Monday, December 17, 2007

O FASCISMO NOSSO DE CADA DIA - INTRODUÇÃO

Rafael Prosdocimi

Vários fatos deste ano me motivaram a colocar essa discussão na roda. E penso que não poderia chamar de forma diferente. Estes últimos anos tornaram visíveis velhas e novas amostras de pensamentos preconceituosos, discriminatórios, autoritários e, pior, genocidas. Isso que caracterizo como fascismo nosso de cada dia. Um processo irregular que vai e volta, e que altera sua forma de ação e que tem instituições, como o Estado, ocupando posições ambíguas, funcionando muitas vezes como mão forte e guia do processo, mas em outros momentos surge como instância capaz de barrar tais ocorrências, e restaurar valores como igualdade e liberdade. Mas devemos entender sempre que são pessoas que pensam e agem, as instituições tem um enorme poder de modelar ações, mas que estas só ocorrem pelas mãos e mentes das pessoas. Pontuar o poder da instituição não deve nunca desviar nosso olhar dos seres humanos, da cultura, da vida social.

Alguns desses fatos atuais foram: O brutal assassinato do menino João Hélio no Rio de Janeiro e mais ainda as discussões que se seguiram sobre o destino dos assassinos (“DIREITOS HUMANOS É PRA HUMANOS E NÃO PRA BANDIDO”); o filme “Tropa de Elite” e sua repercussão e desdobramento na sociedade; a execução dos dois traficantes no morro da Coréia no Rio, assim como uma série de ações policiais em favelas no Rio em outubro de 2007, e as alegações feitas pelas autoridade públicas, principalmente o Ministro da Defesa e o Governador do Estado do Rio de Janeiro (“A POLÍCIA TEM QUE AGIR “COM FORÇA” SÓ ASSIM AS COISAS PODEM MELHORAR”); o espancamento da empregada doméstica Sirlei no Rio de Janeiro e as várias notícias similares que se seguiram (“PUTA, TRAVESTI E VAGABUNDO TEM MAIS É QUE SOFRER MESMO”); A ação preconceituosa e racista de dois magistrados brasileiros, o do caso Richarlyson, jogador do São Paulo, no qual o juiz explora com ímpeto todas as teses homofóbicas presentes no imaginário popular, e a sentença de um juiz sobre uma agressão sofrida por uma mulher no interior de Minas Gerais, na qual o judiciário brasileiro nos remete à bíblia para defender a inferioridade da mulher e a supremacia masculina (“O PAPEL DO JUDICIÁRIO NESSE CALDO”); e ainda o fortalecimento do discurso particularista, arbitrário e hegemônico de algumas publicações brasileiras de grande circulação e de poder de construção de uma “opinião pública” única (A MÍDIA E A PRODUÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA).

Tenho absoluta certeza que os casos mencionados acima são uma amostra pequena de formas de justificação e sustentação de ações autoritárias contra determinados sujeitos sociais. Minha idéia um pouco baseada em alguns quadrinhos que tenho visto, principalmente do André Dahmer e do Allan Sieber, mas muito na própria idéia de espaço público, é que temos que colocar essa dimensão autoritária e fascista nas suas cores mais fortes, nos seus traços mais nítidos, tanto nas rodas intimas das mesa de boteco, assim como nas instituições, passando por todas as esferas do mundo público. Carregando as frases naturalizadas e despretensiosas, as piadas machistas e coisas do gênero, das suas origens e conseqüências sociais. Acredito que o Brasil ainda vai piorar muito. Porque, se o que vemos, mesmo que distraídos, é triste e desalentador, podemos imaginar o que não vemos ou escutamos por aí.


O assassinato do João Hélio, que chocou todos e todas, nos carregou do estranho sentimento de que o seu sofrimento, a imagem do seu sofrimento, deveria ser uma espécie de baliza para pensar o mínimo tratamento dos que o mataram. Nisso até um importante pensador brasileiro (Renato Janine Ribeiro) se inflamou e ficou a imaginar os maiores suplícios para os assassinos. Como se este fosse o problema. E é interessante como carregado pela dor imaginada da criança arrastada, ele fixa nos assassinos (que ninguém ouviu) todas as qualidades necessárias de se atribuir ao um bandido que se pode matar de forma legítima: crueldade e a impossibilidade de recuperação. Mas no fim ele coloca uma frase bem interessante “Parece, pior que isso, que temos algumas mini-auschwitzes espalhadas pelo território nacional”. Parece que ele não percebe como contribui para alimentar uma mini-auschwitz dessas. No entanto, essa discussão específica dos assassino do menino João Hélio logo transmuta-se para a banalização de qualquer forma de sofrimento dos “bandidos” no Brasil (e tenho pouca dúvida de que o caso da menina de quinze anos no Pará, que fez todos mundo falar,é só um desdobramento particular desse enunciado geral - TODOS OS “BANDIDOS” DEVEM SOFRER OS MAIORES DOS SUPLÍCIOS). Tal concepção é irmã-gemea do discurso, reacionário e autoritário, que diz que os direitos humanos são para bandidos e bobagens afins, e que os trabalhadores honestos e os cidadãos decentes desse país estariam sendo relegados em nome dos bandidos que desfrutam de regalias defendidas por intelectuais e esquerdistas inconseqüentes. Ora, o argumento relativamente simples, é que os direitos humanos são um mínimo acordado para a sobrevivência daquilo que chamamos seres humanos. Ou seja, é um mínimo que não admite barganha. Não há troca possível, não se trata de uma condição tipo, ser [humano = humano desde que não assassino, assaltante, estuprador, vagabundo]. Nada disso a conta é simples, todos são seres humanos e essa igualdade fundamental estabelecida pelos direitos humanos demarca até onde essas relações podem ir. É exatamente isso que possibilita(ria) chamarmos o que vivemos de estado de direito. E não autoritarismo.

