Thursday, July 19, 2007

BAR III

País Dificil

Rubem Braga

Há hoje no Brasil uma espécie de preciosismo técnico-burocrático que vai complicando os problemas com uma terminologia tão pedante que desespera. Isso se manifesta em vários ramos; pululam técnicos em alergias crepusculares, em padronização do tamanho de clipes e em sociologia das ruas transversais. Parece que estamos em país sofisticadíssimo, superfino, e há sujeitos que não dormem porque não têm certeza de que conseguirão penicilina se por acaso precisarem de penicilina. Chegamos à perfeição de ver entre os pontos de exame no Itamarati para carreira diplomática à discussão da autoria das Cartas Chilenas , devendo o estudante saber quem era a favor desta e daquela tese e quais os argumentos de um lado e de outro. Descobriu-se, subitamente, a necessidade inadiável dos rapazes aprenderem latim ou grego. Surgiram de uma hora para outra estudiosos de questões especialíssimas, mil críticos de Proust e técnicos em estados corporativos.

É por causa de tudo isso que um homem simples às vezes leva um choque quando repara em alguma coisa simples. Eu, por exemplo, tive outro dia entre as mãos o resultado de inquéritos de laboratórios feitos em vários lugares da Amazônia e do Rio Doce sobre vermes intestinais. Praticamente 100 por cento dessas populações sofrem de vermes. A grande maioria é opilada e quase nunca há um verme só na barriga de cada sujeito; em geral o sujeito acumula várias espécies. Ora, isso não é novidade nenhuma. Todo mundo sabe que nossas populações rurais são cheias de vermes, que o homem do campo é quase sempre opilado e tem no ventre uma série de bichinhos que sugam o seu sangue e escangalham sua saúde. Ninguém ignora isso – mas acontece que isso não está na moda. O que está na moda é ter alergia de pena de Peru. Um outro relatório que vi, contava a história de um médico que foi chamado a certo lugar do interior para combater uma “doença misteriosa” que estava matando o pessoal. Devia ser, com certeza, uma dessas doenças que a gente adquire lendo Seleções e tem um nome tão interessante que dá vontade pôr no cartão de visita. O médico, um desses médicos do interior, meio rude, que vive isolado da nossa grande civilização carioca, chegou à seguinte e estúpida conclusão: a doença mistérios era fome. Outra coisa fora de moda, outro problema sem atualidade. O importante hoje é fazer uma intensa campanha no sentido de convencer a todas as pessoas cultas de que o complexo vitamínico JM, que se encontra em grandes proporções no cabinho das azeitonas pretas, só tem valor contra a tendência a soluçar de madrugada quando combinado com a aplicação de raios infralilases sob as unhas da mão esquerda.

Graças a tudo isso o nível cultural do país vai subindo assustadoramente. Está visto que essas transformações têm suas vantagens. Por exemplo: antigamente um funcionário postal morria decentemente de tuberculose, deixando toda a família na miséria. Hoje apesar de todas as dificuldades criadas pela guerra, ele ainda pode conseguir o mesmo, desde que cumpra todas as formalidades exigidas pelos dasps e ipases.

Sei uma anedota que é um pouco velha, mas pode ser que algum leitor não conheça. É a história do sujeito que tinha um papo enorme e enjoou de consultar médicos e mais médicos. Não havia meio do papo sair. Afinal um conhecido desse que sabia de um remédio formidável: graxa de sapatos.

“-Esquente um pouquinho a lata de graxa e passe bem devagar pelo papo, com um paninho. Depois descanse uns cinco minutos e passe outra vez pegue então um pedaço de flanela e esfregue com todo o cuidado; quanto mais esfregar, melhor.

-Mais isso cura mesmo o papo?

-Bem, se cura não sei, mas dá um brilho formidável!”

Oh, graxas, vaselinas, iapeterques, ipasitiquins.


MARÇO DE 1944

2 comments:

Anonymous said...

Incrível...Ele podia ter escrito e publicado isso no jornal de hoje! Não sei se é o Rubem Braga que é atemporal ou se é o Brasil que um dia parou no tempo. Talvez ambos!

Rafa Pros said...

eu concordo com vc nas duas proposições, mas é interessante q em determinado momento do texto ele usa uma sigla de algo q não existe ha muito tempo, o que demonstra o tempo desse texto. Mas ele é foda demais sim.