Tuesday, August 14, 2007

BAR IV


Constituindo realidades...

“A polícia é assim, antes de mais nada, uma ordem dos corpos que define as divisões entre os modos do dizer , que faz que tais corpos sejam designados por seu nome para tal lugar e tal tarefa; é uma ordem do visível e do dizível que faz com que essa atividade seja visível e outra não o seja, que essa palavra seja entendida como discurso e outra como ruído. (...)

Proponho agora reservar o nome de política a uma atividade bem determinada e antagônica à primeira: a que rompe a configuração sensível na qual se definem as parcelas e as partes ou sua ausencia a partir de um pressuposto que por definição não tem cabimento ali: a de uma parcela dos sem-parcela. Essa ruptura se manifesta por uma série de atos que reconfiguram o espaço, onde as partes, as parcelas e as ausências de parcelas se definiam. A atividade política é a que desloca um corpo do lugar que lhe era designado ou muda a destinação de um lugar; ela faz ver o que não cabia ser visto, faz ouvir um discurso o que só era ouvido como barulho. Pode ser a atividade dos plebeus de Ballanche que fazem uso de uma palavra que ‘não tem’. Pode ser a desses operários do século XIX que colocam em razões coletivas relações de trabalho que só dependem de uma infinidade de relações individuais privadas. Ou ainda a desses manifestantes de ruas ou barricadas que literalizam como ‘espaço público’ as vias de comunicação urbanas. Espetacular ou não, a atividade política é sempre um modo de manifestação que desfaz as divisões sensíveis da ordem policial ao atualizar uma pressuposição que lhe é heterogênea por prinicipio, a de uma parcela dos sem-parcela que manifesta ela mesma, em ultima instancia a pura contingencia da ordem, a igualdade de qualquer ser falante com qualquer outro ser falante. Existe política quando existe um lugar e formas para o encontro entre dois processos heterogêneos. O primeiro é o processo policial no sentido que o tentamos definir. O segundo é o processo da igualdade. Entendamos provisioriamente sob esse termo o conjunto aberto das práticas guiadas pela suposição da igualdade de qualquer ser falante com qualquer outro ser falante e pela preocupação de averiguar essa igualdade.

A formulação dessa oposição exige algumas precisões e acarreta alguns corolários. Antes de tudo, não faremos da ordem policial assim definida a noite onde tudo se equivale. A prática dos citas de furar os olhos de seus escravos e das estratégias modernas da informação e da comunicação que, ao contrário, abrem infinitamente os olhos, prendem-se ambas a polícia. Não tiraremos de forma alguma a conclusão niilista de que uma e outra se equivalem. Nossa situação é em tudo melhor que a dos escravos dos citas. Há a polícia menos boa e a melhor – não sendo a melhor, aliá,s a que segue a ordem supostamente natural das sociedade ou a ciência dos legisladores, mas a que os arrombamentos da lógica igualitária vieram na maioria das vezes afastar de sua lógica ‘natural’. A polícia pode proporcionar todos os tipos de bens, e uma polícia pode ser infinitamente preferível a uma outra. Isso não muda sua natureza, que é a única coisa aqui em questão. O regime da opinião sondada e da exibição permanente do real é hoje a forma comum da polícia nas sociedades ocidentais. A polícia pode ser doce e amável. Continua sendo, mesmo assim, o contrário da política, e convém circunscrever o que cabe a cada uma delas. É assim que muitas questões tradicionalmente repertoriadas como questões sobre as relações da moral e da política, só tratam, a rigor, das relações da moral e da polícia. Saber, por exemplo, se todos os meios são bons para assegurar a tranqüilidade da população e a segurança do Estado é uma questão que não depende do pensamento político – o que não significa que não possa fornecer o lugar de uma intervenção transversal da política. É assim também que a maior parte das medidas que nossos clubes e laboratórios de ‘reflexão política’ imaginam para mudar ou renovar a política aproximando o cidadão do Estado, ou o Estado do cidadão oferece, na verdade, a política sua mais simples alternativa: a da simples polícia. Pois é uma figuração da comunidade própria à polícia aquela que identifica cidadania como propriedade dos indivíduos passível de se definir numa relação de maior ou menor proximidade entre o seu lugar e o do poder público. Quanto à política, ela não conhece relação entre os cidadãos e o Estado. Ela conhece apenas dispositivos e manifestações singulares pelos quais às vezes há uma cidadania que nunca pertence aos indivíduos como tais.

Não se deve esquecer também que, se a política emprega uma lógica totalmente heterogênea à da polícia, está sempre amarrada a ela. A razão disso é simples. A política não tem objetos ou questões que lhe sejam próprios. Seu único principio, a igualdade, não lhe é próprio e não tem nada de político em si mesmo. Tudo o que ela faz é dar-lhe uma atualidade sob a forma de caso, inscrever, sob a forma de litígio, a averiguação da igualdade no seio da ordem policial. O que constitui o caráter político de uma ação não é o seu objeto ou o lugar onde é exercida mas unicamente sua forma, a que inscreve a averiguação da igualdade na instituição de um litígio, de uma comunidade que existe apenas pela divisão. A política encontra em toda a parte a polícia. Ainda se deve pensar esse encontro como encontro dos heterogêneos. Deve-se para isso renunciar ao beneficio de alguns conceitos que asseguram por antecipação a passagem entre os dois campos. O conceito de poder é o primeiro desses conceitos. Foi ele que permitiu, outrora, que uma certa boa vontade militante assegurasse que ‘tudo é político’, já que por toda a parte há relações de poder. A partir disso podem separar-se a visão sombria de um poder presente em toda a parte e a todo instante, a visão heróica da política como resistência ou a visão lúdica dos espaços de afirmação criados por aqueles e aquelas que viram as costas à política e a seus jogos de poder. O conceito de poder permite concluir de um ‘tudo é policial’ um ‘tudo é politico’. Ora, a consequencia não é boa. Se tudo é político, nada o é. Se então é importante mostrar, como Michel Foucault o fez magistralmente, que a ordem policial se estende para muito além de suas instituições e técnicas especializadas, é igualmente importante dizer que nenhuma coisa é em si política, pelo único fato de exercerem-se relações de poder. Para que uma coisa seja política, é preciso que suscite o encontro entre a lógica policial e a lógica igualitária, a qual nunca está pré-constituída.”

(Jaques Rancière “O Desentendimento” p. 43-4)

1 comment:

Anonymous said...

Keep up the good work.