Minhas senhoras, a todas vocês que se despedem do planeta, por agora, todas que estão a falecer junto dos seus tecidos e órgãos, e em especial a vocês que já vem morrendo lentamente ao longo de todos esses anos. Desejo a todas vocês uma boa-morte nesses próximos dias ou, no mais tardar, semanas. É o que desejo também àquelas que pegarão apenas o próximo trem, numa estação seguinte (talvez no outono). Peço que aguardem a partida sem angustia. Ainda há netos para abraçar, e filhos para olhar ternamente, e então pensar, calada, o que se fez de errado para aquela, e como aquele outro deu tão certo na vida. Logo será a vez de vocês e podem ter certeza que todas irão. É por isso que desejo uma boa morte, já que esta é certa. Que na hora do seu ultimo suspiro haja uma mão para apertar. Tenha certeza que, para os que ficam, a morte certa e determinada não dói menos do que àquela imprevisível, pois mesmo a certeza de morrer sempre traz em si a esperança de mais um dia, mais um dia, mais um dia numa sucessão infinita.
Que essa mão que te aperta seja de alguém que você, secretamente, goste mais. Temos poucas mãos, e muitos filhos, netos, amigos, e de todos, sempre sabemos, no intimo, de quem gostaríamos de ver, sentir, tentar em vão um ultimo sinal, uma ultima comunicação, no derradeiro momento.
Que nos seus olhos haja apenas resignação, calma, e sincera alegria de ter vivido. Mesmo que tudo isso seja falso. Os velhos são sempre bons, sempre parecem bons, e devem permanecer bons velhos na hora da morte. Os crimes, violências, estupros cometidos, somem nesses olhos baixos e fracos. “O fim é um imenso sossego e um grande perdão”. Ao menos deveria ser. Afaste da cabeça, minha boa senhora, seus erros. Mas se der, ao menos, fale aquilo que você gostaria de ter falado pra filha do meio em maio de 83, mas que não conseguiu. Isso que te veio à cabeça, todas as vezes que você a viu, desde aquele dia. Lembre-se que não a verá mais. Permita-se todo o desvario na vontade. Sua palavra terá uma importância enorme e, portanto, não a gaste falando mal dos outros, mesmo que seja sincero. Ao menos que essa sua palavra negativa traga, aos que ficam, movimento, vontade, revolta que seja. Mas prefiro que você seja uma velhinha formal e idônea para as coisas erradas que acha, pensa e vê. Não maldiga por Orgulho. Leve-O consigo. Ele aqui, apenas perturbará o dizer do seu nome, nos fins de tarde e nas festas da família (que nunca mais serão as mesmas), quando a sua lembrança rasgará o peito. Esse seu orgulho só ira perturbar na lembrança dos seus gestos e machucará eternamente aqueles que tanto gostas. Impeça isso. Deixe o orgulho junto com as flores no seu caixão.
Que no momento mesmo da sua morte haja serenidade, olhar e mão. E que na sua cabeça paire, como um beija-flor, a melhor lembrança da vida. Um filho sorrindo, uma noite de amor, sua mãe te abraçando - essa já morta há tanto tempo, a casa, o sítio, os lugares de colher sorriso na infância. Que seja lembrança ao mesmo tempo boa e calma. Nada muito repentino, ou violento, denso. Que apenas traga torpor a mente, e que nesse tempo final você possa afirmar: “que boa a minha vida e o que eu não faria para vivê-la toda de novo”. Que essa frase tenha a força de apagar um por um os erros da sua vida. Que você não se lembre do amor de verdade que nunca fora vivido, do aborto vergonhoso, do filho nascido e, todos os dias, indesejado, de um sonho nunca tentado ou de uma vontade sempre reprimida. Que nesse fim você sorria, e se lembre desse ultimo bisneto, ou bisneta que tenha sorrido claro naquele dia de domingo. E que esse sorriso tenha a força retroativa de trazer a tona todas essas crianças que você acompanhou da fralda à lama, do bico à glória, em todos esses anos. E por fim desejo que você se orgulhe muito da sua família, mesmo que muito do você, que poderia ter sido, tenha ficado por aí, nas latas de lixo, junto com toda essa fralda suja...