Wednesday, May 04, 2005

A mãe da velha que não se chamava Francisca

Rafael Prosdocimi

Olhou a filha ao lado da cama e se lembrou de quando a menina nasceu. O pai disse que se chamaria Francisca, “para lembrar de titia querida”; mas a mulher sabia quem era a Francisca mencionada. Afamigerada concubina, oficial, até mesmo dentro do esquema organizacional de despesa da casa, mas que até mesmo naquele dia, a lembranca dessa mulher, anos depois da morte de seu amado marido, só se prestava a machucar o coração, pequeno, dessa nobre senhora.
O coração pequeno agora estava velho e cansado, indisposto a suas ações tão rotineiras e monótonas, e se confundia todo entre contrair e expandir; confusão que fazia aquela filha, a não-Francisca, estremecer toda quando a mãe sentia uma dor no peito. “Pouco esforço” disse o médico, esse é o único remédio. “Mas pouco esforço pra viver ou pra morrer” se indagava a senhora.
Dona Geralda nem sempre fora dona, mas o “Geralda” o acompanhou por todos os momentos, e ela, nessa cama de hospital, se lembrava com doçura como cada pessoa de sua vida a chamava diferente. Pra ela parecia que cada pessoa tem uma necessidade muito forte de colocar sua marca em tudo, inclusive naquilo que é o mais comum e ordinário de tudo na vida, o nome das pessoas. O pai só a chamava de Geraldinha, e ela só gostava desse chamado na voz dele, ninguém mais se atrevesse a chamá-la assim. Pra mãe era dindinha assim como para os irmãos. Pensando nisso lembrou do pai morto há tanto tempo. Pensou que hoje se vive demais, há muitas coisas que atrapalham e prolongam as coisas. Tubos e maquinas que impedem a uma pessoa simples de uma morte banal e humilde, ficando todo mundo agora a esperar não o silencio da voz, do coração, mas sim que esse “tu, tu, tu”, dessa maquinaria horrorosa pare de soar. Pensou que queria muito morrer em casa, talvez falasse com a filha pela manhã. Esse pensamento veio como as vezes a gente vê uma formiga vindo. O pensamento veio e nem um mísero sentimento provocou.
Dona Geralda olhou a filha que dormia e viu no rosto dela que ela nunca teria sido uma Francisca. Não havia nada de Francisca. A filha a acompanhava nesse quarto de hospital, esse quarto tão ruim como todos os quartos de hospital. Sabia que a filha sofria, mas nossa senhora sabia que a vida acabava, e sabia disso com uma honestidade que faltava a muita gente. Percebeu nesse momento que usava fralda e que esta se encontrava suja. Não havia percebido. Um arrepio percorreu seu corpo, seguido pelo segundo mais brutal nojo de si-mesma que já havia sentido na vida, só perdendo para sua primeira noite de amor. Acordou a filha de sobressalto, não ousava ficar suja nessa idade. A morte já tinha sido combinada e com relação a isso essa honesta mulher não ousava discutir, mas agora isso de ficar de fralda e ainda mais suja...ah... isso era um abuso.
A filha acordou assustada já que se encontrava sempre pronta pra chorar e ligar pra muita gente a qualquer instante. Mas a mãe, menos emotiva e metafisica, só pensava em se limpar. A filha, que também colecionava décadas, assustou com o pedido da mãe de tomar banho àquela hora. Era madrugada e só as duas estavam naquele quarto. Ela nunca conseguiria carregar a mãe, não que se precisasse de tanto, a mãe andava, mas a verdade é que seria perigoso e, além disso, nossa filósofa octogenária acreditou nessa desculpa e, mesmo suja, se resignou. O resto da madrugada foi de tormento, praquela já torturada pessoa. Uma mulher sempre tão asseada agora sujeita a todas essas sujeiras em contato com a sua murcha pele. A higiene, coisa tão preciosa para essa senhora, fora desrespeitada e isso a incomodava como o maior dos suplícios. Ela armaria um escândalo à madrugada daquele lugar tão calmo a essa hora. Armava brigar com tudo e todos pelo seu direito inalienável a água e sabão, algo que até os presos possuíam, pensava. Pra essa senhora a sujeira era uma das faces do demônio. E por assim dizer, a face mais feia .
Olhou o relógio na parede, eram 4 horas. Frente às reclamações maternas, a filha disse que quando a enfermeira chegasse o banho seria providenciado. Isso aconteceria às 7 horas da manhã. Essa informação indicava 180 minutos de sofrimento. Seu pobre, antigo e pequeno coração entendia esse sofrimento, e frente ao problema real, fecal e imediato se sentia no dever – se nada podia fazer contra a falta do banho- de não atrapalhar o coreto, e se mantinha impassível, simples, coadjuvante e necessário como um pandeiro compassado na roda de samba.
Antes da enfermeira chegar, a empregada do sitio chegou ao hospital. A filha já idosa, e agora, além dos outros cansaços, sentia também o de não dormir, necessitava de um pouco de sono. A mãe tentou permanecer calma. O banho estava próximo. Sabia que não podia ir suja ao encontro. Só pensava em um banho, sua única meta. E foi às 7 que a enfermeira entrou no quarto e a levou pro banho. As 7 e meia voltou pra cama, limpa, cheirosa e seca e aí veio a imagem do marido, que apesar de cachorro e alcoólatra, a cheirava, quando ela saia do banho, de um jeito que a fazia subir ao reino do senhor, pelo elevador de serviço, por assim dizer, mas sempre com muita culpa, é bem verdade. Lembrou desse homem tão triste e fundamental em sua vida.
Nessa hora, agora limpa e sem sentir nenhum incômodo, a mulher deitou na cama e morreu.

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