz.
Eu queria uma carta leve, mas ousarei mais uma vez te provocar quanto a sua saudade. Ando com essa tendência meio perversa, mas sei que acabo de chegar do Cartola, hoje domingo, fui sozinho, uma amiga - dessas que se tocassem campainha na minha casa fora dos horários civis eu acabaria abrindo a porta e não me responsabilizando por coisa alguma- me acompanhou numa cerveja pré-ida ao cartola no bar em frente. Lembra do bar em frente? Esse é o da frente do Tatiara. A moça só me acompanhou na pré-cerveja, o que foi uma pena. Fui ao Cartola sozinho e lá vi uma senhorita que me lembrou prontamente vossa senhoria, pois essa te deixaria louco. Morena jambo (reconheces essa cor?) cabelos pretos e curtos, um metro e 73 e um jeito de quem sabe trabalhar as ancas e todo o resto. Apesar de não ser ‘forte’ (daquele jeito que você gosta), era esbelta (mais pra mim e pro Flavio), mas sei que você se apaixonaria, muito por causa dos cabelos. E lá também se encontrava aquela pela qual você já derramou suspiros e versos, aquela de nome igual ao da cantora de sobrenome “o rei dos animais”. Ela estava linda.
Chico o sangue não corre sozinho em minhas veias, há, no dia de hoje, moléculas de álcool, mas eu, eu corro sozinho (um pouco por opção) nessas nossas ruas. Sei que minha solidão não é nada frente a sua, mas tenho certeza que tudo passará, e no final sobrarão gratas surpresas e alegrias (acho que isso é do Braga). Ando me pegando a imitá-lo indiscriminadamente. Tenha uma dele, que secretamente acho a mais bela, na qual diz (momento para copiar do original):
“E se entre meus leitores há alguma pessoa que na passagem do ano teve apenas um amargo encontro consigo mesmo, e viveu esse instante na solidão, na tristeza, na desesperança, no sofrimento, ou apenas no odioso tédio, que a esse alguém me seja permitido dizer: ‘Vinde. Vamos tocar janeiro, vamos por fevereiro e março e abril e maio e tudo o que vier; durante o ano a gente o esquece e se esquece; é menos mal (...) Coragem, a Terra está rodando; vosso mal terá cura. E se não tiver, refleti que no fim todos passam e tudo passa; o fim é um grande sossego e um imenso perdão’.”
Só pra finalizar amendoado diz mais da forma e não da cor, e não é arenque e sim Arendt, Hannah Arendt. Uma mulher dessas que apesar de feia deixaria homens como eu e você (ou seja, homens tolos) seriamente apaixonados. Uma mulher mais inteligente que a gente.
Só espero amanhã dar uma retocada nesse texto, pois sei que você é um puritano quanto a nossa língua e procurarei reduzir os erros. Espero conseguir. Boa noite.

