Friday, January 06, 2006

ANEXO 1

Fim-de-semana em Cabo Frio
Paulo Mendes Campos

Estava tudo mais que perfeito. Cabo Frio é tão fácil. Paisagens se desdobravam como cartas de baralho. Meu corpo funcionava com regularidade. Sístoles, diástoles, inspiração, equilíbrio de energias, a escrita do sono em dia. Física e moralmente a saúde me visitava.
Nova e limpa era a cabana, o chuveiro não estava enguiçado, o cobertor aquecia, o restaurante se salgava nas contas e repetia indefinidamente o Lp de Nat King Cole (que sujeito mais chato!), tinha peixada e vinho.
Em frente, amendoeiras, uma piscina à beira-mar, um barco decorando a praia do clube, um campo de golfinho, ah, tinha até um campo de golfinho.
No outro clube, o do Canal, o Werneck era uma flor de anfitrião, o pessoal de serviço aprendeu logo os nossos nomes, poupando-nos o aborrecimento de mexer em dinheiro, o uísque, autentico, as batatinhas feitas na hora, e ninguém se ria demais ou se mostrava.
No meio do canal uma rede armada para os peixes, graças em lento movimento, um casarão antigo do outro lado, a capoeira com verdes e amarelos dum desbotado bacanérrimo.
As mulheres tomavam sol, reconciliadas com os maridos, num silencio intumescido de gratidão; ah, se os maridos as levaram para o fim-de-semana em Cabo Frio, eram mesmos uns sujeitos excelentes, perdoados de todos os egoísmos e ausências do passado.
Jogamos o futebol, voleibol, ganhamos tudo na mais delicada cordialidade, o Alim improvisou um picadinho na casa dele, todos corados e cansados o suficiente para se esperar da vida uma novidade.
As crianças, ah, as crianças! Estavam esfuziantes, tão emolduradas no momento que nem de dava para pungir o espinho de se organizar tão raramente um programa daqueles.
Céu limpo, aragem, dinheirinho no bolso, luz, tanta luz.
Num paredão avançado para dentro da água, ostras em penca ao alcance das mãos.
O gim é um veneno delicioso de manhã, sobretudo a bordo do Pitangola, sobretudo quando a gente suspende os remos e assiste à seguinte seqüência: long-shot duma menina-e-moça, estirada na relva, louríssima sem escândalo, branca sem acidez, com um maio vermelho de duas peças; perto, um menino atira pedras numa placa de madeira que indica o caminho para o hotel; o peixinho louro diz ao menino para acabar com aquilo, era a filha do dono do hotel; o moleque responde com duas pedras na mão; a garota se levanta, agarra o menino e lhe dá uns tapas merecidos; o garoto se safa, apanha calhaus maiores e volta a destruir a placa; a garota da um pique de cem metros pela estrada, segura o menino, baixa-lhe o sarrafo, aplica-lhe uma chave-de-braço e o conduz a polícia; depois retorna e se estende de novo sobre a relva; o Pitangola aproxima-se; close da cara da menina, angelicalíssima.
Tudo perfeito, tudo mais que perfeito.
Uma sauna rápida, seguida dum mergulho no canal, liga o inferno ao paraíso, e só através do contraste aprendemos a dor e o gozo.
A dor e o gozo.
Era horrível o fim-de-semana em Cabo Frio. Duma imparcialidade desumana. Dentro do meu bem-estar físico e psíquico, estava arrasado. Que tinha eu com tudo aquilo? Que tem o ser humano com o bem-estar?
Ou me entendem agora ou nunca: quero dizer o seguinte: o sol, o azul o à toa, essas coisas estraçalham meus fantasmas, perdia-me deles. Sem minhas atribulações, sou o atribulado, a própria atribulação; sem minhas angustias, sou a angustia; sem minhas infelicidades, sou o infeliz. Descobri isso finalmente. A felicidade, madame é horrível. Que horror, era horrível! Espapaçado ao sol, entre amigos, na juventude do fim-de-semana, com a aragem, as ostras, o peixinho de vermelho, o golfinho, a plenitude das crianças, eu não sei, não chego até lá, me descaminho, acabo me doendo até os ossos. Sem sofrer sofro demais. Assim tudo, Senhor, menos ser feliz. Minha libertação não é essa, essa eu não agüento. Tudo menos achar que a vida é boa. Deus me abandonou à felicidade e me dei mal.
Afortunadamente, domingo ao crepúsculo, fiel crepúsculo, no restaurante apenumbrado, antes do regresso, as fúrias e as penas voltaram ao meu coração. Eu as deixei entrar com alívio e elas se assentaram todas em torno de mim. E prosseguiram, graças ao bom Deus, em assembléia permanente.

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