Friday, January 20, 2006

GESTOS IMPRECISOS

Sabe como é. A mão esquerda vai ao encontro dos cabelos, e aí procura a carne do rosto, as bochechas, essa face já um tanto arrepiada. Enquanto isso, e paralelo a isso, a mão direita aguarda sinais sensoriais, para atacar do outro lado, pousar na cintura, com firmeza e delicadeza, nessa união única desses casos de amor. As duas mãos puxariam aquele lindo corpo ao encontro do seu. No caminho pretendido, no entanto, a mão esquerda pára no ombro, hesita, tem dúvida. Pensa que talvez sejam movimentos muito decididos, podendo ser entendidos como desespero. Essa mão fica no ombro, inerte, não consegue subir. Ela espera... Ele abre a boca, tenta dizer algo, não consegue e fecha a boca. Percebe o ridículo dos últimos gestos. E a mão esquerda, meio morta ali no ombro, compõe um quadro de delicada estupidez. Ela, fielmente, espera.
Finalmente a mão sobe dos ombros, passa pelos cabelos, contorna a cabeça na testa, e subitamente se pousa nas costas transformando-se num abraço fraterno, seguido por um beijo na face e então ele diz que “já vai”. Os dois eram amigos há algum tempo, mas nunca gostaram disso de ser amigos simplesmente. A tensão sexual era, aos dois, necessária, e a cada momentos de pecaminosa comunhão, essa tensão parecia que irromperia em lava como num violento vulcão, que, subitamente, volta a dormir sem ter acordado. Os dois acabavam mantendo a compostura já desnecessária. Ele diz, mais uma vez, que vai embora e a beija nas faces. Caminha para a porta, e embaixo dela, pára. Hesita mais uma vez, fica de costas para a moça. Está parado. Ela olha com esperança e aflição...Ele gagueja e finalmente diz que deveriam, os dois, ver o último filme do Spielberg. Ele ouvira falar que era muito bom. Ela diz que sim, e no seu sim há mais não do que em todos os outros “nãos” de sua vida. Sua vontade é mandar voltar a cena. Chamar o roteirista e dar-lhe uns cascudos. E tudo por culpa da mão, pensa ela, pois se essa trabalhasse direito “frames ago” encontraria o seu rosto, a orelha, faria carícias e daí ele olharia para sua própria mão carinhosa, encostada nela. Ela, por sua vez, que estaria com o rosto abaixado, encolhido em volta dessa mão masculina e protetora, olharia para ela, para seus dedos, e como se estabeleceria uma relação de contigüidade entre mão-face-olhos, no final, ele acabaria olhando para os olhos dela. E nesse olhar não caberia um único talvez. O beijo seria só o início. Mas ela ficou lá, sozinha, com suas falsas amigas, num estado entre, raiva total e ainda esperança.
Ele no carro bate a cabeça no volante e blasfema. Tem vontade de voltar e dizer tudo aquilo que ela se preparava para ouvir. Porém ele sabe que, lá chegando, é bem capaz de pedir uma xícara de açúcar, ou o jornal do mês passado. E pensa que não é bom exagerar no patético.
Dias depois, em casa, ela pega o telefone e decide ligar para ele. Já havia quase dois dias que haviam se visto e se tocado. Dois dias que ele havia passado as mãos nos cabelos dela e em sua testa, como quem queria algo, e, então, ido embora. No penúltimo número do telefone dele, ela pára e desliga o aparelho. Vai pra cozinha, sua melhor idéia: fazer um café. Está na hora do café, e a mãe logo chegaria com os pães. A mãe gosta...Que droga! Esse 8 e esse 6 que faltam para completar a chamada e que não saem de sua cabeça.
Ele em casa se tortura; já soltou o telefone 4 vezes e tem medo de desistir pela quinta vez. Tem medo que o fracasso se torne hábito. Ele afinal em nada pensa, liga e diz que o filme do Spielberg está passando naquele cinema perto da casa dela, aquele que tem estacionamento gratuito, no shopping que tem a loja com o sapo de pelúcia de quase 2 metros, feio e grande o bastante para ninguém comprar. Ele a pega em casa, conversam sobre um acidente nuclear numa usina alemã, discutem e acabam decidindo: contrariando a ONU, o chanceler alemão e o próprio presidente do Estados Unidos da América, contra a utilização da energia nuclear. Ela concorda e vê que ele é um rapaz sensível e coerente. Ele não concorda com nada disso, mas vê que fora uma boa idéia ter sido estúpido. A energia nuclear é uma fonte importante e se alguns acidentes acontecem, tudo bem, faz parte, e lembra desses ditados, tipo: “não se faz omelete sem quebrar os ovos”.
