Friday, June 27, 2008

Queria escrever sobre o samba...

Mas não vou, fica pra depois. O samba já me acompanha há tanto tempo, e tenho uma certeza tão “certeira” e bonita de que continuaremos juntos, para sempre, que ele (melhor seria se fosse ela) pode esperar. Para não dizer que não falei dos meus sonhos devaneios a caminho da aula, digo apenas que me bateu uma saudade boa dos ventos de Belorizonte-Cartola, Reciclo, e principalmente, Opção... saudade do Chico e da sexta-feira, e desse samba mais angustiado que se faz nas minhas gerais.


No entanto, o acontecimento dos três jovens do morro da Providência entregues por 11 militares a traficantes de outro morro para serem torturados e mortos, fecharam o tom de nostalgia musical. Fiquei realmente tocado com o fato. Felizmente (ainda) não fui o único. Se é preciso, ou pelo menos se quero, ter algum alento num caso como esse, que seja a minha surpresa com o barulho que se tem feito e a relevância que se tem dado a tudo isso (por mais que ainda ache tímido frente ao que ocorreu).


Acompanhei o caso pela televisão a partir da noite do enterro dos meninos que, por acaso, ocorreu há um quarteirão de minha casa, no cemitério São João Batista. Vi a força daquelas pessoas que seguiram do enterro para a rua, a revolta muito concreta encarnada nos rostos parados na frente do palácio de Duque de Caxias, comando do exército responsável pelas atividades no morro da Providência. A primeira coisa que pensei é que devíamos todos ir para a rua e botar pra quebrar. Como a Julia diz, tem coisas e tem hora que não dá pra sentar e conversar, aceitar, a “paz” que não se pode querer. Quebremos tudo agora e depois conversamos. Mas não fui, claro que não. Fiquei pensando. Pra isso me paga a Capes, na verdade o Cnpq.


Quem acompanhou a narrativa de minha intrépida viagem ao lado de um certo engenheiro militar, talvez tenha sacado que ali estava descrita determinada posição autoritária, na figura do oficial que tem poder, o que fica bastante explicito quando ele disse que achava um completo absurdo um oficial ser preso. Ora, como assim? A partir desse evento passei a observar e pensar mais no problema do exército. Problema real, institucional, subjetivo e histórico. Mas confesso que me surpreendi com o que é mais absurdo nisso tudo*, o exército, na figura de um tenente e de seus subordinados (nada menos do que 11 indivíduos) ter entrado numa boca de fumo (pelo que li com os braços para cima), dialogado e entregado, ao fim, os três jovens para um grupo de traficantes. Ora, isso indica uma relação estreita entre um oficial (isso para os militares faz toda a diferença, ainda que de baixa patente) e um grupo de traficantes, a ponto desse militar ter a tranqüilidade de entrar com outros 10 numa favela a cata de certo traficante (não poderia de forma alguma ser qualquer um). Confesso que fora ingenuidade minha se assustar com isso. Por mais que o exército nunca tenha me inspirado a mínima confiança ou simpatia, acreditava que ele se mantinha mais ou menos fora das relações cotidianas, ainda mais as contraventivas. Afinal o exército é aquela coisa meio pra proteger fronteira, meio pra defender em caso de guerra contra outros países, e meio para auxiliar na infra-estrutura de um golpe de estado. Ou seja tudo meio fora do cotidiano das metrópoles. Nos esquecemos, no entanto, que o exército é feito de sujeitos que vivem também nas cidades, além de ser onde está toda a sua estrutura e comando. O que coloca a questão do grau de envolvimento do exército como instituição, com o tráfico de drogas, também como instituição. Ok, é claro que agora vai ficar bem provadinho que este foi um caso isolado, específico a esse tenentinho, que tinha outros problemas na sua ficha e blábláblá. Os culpados de sempre. Acho difícil acreditar que seja um caso isolado. Mas não vou entrar muito nisso tudo, porque acredito que muita gente boa já falou disso, e eu também já disse mais do que queria, a princípio...


Mas uma coisa que não vi muita repercussão, e que merece toda atenção do mundo, já que é algo da ordem do que podemos fazer, consiste em pensarmos quais tipos de discursos se apropriam dessa tragédia, e de que forma tais discursos constroem certas ficções sobre a realidade social. Não tenho problema nenhum com ficções sobre a realidade social, meu problema é com o “certas”. Por isso o artigo de opinião escrito pelo excelentíssimo senador da república, Marcelo Crivella, para o jornal O Globo do dia 21 de junho, mostra-se bem adequado à tal proposta. Muito porque o supracitado senador é autor do projeto “Cimento Social” que foi a superfície por onde toda a tragédia se desenrolou. Além disso o senador também é pré-candidato à prefeitura do Rio de Janeiro. No desenrolar dos acontecimentos e das investigações, ficou bem claro o caráter eleitoreiro das obras, o que gerou inclusive a sua interrupção. Para quem não sabe, o projeto Cimento Social visa recuperar um conjunto de casas no morro da providência através de uma articulação entre o ministério das cidades e o exército, que teria a função de garantir a segurança e realização das obras. Ainda nas investigações surgiram documentos mostrando a participação de acessores do senador na articulação para a realização das obras.


