Sunday, June 03, 2007

TIRAR A VIDA PARA A POESIA

Rafael Prosdocimi

É ela... é ela...

Somente a poesia enche nosso peito, nossos pulmões de sentido, de nomes de amor. De ar, o alimento de devaneios que se pedem e me perdem. Que nos faz inspirar, e sentir na inspiração uma íntima troca com o mundo. Tirei a noite de ontem para a poesia. Foi fácil olhar pros lados como se não soubesse que eram lados aqueles. O show que acontecia a frente tinha às suas costas uma lua tímida, envergonhada, escondida atrás de uma benevolente montanha. Uma montanha que parecia dizer assim: “Vai, vai amiga lua...dança...baila.” Como uma mãe que incentiva o filho a ir pra vida, mesmo que para ser errado. Vai ser, diz a mãe. Havia uma ligação entre todos ali, e não sairia de mão nenhuma, um soco que fosse. Estávamos cobertos de gestos gentis, era a música que ouvia.

Diria que era arte. Diria que a arte faz a vida... vida. Mas arte é tanta coisa junta. Tem tanto dinheiro, tanta falsidade e mentira, e tanto querer aparecer que não gosto dessa palavra. E há muito rebuscamento, muito mármore, muita higiene. A poesia não. A poesia é sempre um delírio de amor. E o delírio é sempre sujo. O poeta não é aquele que faz poesia, mas aquele que delira e depois faz delirar. E ali, naqueles acordes buscados com tanto zelo, havia um sujeito, um trabalhador, o segurança, este que pela força da profissão, fica de costas para o palco a observar se o público comporta-se bem. Esse segurança, sentindo a poesia, sacou sua máquina fotográfica que fala, e tirou uma foto da lua despontando atrás da montanha. Um rapaz gordo e barbudo cantava algo estranho, fora da música, do tom, enquanto um amigo seu, feio, bailava com uma moça que segurava um vinho barato, levantando-a, girando-a, com tanto amor.

Eu ficava sentindo. A música era tão linda, e havia tanto espaço ali pra gente ser a gente, que tinha gente que não queria saber de música, pois além havia a grama, o vinho, o chá e a pipoca, e mulheres e homens com frio. Era uma música consciente tanto da sua beleza quanto da sua humildade. Eu achei lindo essa mistura. Há muito tempo não sentia a beleza se apossar de mim. Se apossar e me despojar de preocupações mesquinhas. A cerveja, passa, nesses instantes, por purificação e se santifica. A vista, se fortalece e acha aquilo que se quer ver.

Que a poesia nos visite todos os dias. Que entre um numero, e outro, que entre um ônibus e uma porta existam olhos. Que entre um suspiro e outro salte um momento. Que entre um nascer do sol e o pôr, haja um lá, a música e o lugar. Que no inverno, as coisas sejam simples e um corpo se encontre com outro corpo. Que façamos das nossas aspirações mais banais, nossas orações mais densas. Que deixemos as palavras correrem com largas margens. Haverá erros, de concordância, de gênero, de madeira, de matéria, mas que não aconteçam os erros de vontade, de passo. Que o passo seja dado.

2 comments:

Kiki said...

GAtinho....de onde veio isso?
que lindo...

Rafa Pros said...

que bom que vc gostou...foi o tanto de coisa que eu senti no show..não queria deixar passar e ir embora..quis reter um pouco pra mim. pra lembrar. e pra vc tb.