Sunday, January 29, 2006

VOCE SE LEMBRA...

Ela é imprescindível de um jeito assim, que lhe dava medo encontrá-la nas quinas tão reais daquela casa. Sentia-se como um crente que tem que se haver com o próprio Jesus Cristo, numa quarta-feira, as três da tarde, na rua São Paulo número 2914, esquina de Bias Fortes. Ainda mais naquela casa, na frente de todas aquelas pessoas estranhas. Ele, ali, teria de reagir de uma forma aceitável e neutra. Ela não era uma mulher para encontros materiais. O sonho, o devaneio, a abstração sempre foram lugares mais propícios para encontrá-la, e ter aí, o tudo da vida.
A verdade é que ele não sabia que se encontrariam mais uma vez, nessa mesma encarnação. Sendo assim, a presença dela lhe causava transtorno. À distância pequena, ele sofria em pensar que a aproximação, o esbarrão, qualquer coisa, estava ao alcance dos pés dela. E que talvez, mesmo que ele corresse, fugisse pela rua deserta poderia ela ainda observá-lo. Mas o medo real, indefinível, indizível começava mesmo no verbo. E se ela dissesse “boa-noite”... “Você tem fogo”...“Onde é o banheiro”, qualquer dessas coisas tolas, seu coração palpitaria forte, o que a faria perguntar: “que barulho é esse?”. O rapaz diria que era ela, ressonando toda no ritmo de seu corpo. Ela já fazia parte do seu desequilíbrio corporal. A disritmia de suas funções vitais dependia do fator “ela”, tal qual depende da taxa de outras coisas como da noradrenalina, do álcool ou da cocaína. O pesadelo final seria se ela começasse algo assim como “você se lembra...”; Ele, então, preparava um ataque epilético devidamente treinado e ensaiado. Sairia bonito e real, com muita secreção, o barulho angustiante dos dentes se chocando, espasmos pluridirecionais e órbitas vazias. Talvez chamariam uma ambulância. Ela se afastaria, pois não é médica, e o socorro chegaria.

A presença dela cercava de incertezas suas angustias, e elas todas, com medo, ameaçavam sumir. Desistiam de dominar o rapaz. No entanto, a falta da cerveja (e porque não - da coragem) ajudava a angústia a se manifestar como força, na fraqueza desse sujeito tão hábil em ser um piqueno minino. E o leme, pesado, deixava esse minino a contemplar mais que pacífico o Atlântico. Ela então se aproximava dele com seu jeito doce para com as crianças, inclusive para com essa, e demonstrava um interesse que não era nada além de gratuita gentileza.
Ela nunca começaria uma frase “você se lembra...” havia sido ele, pra ela, a máscara...Apenas o nome, do “cara da noite”, que é sempre o mesmo. Ela morreu muito velha, enquanto ele dormia e sonhava com aquilo que ela perguntaria, “você se lembra...”, se ela se lembrasse disso tudo que ele nunca esqueceu.

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