Monday, June 12, 2006

BLABLABLAS CINEMATOGRÁFICOS I

"Matar ou morrer"
Acabo de ver o filme “Matar ou Morrer”, um desses filmes superclássicos que ouvimos sempre falar e nunca vimos. Fiquei espantado com o filme. Senão fosse pelo tiroteio no final e pela cena mostrando, num mesmo plano Herói/Bandido/Mocinha poderia jurar que se tratava de um filme europeu ou porque não, latino-americano. Isso porque é um filme sobre a angustia da solidão. Não a pequena solidão do quarto embaçado, da cama vazia, mas a solidão do mundo. O entender que não há laço possível com ninguém. Isso que o amor e a cama servem pra disfarçar. O filme é sobre a apatia política e o abandono da vida pública em detrimento da vida rastejante, da “alegria” do lar. É um filme sobre honra, mas a boa honra e não a desculpa perfeita para sustentar uma virilidade imaginária. Antes de ter visto o filme um crítico disse que se tratava de um dos filmes mais vistos, na Casa Branca, pelo presidente George Bush e seus acessores. Tratando-se de um estudantes de psicologia social e política isso muito me interessou. Um filme que se vê muitas vezes é na verdade mais do que um filme, ele tem que trazer, em si, algo pelo qual nos identificamos muito e/ou algo que é sempre passível de novas configurações. Então o que o presidente da maior nação do mundo em termos de potencial militar e influência econômica vê, muito me interessa.
De qualquer forma o nome desse filme já se encontrava no meu arquivo secretos de filme que eu devo ver antes de morrer. Como Casablanca, que já vi. Em determinada altura da vida de uma pessoa, homem ou mulher, juro que reservarei interesse apenas àqueles que já tiverem visto Casablanca. “Prendam os mesmos suspeitos de sempre”.

