Tuesday, January 03, 2006

Dois amigos conversam...

Chico e Rafa Prós
Era mais um Natal, outro desses que passam ano após ano sem a nossa consulta, mas aquele foi um pouco diferente. Deixamos as crianças, as mulheres – todas elas – e também a suposta alegria típica deste dia fora de nossa sala, nosso mundo e vida. Ficamos só nós dois, ali na varanda. Havia também o Atlântico. Como era importante o Atlântico. Se havia fartura, era só de cerveja e tristeza, acompanhadas de um ou outro tira-gosto. Ambos com 56 anos, nesse desolado ano de 1969, ano que o homem chegou à lua, a mesma que agora ilumina o mar e a praia de uma forma tão sutil. Eu, só um pouco mais velho que ele em rotações astrais, mas tão “envilecido” que na nossa conversa sentia-me como um avô frente a um rapaz inquieto e apaixonado pela vida; vida essa, a dele, que progride esvaindo-se em uísque e mulheres, ainda não sei bem se mais do primeiro ou do segundo. É bem sabido, inclusive, que são exatamente essas – e que fique bem claro que me refiro aqui às mulheres, não ao santo uísque – as coisas que mais acabam com a vida de um homem, mas também apenas aquilo que nos permite abençoar e cobrir com um véu de beleza a nossa Vida, que surgiu mesmo para um dia chegar se acabar. Ao contrário da minha – agora vida, não mulher – que se vai em tédio e jantar requentado do almoço. Ele poeta, boêmio e apaixonado, cada vez mais e sempre por várias mulheres, uma de cada vez, no tempo do “enquanto dure”. Mas ficava apaixonado mesmo, eu diria ser ele o mais honesto dos homens com seu amor. Às vezes olho pro sujeito e penso, “Ou é o maior apaixonado do mundo ou o maior dos enganadores, e engana até a si mesmo”, pois se nem nas minhas próprias paixões, moldadas manualmente com todo romantismo de uma pequena escola de Cachoeiro do Itapemirim, acredito piamente... Principalmente depois que elas passam, fico invariavelmente sem saber se suas intensidades foram mesmo reais e fiéis, verdade mesmo é que elas sempre passam e aí ficam tão pouco.
No Natal combinamos de trocar toda festividade pela varanda, pela cerveja e pela conversa despretensiosa, não necessariamente nesta ordem. As crianças, que já nem eram tão crianças assim, que se virassem! Assim como as mulheres ou pelo menos a dele que durava naquele instante, já que a minha, enquanto um ser pelo qual devemos nos juntar em festividade familiares, jamais se encontrou na lista de convidados de minha vida. Já percebi que meus anseios amorosos são por paixões rasteiras com quarto e sala a alguns quilômetros do meu apartamento. Pensamos em passar este Natal bêbados e melancólicos de verdade, e não como de costume, empanturrados e razoavelmente alcoolizados, tontos daquela forma mediana que ainda preserva a consciência dura de nossa tristeza. Brindamos as cervejas, já que fazia uma noite quente no Rio de Janeiro e aqui nos trópicos prefiro a gelada cevada ao formal scotch.
A conversa não poderia descambar pra outra coisa que não fossem as mulheres. Não essas nossas, mas todas as outras, uma forma idealizada deste ser. Ele, um amador inconfundível e declarado, e eu que me dizem sisudo e bravo, mas sem dúvida ambos apaixonados por elas: lindos, fugidios e mágicos seres. Para ele as mulheres eram como anjos e deviam tudo, toda a energia da vida e de sua beleza, para a devoção ao amor e ao homem. Assim, todas deviam ter essa frágil força de se fazer qualquer coisa por um grande amor, esse tipo de força que aguarda e chora em silêncio pelo seu objeto de desejo. Eu nunca concordaria com ele e então contra-ataquei: “As mulheres, pelo menos aquelas a quem amamos, devem tornar possível a visão de si mesmas como uma faca a espreitar-nos e com uma real possibilidade de cravarem-se quando menos esperemos em nossas costas. Uma mulher que nunca fará uma coisa dessas não me vale um ‘Oi’”, “Você não entende mesmo de mulheres, preste atenção, a mulher é puro amor, é sentimento, é paixão... e se hoje elas se fazem de racionais, objetivas, isso é só o que nós fizemos com elas, nós homens e essa sociedade pseudo-igualitária. Temos mais é que tentarmos reaver essas mulheres belas e fortes, mas fortes na arte de viver só sentimento”, “Mulheres que sejam só sentimento, poeta, entediam horrores. Gosto de encará-las com um medo indizível desse pronome possessivo, de forma a semear nela um receio de que ela de fato não seja minha, de forma que sabia que antes de tudo eu é que sou meu, nunca dela. Não confio a pessoa alguma a coisa que me é mais cara, minha própria vida, e penso que te machucas muito ao fazê-lo. As mulheres que mais apaixonei foram essas que me abandonaram, não como quem rompe comigo, mas como quem se reavê enquanto criatura”, “Que criatura? E para que serviria a mulher se não fosse o amor, única possibilidade real de vida, de liberdade”.
Ficamos um pouco em silêncio, jamais conseguiria convencê-lo disso ou daquilo e nem ele a mim. Tomamos mais uma cerveja e ele então passou para o uísque e para o violão. Naquele dia compusemos uma música que na manhã seguinte decidimos como melhor por embolarmos o papel e jogarmos à iemanjá, não deveria existir nesse mundo nada tão melancólico assim. Mas ainda me lembro da melodia...

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