Wednesday, November 02, 2005

Cara Professora,

Digo a ti, agora em meados de novembro, que acho que perderei esse ano. Talvez não só este. Penso que isso se deve ao fato de que muitas daquelas enfadonhas aulas iniciais, de fevereiro e março, eu acabei “matando”. Era como se eu negasse a aprender essas coisas que você nos ensinou lá no inicio. Sei que antes era mais simples, mais fácil de entender, mas como não estava na sala, nada aprendi. Agora ando me esforçando, nessa parte final, que até é mais complexa, e com isso tenho me saído bem nessas difíceis provas finais. A verdade é que as resolvo habilmente até chegar nas contas mais óbvias, mas aí vejo que faz falta aquilo, que quero acreditar, por preguiça, perdi. Tenho, sobretudo, dificuldade pra dividir, multiplicar e adicionar. Dividir é o que mais me atrapalha. Sempre foi.
Sei, professora, que você se esforçou, mas de fato eu não quis aprender e agora pago por isso. Sei que leio esses filósofos alemães, esses psicanalistas franceses (só no idioma original), eu entendo das possibilidades da mecânica quântica e das nanociencias em explicar muitas de nossas dúvidas sobre a natureza da natureza; mas de fato as coisas só são compreendidas até certo ponto, depois, ou melhor, antes desses pontos eu me complico. Explicarei melhor.
Agora na primavera desenvolvo bem os raciocínios, mas me faz falta aquilo do final do verão passado. Agora ficou muito difícil aprender isso de sorrir, e de gostar, e de ser amigo, e de amar. Essas coisas simples que achei, no inicio do ano, que, lá pra Agosto, com a leitura de Vinicius e de outros poetas acabaria aprendendo, afinal todo mundo aprende isso, uma hora ou outra. Era o que pensava. Desconfiava que essas lições seriam aprendidas naturalmente mais pra frente, até porque, pensava eu naquela época, ouviria todas as músicas de amor e que amar viria como uma simples conseqüência. E depois estudaria outros temas como a amizade de verdade e pensaria nesse singelo sentimento, e quando fosse preciso teria confidencias sérias a trocar com alguém num dia frio. Mas faltei a suas aulas e tentei em vão aprender a amar lendo. Esse método posterior não auxiliou a aprender isso, isso que é mais arcaico. Fracassei. Hoje não sei oferecer um ombro amigo e fraterno, disposto a ouvir as mil e uma loucuras de amor desses outros, pois eu mesmo não sei como se faz dessas coisas. Declamações de amor, confissões, drama. Tenho vergonha dessas pessoas. Tenho vergonha disso tudo e acho ridículo fazer essas bobagens, loucuras de amor, da mesma forma, como sentiria vergonha vendo um senhor a brincar com um velotrol.
De fato antes já me achava muito melhor que os meus colegas e resolvi matar as suas aulas. Esperaria algo mais interessante. Afinal você nos ensinava a abraçar, conversar, chamar de amigo, sorrir e dizer bobagens necessárias na rua, em voz alta e a como desprezar esses outros olhares que nos faziam ter vergonhas. Agora sei que me falta isso, que é básico e essencial. Essas pequenas coisas, gestos.
Cara professora, só escrevo pra dizer que tenho certeza, quase chegado o fim, que perderei esse ano. Espero que não fique aborrecida. Sei que tinha esperança quanto a esse meu futuro. Mas tenho absoluta certeza, que se nessa prova final pedisse, para ligar a algum amigo pedindo um conselho, ou uma ajuda, eu acabaria gaguejando e não saberia dizer nada. Se tivesse que pedir a ele que me acompanhasse numa cerveja, pois estaria triste eu teria, outra vez, vergonha e nada do que eu diria viria do coração, da alma, da breguice (meiguice) necessária.
Já sinto essa falsidade minha de quem leu Nietzsche e achou realmente que os fortes aspiram a separar e os fracos a se juntar. Essa mentira do Cowboy que salva a mocinha e foge dos seus braços para os fogosos braços dos rios e das estradas. Acreditei nisso de autonomia e liberdade. Acreditei até agora, até o lugar no qual todas as minhas equações desembocam - outras pessoas - e é por isso que reconheço meu retumbante fracasso escolar.
Peço um ultimo favor, pois não devo mais aparecer na sua sala. Por favor, diga a elas, diga às minhas colegas que pelo amor de deus apenas me perguntem das coisas muito difíceis e complexas. Perguntem-me, por exemplo, do conceito de fundação em Hannah Arendt; e do que é, afinal de contas “eterno retorno” e das implicações para a física newtoniana das descobertas de Einstein; das antimatérias e dos glúons; dos buracos negros e do conceito de sublimação em Freud e Lacan. Qualquer tema que seja difícil, complexo e objetivo. Que elas apenas me perguntem dessas coisas difíceis, mas, por favor, eu lhe suplico, mostre a elas que de fato eu não me encontrava na sala de aula no inicio do ano, se preciso for mostre a lista de chamada, e diga que quando você nos ensinou do amor, da amizade, da gentileza e da bondade eu não me encontrava presente. Principalmente peça a elas que não me perguntem nada sobre o amor. Nunca mais, por favor, senhora Vida...
De seu aluno faltoso e envergonhado...