“Matar ou Morrer” é a história de um xerife de uma cidadezinha do oeste americano, que se casa com uma linda senhorita e que partirá para uma nova vida, como comerciante ao lado de sua bela mulher. Ele assim abandonaria seu posto de xerife da cidade. Minutos após seu casamento, quando ainda celebrava com amigos, o xerife descobre que um sujeito que ele havia prendido, havia 4 anos, fora libertado e estaria de volta à cidade no trem que chegaria em questão de poucas horas. O tal sujeito, quando preso, havia falado que voltaria e mataria o xerife. Frente a tudo isso, e pressionado por todos, ele resolve fugir o mais rápido possível. No meio do caminho, no entanto, ele percebe que não pode fazer isso, não pode fugir do bandido, e retorna à cidade. O filme tem uma peculiaridade muito interessante, que é procurar ser fiel ao tempo real de transcorrer dos acontecimentos. É como se tudo ocorresse naqueles minutos. Dessa forma faltam menos de duas horas para que o bandido chegue, e é nesse tempo que vemos o filme. O xerife então busca ajuda da população da cidade para formar um grupo e, dessa forma, impedir que o bandido (que se encontra com mais 3 comparsas) o mate. E é aí que o filme é fantástico, pois um por um todos os amigos do xerife o abandonam a sua própria sorte. Cada um a sua maneira. Do sujeito que finge não estar em casa e pede para a mulher que ela diga isso ao xerife, ao sujeito que está com ele a toda até que no fim descobre que seriam só os dois a enfrentar os 4 bandidos. “Eu tenho mulher e filhos”, é o que ele diz, antecipando a visão de sua própria morte. A questão é que todos o abandonam para enfrentar sozinho os malfeitores.
O fantástico do filme é que mais uma vez toca na questão que mais me interessa nos últimos anos que é a relação vida pública/ vida pessoal. O xerife diz em determinado momento que ele tem que ficar mas que não sabe porque. Todos pedem que ele fuja, que viva com sua mulher e seja feliz. Há uma questão pragmática nessa fuga que seria a do bandido procurá-lo, e aí sua vida seria um fugir eterno. Ele havia prendido esse sujeito e o bandido não desistiria facilmente. Mas a questão que permeia não é de ordem pragmática. Sentimos que o herói defende o próprio espírito da cidade encarnado em sua figura e na figura da lei. É o que ao longo da película vai se esvaindo nele. A cidade. O tal espírito da cidade é uma ilusão. Todos juram que o xerife havia sido o melhor daquela cidade, mas a maioria não se movimentaria nada além de tirar do bolso o dinheiro dos impostos, ou no máximo fazer um pedido por mais policiais, em duas vias. E ele percebe isso. Percebe que não havia nenhum espírito naquela cidade, eram apenas homens que pela necessidade se aproximavam e que pela necessidade precisavam de proteção. Ele ali era mais uma “part of the machine”. Mais uma arruela, importante, mas nada além disso. E o que também é interessante nesse filme é que apesar de bandido, assassino convicto, este possuía amigos na cidade. Pessoas que não lucravam com a paz da cidade. Pessoas como o dono do hotel e o dono do bar. O bandido comumente é protegido apenas por pessoas más por natureza como ele. A cidade, ou algumas pessoas, veladamente o protegiam. Isso é de uma ambiguidade fantástica. Então para quê tudo isso? Para quê proteger as pessoas? O herói, de alguma forma, acreditava naquelas pessoas e naquele modo de viver e se sentia protegido por aquela áurea de comunidade que o cercava. E é aí que o filme destrói, porque mostra que isso não existia. Uma outra cena digna da eternidade é a cena da igreja. O xerife busca na cidade, homens que poderiam ajudá-lo a capturar o vilão e não ter que fazer estardalhaço. Chegando a igreja ele é muito mal-recebido pelo padre. Mas aí ele aproveita a reunião de todas aquelas pessoas na igreja, as crianças são colocadas para fora (as mulheres ficam) e se delibera sobre o que fazer. Coloca-se como a cidade agora era boa de se viver e criar os filhos, e isso por causa da ação do xerife; que se paga impostos para se ter mais policiais e que portanto os homens não tem que sair por aí atirando; que é um absurdo eles todos ficarem falando quando na verdade a questão era com a cidade; e que na verdade era aquilo um problema pessoal do xerife com um homem que ele prendeu, e portanto os cidadãos não tinham nada com aquilo. E ainda que a questão era como um tiroteio daquele mancharia o bom nome da cidade, a opinião de um político (no sentido ordinário da palavra) o que atrapalharia futuros investimentos na cidade. Por fim o padre é convocado para uma opinião e como alguém muito acostumado a lidar com as dores da alma, ele diz “Não sei”, e expõe a contradição de alguém que diz todo dia “não matarás”, mas que tem pessoas organizadas e preparadas para matar. Eu arrepiei. Esse sempre foi pra mim o verdadeiro potencial da religião, a questão da formação de vinculo social, de um espaço legitimamente público.
O espírito da cidade aos poucos se esvai completamente. O xerife então tem que enfrentar o bandido sozinho, e vai ao encontro dele. Preserva-se a estrutura herói/bandido que me dá nojo, mas de alguma forma expõe-se as contradições, as hipocrisias e os moralismos. E se não fosse pela questão de ter que se matar ou morrer, porque na verdade temos que tomar decisões como a do xerife várias vezes ao dia, acharia um filme perfeito. Os filme americanos, apesar de quase sempre duros, estáticos, partem de premissas interessantes, mas tal qual as novelas brasileiras têm que matar seus bandidos e glorificar os heróis. Não há diálogo possível, os bandidos tem na maldade a raiz e a solução dos problemas. Ouvindo de Bush que há o eixo do mal entendemos agora porque o filme é visto na Casa Branca. Só muda uma coisa. O dono do hotel dessa cidade é que é de fato o xerife.

3 comments:

Anonymous said...

gostei...muito bom!
mas...que dia vc assistiu a esse filme? vc nao comentou nada comigo....vc realmente é cheio de mistérios que mesmo a convivencia diária nao expõe.

Rafa Pros said...

Gacta, veja comentário acima. Textos atrasados em mais de 4 meses. Escrito ha muito tempo, que bom que vc tenha gostado, esse filme é tão bom quanto o "11 homens e uma sentença" ..bejos hollywoddianos..

Prós said...

O esquema do dono do hotel não entendi.

O filme parece bão.

Assistí-lo em imagens, deve ser melhor do que em letras.

Não vi Casablanca e tenho preguiça, quando vc não mais conversar comigo, acharei estranho, mas vou entender. :-P

A dicotomia herói-vilão é estúpida.

O egoísmo de cada um aflora ainda mais forte quando suas vidas estão em jogo.

Rapadura é doce, mas não é mole.