Sunday, November 20, 2005

O que fazer com esse pequeno burguês que mora dentro da gente?

É o que eu me pergunto todos os dias.
Ando na rua com um medo enorme de que alguém, um pobre, me veja dentro do “meu” carro e venha discutir, porque eu tenho esse carro, porque diabos ele é meu, e não dele. Tenho medo de não ter argumentos e nem razão. Ando e vejo nesses olhos que eles não se perguntam isso, o que me dá alivio e uma silenciosa angustia posterior: Isso porque: eu me pergunto dessas coisas. Na rua, parado no sinal, a ouvir um samba, tranqüilamente, eles vêm pedem aqueles metaizinhos, não lhes dou nada e eles passam e pedem ao próximo carro. Não me assaltam, não me esquartejam em plena Afonso Pena às 11:30. Lembro do Oscar Wilde e da desobediência como virtude original do homem. Eu não tenho essa certeza de que o carro é meu, e também a carteira, o dinheiro e os olhares delas, os sorrisos. Nunca tive essa certeza. Quando criança tinha um medo enorme de sair na rua comendo alguma coisa, e de que me fosse pedido isso que comia, não seria um simples medo de ser assaltado, mas o medo de perder no sorvete, no salgado, todas as minhas frágeis convicções, que nos outros eram tão fortes. Sempre desconfiei dessa história de ter tudo aquilo que a necessidade (vaidade) me permitiram ter, porque mamãe trabalhava muito, porque se isso é verdade (e até hoje penso que em certo sentido sim) o seu oposto também deveria ser verdade, ou seja, quem nada tinha, não trabalhava e era essa a razão. Um jovem marxista desconfiado das leis da vida, da moral, do que deve ser feito. Sempre achei (e ainda acho) que assaltar era só uma maneira de descontar as privações e desprezos colhidos todos os dias, na rua, no lixo. É claro que não significa que concorde e aprove abertamente os assaltos, só não tenho argumentos morais, lógicos e sociais pra defender a tese contrária. O roubo é a retirada de algo de outra pessoa, algo que não pertence a quem rouba. Agora questiono se pertence a quem é roubado. Nunca acreditei nisso de que bandidos são bandidos e homens de bem são homens de bem. Como se no inicio fosse tudo igual (sendo que obviamente nunca teve inicio), mas se o tivesse as condições já seriam tão diferentes que nem o mais míope dos juízes poderia legitimar tal jogo. Na corrida de 100 metros rasos, um larga no metro 0, lhe é cortado a perna, e amarrado ao seu corpo 30 quilos de chumbo. Eu largo lá no metro 40, estou bem alimentado e tenho o corpo em forma. Alguns saem lá no metro 98 e se encontram numa Ferrari.
E isso de homens de bem e de bandidos esconde todas essas questões de antes da corrida, como se no momento inicial estivéssemos todos no mesmo lugar, e alguns preferissem a favela, outros preferissem a machadinha, a arma, a pobreza, o crime, o crack, quando com tal facilidade pudessem escolher a bela casa na montanha, a gerência, o scotch 21 anos nas festividades de fim de ano. Essa é das histórias mais mal-contadas de todas. E pena que tantos acreditam nela. E sacam logo um caso escabroso pra temperar a vida, algo que envolvendo moças inocentes, casas vazias, bandidos inescrupulosos, e estupros seguidos de muito sangue. É interessante isso de exemplos. Como disse Max Weber, os jornalistas e advogados são desses que um único mau exemplo levam a ruína todos os outros. Assim como os pobres. O pai rico (da dupla pai rico/pai pobre) quando estupra a filha é um caso único, diferente, o caso particular de uma pessoa desequilibrada; agora, quando o pai pobre faz o mesmo com sua filhinha... “Olha lá, essa gentinha não tem jeito mesmo, só matando...” Um exemplo particulariza e outro generaliza. E viva a mediocridade nossa de todo dia.
O pobre é desprovido de qualquer subjetividade possível e o rico de qualquer sociabilidade, sendo que nessa divertida brincadeira, tratamos os pobres como problemas sociais e os ricos (tão filhas da puta quanto, ou ainda mais, pela separação do “reino da necessidade”) enquanto seres desviantes. “É favelado, mas honesto”. Como se a honestidade fosse a exceção. E esse pequeno burguês que mora dentro da gente vai enchendo o peito quando percebe que o mundo é esse aí, e que o negócio é agora, que dá pra levar 25%, e é só ficar esperto olhar pros lados e tomar conta do que é seu. Esse serzinho medíocre e egoísta. Ele mora, invade e expulsa qualquer coisa outra que exista por aqui, e não se assuste, o pequeno burguês já está em todo lugar. É difícil, pra minha pessoa, fazer qualquer coisa que presta na vida quando uma menina bonita na rua vale um dia, ou quando há Rubem Braga na prateleira e pornografia livre na Internet. E o pequeno burguês invade a vida e se estabelece. Qualquer relação com uma outra pessoa ameaça seu domínio e ele vai esvaindo a vida em todas essas horas.
Espero de fato que eles continuem pobres e que nunca me perguntem porque eu tenho um carro e eles não. Talvez devêssemos rezar apenas por isso... “Meu bom Deus que eles nunca descubram nada dessa sujeira toda, senão vem pegar suas coisas que esqueceram aqui em casa”. A maior sacada do capitalismo, e obviamente uma sacada psicológico, foi jogar tudo para o individuo, a consciência e coisas que indicam que somos todos unos e diferentes. Como tal problema é meu e não é nosso, e não é de um sistema e não é de uma estrutura, não há muito o que fazer. “Pobre é tudo assim mesmo”. A conta, por favor...

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