Monday, October 10, 2005

Série: Se ninguém leu Rubem Braga, Antonio Maria ou Sergio Porto porque haveriam, afinal, de ler Rafael Prosdocimi...

A LIRA CONTRA O MURO-----RUBEM BRAGA


Meu poeta, pois então vamos falar sobre mulheres. Garanto que é um belo assunto. De um certo modo reconheço que isso é um pouco humilhante, quando se é moço. Basta pensar isto: enquanto estou escrevendo, lá fora, na rua, passam mulheres. Minha obrigação era descer as escadas e ir vê-las. É um verdadeiro crime um homem ficar dentro de uma sala escrevendo, sob a luz artificial, quando lá fora a tarde ainda está clara e há mulheres andando. É aflitivo pensar que a vida está correndo e nós estamos aqui conversando. Confesso que as vezes acho qualquer coisa de humilhante na literatura...Mas o certo é que vivemos um mundo assim. É espantoso como este mundo em que vivemos não presta. Dizem que não adianta bater com a cabeça contra o muro. Bato freqüentemente. É possível que qualquer dia a minha cabeça arrebente. Mas lá fora, do outro lado, deve chegar um som qualquer de minha cabeça.
Lá fora...Certamente nem eu nem você saberíamos viver lá fora. Seria como se nos tirassem da cabeça o peso da atmosfera ou como se, de repente acabasse a força da gravidade. Morreríamos afogados no ar. Conheci, há pouco tempo, um homem que passou vinte e cinco anos na cadeia. Mas não quero falar daquele homem. Sinto que se o muro caísse, eu seria como aquele homem. Cuspiria no chão a horas certas, para ter a gloriosa certeza de que não é proibido cuspir no chão. Bem, mas é preciso não esquecer de que lá fora não existe. Isso é um segredo tão terrível que você pode contar a todo mundo. Ninguém acreditará. Todos os homens farão um sinal com a cabeça. “Sim, já sabíamos há muito tempo”.Mas no fundo do coração ninguém acreditará.
Na verdade, estamos todos presos, e precisamos ter uma aguda consciência disso. Você, poeta não tem consciência de classe. Tem coragem de dizer que ama tudo o que é lindo e humano, a beleza em gera, as mulheres, os sentimentos delicados, a poesia essas coisas- e detesta política. Você sabe, poeta que há mulheres que são como flores empoeiradas? Se você encontrasse uma pequena flor coberta de poeira, jogaria gotas de água sobre aquela flor. As pétalas poderiam, então, sentir a caricia fresca do vento- suponhamos-, da brisa terral. Seriam assim umas onze horas da noite. A brisa terral vindo lá de dentro, do meio do grande país, indo para o mar lá longe, o mar aberto, o grande mar. E a brisa terral beijaria aquela flor, e aquela flor seria mais linda. Você ficaria comovido e se sentiria bom. Pois, meu poeta, ali estão as mulheres empoeiradas. Há mãos de lírios limpando panelas engorduradas. Mãos que poderiam ser de lírios e estão grossas e vermelhas. Há moças em massa, há moças em massa ficando feias, metodicamente feias, ficando feias. Há mulheres em massa, belas mulheres murchando, murchando, murchando depressa. Há mocinhas, surpreendentes mocinhas que ficarão doentes antes de florescer. Há crianças que jamais serão mocinhas. Morrem muitas crianças, e na maioria não morrem de propósito para virar anjinho; morrem devido a moléstias intestinais.
Mas estamos falando de mulheres. É extraordinário notar que elas não são simplesmente mulheres, e não existem apenas quando passam por nós ou são beijadas, ou suspiram. É extraordinário saber que elas vivem. E grande número são subalimentadas, e precisam de educação e higiene duas coisas caríssimas. Naquela noite aquela pequena não foi se encontrar com você porque a meia esquerda desfiou e o outro par estava molhado. Aquela outra não sorriu para você porque só pode pagar a um péssimo dentista. Aquela outra está com a pele ruim porque alguma coisa dentro dela não está funcionando direito, e ela não pode procurar um especialista. Não pense que a filha daquele funcionário dos correios ficou tuberculosa para imitar a Greta Garbo da Dama das Camélias. Acontece que um litro de leite custa mil e duzentos. Não sei de quem é a culpa, mas seguramente não é das vacas, nem de Margueritte Gauthier. Muitas mulheres amariam os seus versos se elas soubessem ler, ou se não soubessem apenas ler.
Não, poeta, eu não levarei o meu mau-gosto a ponto de falar das operárias- dessas estranhas mulheres que não tem o direito se ser bonitas nem saudáveis- ou das mulheres da roça que vivem para trabalhar e parir. Não quero magoar você, poeta. Apenas quero que você pense nesse formidável capital de beleza e, portanto, de lirismo, que este mundo aí está massacra sistematicamente.
As flores empoeiradas...Há flores cobertas de poeira, flores que murcham sufocadas pela poeira. Que as mulheres trabalhem. Mas que elas vivam, possam respirar bem, florescer em beleza, crescer debaixo do sol, amar sem doenças e dar à luz filhos fortes e livres. Que a vida, poeta, a grande vida cheia de sentimentos e de mistérios dos humanos, possa ser vivida um pouco por todos. Você vai me chamar de materialista e reclama o “primado do espiritual”: mas eu quero que nos lugares onde faz frio haja um chuveiro quente em cada casa para que as mulheres que não podem tomar banho firo possam tomar banho todo dia, com facilidade. Elas não perderão a poesia: perderão apenas a poeira. Perante este povo imenso de tantas mulheres sujas eu pergunto: por que não há mais chuveiros quentes? Ou simplesmente: chuveiros? Temos enormes quedas d’água para despejar eletricidade sobre o país; eletricidade e água, água muita água...Mas, poeta, não quero convidar você a lutar contra o imperialismo e contra toda a exploração. No fundo este nosso povo pobre é tão espiritual. Sofrer é belo, enobrece as almas. Mas as flores estão cobertas de poeira. Elas estão murchando. Já nascem murchas. Você acha que uma vida mais limpa e mais livre poderia matar a poesia? Não, poeta, você sabe que o lirismo não é o lixo da vida, e que a poesia não morre, que a poesia é eterna e infinita no peito humano. Meu poeta, você está convidado a bater a com a cabeça no muro. Pode bater com a lira também. Se ela quebrar, não faz mal. Soltará um belo som, e esse som será uma profunda poesia.
São Paulo, 1937

3 comments:

Prós said...

Engraçado esses comentários malucos que aparecem no seu blog, no meu num dá isso não. Uma coisa eu gostaria de anotar sobre a série análoga: "Se ninguém leu Rubem Braga, Antonio Maria ou Sergio Porto porque haveriam, afinal, de ler FRANCISCO Prosdocimi..."
Assim, o que eu gostaria de anotar é: quem disse que escrevo para as outras pessoas?

Rafa Pros said...

pO CHICÃO se vc escreve pra vc porque publica online pra todo o universo, digo mundo?

Rodrigo said...

Muito bom. Viva o materialismo dos que vão direto ao ponto. Acho que o Chicão está se referindo àquele estado mental onde fingimos que estamos escrevendo apenas para nós mesmos, na esperança de assim escrever melhor. Ah, no meu blog também é cheio dessas propagandas, mas eu não aprovo, aí elas só incomodam a mim...