O artigo se chama: “Morro da Providência. Eu creio”. A primeira frase já diz muito: “Mais uma vez a crise social que amarguramos nos impõe a perplexidade, a vergonha e a dor.” Ou seja, o que ocorreu é resultado de uma certa “crise social” e nada tem a ver com questões concretas e muito específicas. Como se tratasse de uma guerra de gangues ou algo do gênero. Ora, ainda no quesito “causas possíveis” continua o excelentíssimo: “É que a fatalidade de um quotidiano de violência, marginalização, injustiça e pobreza estraçalha as consciências”. É impressionante como não aparecem nomes, situações, mas sim, fatalidade, crise social, jovens, irmãos. Eu queria não citar tanto o texto, mas é difícil, porque mais do que um termo aqui ou ali, ele tem um ritmo, meio poético, épico, que precisa ser exposto na sua totalidade, no seu conjunto. Tal estilo do senador, ao meu ver, recai tanto num desdém com os sentimentos e a inteligência alheia, como em puro cinismo, de quem não teve nada a ver com isso .


“No ambiente de conflito e de revolta que produz, lança, em fúria insana e indomável, irmãos contra irmãos, jovens contra jovens, pobres contra pobres, derramando sangue, destruindo a esperança e tornando a vida de nós todos na mais inútil, deplorável e miserável tragédia.”


“Meu Deus, pergunto, até quando? Até quando nossos sonhos, que sonhamos na inconformidade, na revolta contra a realidade que nos assola e massacra, até quando se tornarão em tristeza, frustração e pesadelo? Até quando o ódio e o crime irão lançar nossos jovens, uns ensangüentados, na sepultura, outros com armas na mão, no inferno das celas, para serem barbarizados e vegetarem anos a fio numa obscura e triste existência?”


Fica evidente que nada é possível ser feito, não há nenhuma manifestação humana num espaço cercado de fatalidade e questionamento divino. Uma escrita pomposa, que traz a tona a distância e um apego as fórmulas baratas e fáceis de (tentar) emocionar. Mas no meio desse drama farsesco e verborrágico, há algo bastante pragmático:


“Desde que assumi o mandato, duas coisas me preocuparam mais e estão ligadas diretamente a essa violência sem precedentes e crescente, que atormenta nossas vidas: o tráfico de drogas e a deplorável condição de moradia nas comunidades carentes. Com esse objetivo aprovei alterações em duas leis já em vigor. (...) Mas não parei por aí. Há quatro anos, apresentei o Projeto Cimento Social mostrando como exemplo uma casa na Rocinha e outra no Morro da Providência que reformei com recursos próprios.


Em determinado momento diz o artigo que “devemos evitar novos e maiores equívocos ou estaremos abdicando de toda esperança de amparo a outros tantos jovens”, fico me perguntando do que ele fala. Quais seriam os maiores equívocos? Talvez ele tente dizer do que de fato já ocorreu, ontem: a interrupção das obras do projeto Cimento Social. Para terminar a carta o senador-bispo (ou seria bispo-senador?) coloca no papel aquilo que ele crê.


“Creio que juntos podemos rasgar nos horizontes infinitos da esperança a perspectiva iluminada do nosso destino, que não é de cidade da dengue ou dos jovens assassinados, mas de Cidade Maravilhosa, de encantos mil e a mais linda do Brasil. Por isso sonho, luto e sofro e não desisto, porque é nisso que creio.”


A primeira vez que ouvi essas palavras pela boca de minha namorada, fiquei estarrecido. Nada é dito. Poderia ser um caso qualquer em qualquer periferia do mundo. Um texto rebuscado, vazio de sentido. Ao mesmo tempo a propaganda eleitoral... ah como eu poderia e desejaria ficar escrevendo só sobre essa frase “Mas não parei por aí”...

O que me deixa mais triste no entanto, é que muita gente deve ter achado bonita a declaração do senador, profunda e verdadeira. O sujeito crê em homens de bem, fatalidade e destino, pede a deus, e etc... A nossa situação é muito mais difícil do que nós pensamos, e sinceramente não sei o que podemos fazer, mas por enquanto sigo jogando toda a merda nos ventiladores que encontro e ligando-os na potência máxima.



* Em tempos de violência constante contra os moradores de periferias, essa violência em si muitas vezes já não chama atenção, o que é triste. Muito.

1 comment:

Locadora do Werneck said...

A corrupção pelo poder não tem hora nem lugar para acontecer. Qualquer membro do exército, soldado ou general, pode ser amigo do tráfico de drogas, assim como pode ser amigo da TFP ou qualquer outra instituição.

Quanto à violência contra os moradores de periferia, ela sempre aconteceu e sempre acontecerá. A "imprensa" apenas a utiliza mais ou menos em sua programação, dependendo de seu interesse. O livro que deu origem ao "Tiros em Columbine" fala muito sobre isso, é bem interessante.