No caso dos dois “traficantes” correndo ladeira abaixo, tentando escapar das balas dos policiais de um helicóptero, a cena choca pela impossibilidade de se ver outra coisa, como, por exemplo, o absurdo de uma prisão (Não é àtoa que correm desesperados, eles SABEM que não serão presos – Pausa: Tem outra cena dessas no melhor filme, ao meu ver, sobre a violência no Rio de Janeiro que é “Notícias de uma Gerra Particular” de João Moreira Salles). A cena parece cinematográfica, mas não é, sempre é bom lembrarmos disso. Não os vemos sendo alvejados, sabemos que eles “aparecem mortos” lá embaixo. As discussões sobre essa execução tomaram a semana. No Fantástico, como é bem do feitio da GLOBO, ao invés de se apropriar de fatos que tomam a cabeça e as bocas de milhões de brasileiros para incitar boas discussões, vimos o fechamento da discussão quando o fato pedia abertura. Segundo o Fantástico a execução dos dois traficantes é justificável visto que eles portavam pistolas (armas muito perigosas contra helicóptero e fuzis, vide Duro de Matar 3). Um tratamento digital faz a gente crer que aquela mancha escura na mão de cada um dos homens era uma arma (e devia ser mesmo). Estando eles armados com um revólver, justifica-se o assassinato frente à opinião pública inteligente. Segue-se daí a noticia da morte de um policial na mesma ação. Morte que obviamente ninguém acha justa, mas que da forma como é colocada e editada, parece que aqueles que defendem a não-execução sumária de seres humanos estão também atirando no policial, na viúva e no seu filho, que agora não tem mais pai. Essa é a grande sacada dos argumentos reacionários, transformar uma coisa em outra, criando uma relação que não existe, mas que depois parece óbvia (Leiam a Retórica Intransigente de Albert O. Hirschman). Acho bom esse exemplo. Acho que nossa democracia deve ser testada nesses exemplos, sórdidos, tristes e revoltantes. Devemos fugir desses argumentos que antes de propor qualquer coisa a ser discutida, qualquer coisa que venha dizer algo sobre o estado das coisas na sociedade, na nossa vida in comum, procuram os culpados e lavam as mãos. E achar culpados é fácil porque estes serão “os suspeitos de sempre”.

5 comments:

Kiki said...

muito forte.gostei...

Rafa Pros said...

Gábi, que bom que vc gostou...
(Você é tão critica, hehe)

Locadora do Werneck said...

Permita-me aqui um cross-post, pois falei sobre esse assunto em meu blog citando uma música nova de uma banda de Goiânia que fala muito bem sobre esse assunto, de uma maneira bem sarcástica:

http://whiskeyandwimmin.blogspot.com/2007/10/grupo-de-extermnio-de-aberraes-ao-vivo.html

B. Brandão said...

Quando criticavam a suposta inconsistência entre os hábitos estóicos de Sêneca e a sua atitude perante o poder e o dinheiro, ele respondia: "Mas se eu não louvo a vida que levo, louvo a que deveria levar, e da qual imito, a distância, claudicando, o modelo". Talvez os direitos humanos sejam desejos humanos. Mas, se são desejos humanos, talvez por isso mesmo sejam naturais e não artificiais. Otimismo, Prós!

Rafa Pros said...

Perna, vi lá a musica. Achei doida, mas é tão sarcástica que pode ficar parecendo um certo hino fascista..

Bruno, concordo contigo que os direitos humanos são desejos, mas desejos que precisam encontrar concretude para fazer sentido. Nisso fica claro que não são desejos universais e portanto não-naturais, e sim artificiais.
Acho que sou otimista pq acredito que as coisas tem jeito (como tenho certeza que vc tb acredita) mas acho que é fundamental trazer para cá essas coisas todas e deixá-las berrar...