Friday, June 01, 2007

FALA DELORES,

Rafael Prosdocimi

Delores não perdoa mesmo...Aí deve ter uns 20 quilos de bosta, pensava Clóvis. Com uma grande pá, o encarregado dos animais, no circo “Los Irmanos”, catava os dejetos fecais da elefanta Delores. Clóvis não era exatamente inteligente, de fato era um dos sujeitos mais burros que o trapezista Rodolfo, que também não era dos mais espertos, conhecia. Sua maior qualidade era o carinho dispensado aos animais. Um mágico que passara no circo nos idos de 90, hoje aposentado, dizia que Clóvis tinha essa amabilidade com os animais por estar mais perto deles do que dos humanos. Talvez fosse exagero.

Ele, Clóvis, nascera no circo. Era filho de acrobatas mortos de maneira trágica. Ironia à parte, os trapezistas morreram quando o picadeiro caiu sobre suas cabeças. Restou Clóvis que, apesar de toda a tragédia familiar, nunca desistiu do circo. Persistia incansavelmente tentando encontrar seu dom perdido entre malabares e galhofas, sem sucesso. Por fim pensara levar jeito com os pratos. Achara que era um exímio lavador de pratos, mas de fato não era. Logo descobriu seu dom, no grande apreço que tinha pelos animais, e foi assim que ficou responsável pelo cuidado dos bichos do circo. Mas ele se sentia tão bem com os animais, que não satisfeito em dar-lhes de comer, desembestava a conversar muitas e muitas horas com os mesmos. Foi aí que, um dia, um dos donos do circo, seu Valente, pediu a Clóvis que parasse com aquilo, pois ele parecia biruta, foi o que disse na época. Depois disso Clóvis nunca mais dirigiu uma única palavra aos animais.

Pois no fatídico dia, enquanto retirava os tais 20 quilos de bosta da jaula de Delores, Clóvis ouviu a seguinte frase:

-Depois que terminar isso, troque a água por favor, ela está suja...

-Mas quem disse isso! Mais no pulo que na palavra- resmungou Clóvis.

-Ora, quem mais está aqui alem de nós dois. Sou eu mesma...A Delores quem fala...

-Mas, num pode não... bicho não fala não.

-Isso é o que você acha né...É verdade que quase fico muda, de tanto que não pratico. Se você tivesse me ensinado antes eu já falaria há muito tempo. Mas não, você não fez nada...Ficava o dia inteiro aí calado, é mesmo um ignorante.

-Não vou tolerar esse tipo de agressão, ainda mais levando em conta que meu tio é ventríloquo, quer dizer, era. Se ele ensinava boneco a falar imagina que maravilha não faria com uma elefanta. Então não venha com crueza, porque eu bem sei que tentei te ensinar a falar, mas fui proibido de continuar. Também me faltava a brilhanteza de titio, é bem verdade. Mas que eu tentei, eu tentei. Deixa as ignoranças pra lá Delores, e...

-Tentou, mas tentou pouco né, seu preguiçoso. Você me deixou aqui nessa solidão a mascar essas folhas secas, a tomar essa água suja...

-Olha, me desculpa aí, mas também não precisa esculachar...

-Não, agora é tarde. Nunca mais falarei com você ou com mais ninguém. Essa foi a primeira e última vez. Você me desapontou muito. Adeus.

O palhaço Perereca, que fazia hora extra, saiu por detrás da jaula a rir longamente. Clóvis chorava. Ainda gritou por Delores, implorou por sua palavra, tentou se explicar, mas o silêncio dela enchia seu coração de angustia. Em casa, Clóvis tentou se matar. Não conseguiu. E no amanhã restaria uma segunda feira.

2 comments:

Kiki said...

de onde veio isso?

Rafa Pros said...

isso foi um concurso da revista piauí que eu mandei que tinha que encaixar uma frase inóspita em algum lugar..hehe