Ele preferiu o cinema a um bar ou outra coisa assim, pois ainda não haviam se beijado e no cinema, é óbvio que iriam se beijar. Ele fingia não ter certeza se ela o queria mesmo; e pensava que no cinema ela não teria muito para onde ir. E de lado ele não precisaria olhar nos olhos e nem dizer nada. Escuro, de lado, bastava beijar. Mas era muito idiota. Mesmo para ele. Pensava que deveria beijá-la antes do filme, antes de entrarem no cinema, sabe...Para mostrar que não precisava do escuro, nem do Spielberg, nem de nada disso para ficar com ela. Haviam chegado cedo. Sentados numa cafeteria, tomavam café. Ele sentou muito perto dela, que, aliás, tomava capuccino. Procurou dizer coisas tolas, de que era fã dela, elogiando seu cabelo, perguntando de sua vida, tentando algo que fosse uma “pega”, um atalho, até o beijo. Algo que ele nem mesmo sabia o que era.
Em determinado momento o rapaz pegou na mão da moça (um amigo seu havia dito, certa vez, que o negócio era pegar na mão da gata e contar até 15). No 13, quator...ela resolveu mexer no cabelo. Batimentos cardíacos acelerados (os dele), ela desceu a mão do cabelo e já não encontrou a mão dele, que se encolhia toda tentando calor nos bolsos. Ele falou que estava na hora, e entraram no cinema. Por causa dos 15 segundos, que viraram 13, e do cafés e capuccinos, haviam atrasado e o cinema estava lotado, e agora só havia lugares separados para ambos. Ele sentou mais à frente e ela mais atrás. Ele não viu o filme, só olhava pra trás, mas como no escuro são todas iguais, ele não a achou. Ela achou que depois de “Minority Report” esse era o segundo pior filme de todos os tempos do diretor. Na saída ela comentava do filme que ele, com desinteresse, intervinha com “sins” e “nãos” aleatórios. Ele iria deixá-la em casa, e ela pediu para irem para outro lugar, quem sabe um barzinho. Ele só pensava que ela havia soltado a sua mão na cafeteria, antes dos quinze segundos e por isso queria ir para casa, dormir ou bater uma “punheta”, quem sabe. Ele disse que trabalhava cedo.
Ao parar o carro, em frente à casa da moça, esta foi se despedir cordialmente dele, beijando com neutralidade seu rosto, mas errou, por alguns centímetros, e sua boca, na parte leste, encontrou a parte oeste da boca dele, numa porção realmente ínfima, mas que estremeceu todo o corpo do rapaz. Num descuido do não, e no piscar de olhos da razão ele a agarrou como qualquer primata de outros carnavais, a segurou com firmeza, e se beijaram calorosamente. Ela, já desiludida da vida e nada esperando, teve todo o descontrole real das suas funções cardiorrespiratórias. Ele se sentiu um macho alfa.
Depois ela sorriu, e começou a falar, ele também falou junto, e aí os dois pararam e riram. Um esperando que o outro dissesse, e quando ela ia falar ele também se precipitou, pararam e riram de novo. E foi cômico e patético. Ele então se calou, a acariciou na face, no pescoço passando a outras partes mais carnudas. Ela então falava enquanto ele esquiava na sua pele. Saíram dali e foram pra qualquer lugar, continuar aquele teatro tão lindo de gestos imprecisos.

2 comments:

Prós said...

À exceção de minha dúvida sobre o fato disso ser um conto ou uma crônica, imagino que os gestos imprecisos do início tenham se tornado mais precisos no final.

A propósito, gostaria de dizer à personagem que "Minority report" foi o último dos filmes do Spielberg que gostei, gostei mesmo, acho que tem várias idéias legais.

Mas legal mesmo é como essa crônica-conto mostra essas confusões que sempre rolam nesse fica-não-fica que é o início de toda relação. Quem dera as coisas fossem mais fáceis...

Rafa Pros said...

A questão talvez não seja importante, ser conto ou cronica. Colocasse em primeira pessoa talvez ficasse a idéia de ser uma cronica. Mas de fato é um conto, no sentido que minha mente atribui a essa cisão, no caso de pequenas histórias (conto/cronica), que é ficção/ realidade.
A idéia já havia havia surgido quando vi o filme "2 filhos de Francisco" ,mas baixou com potencial literário no filme "Minha vida sem mim".
E tem relação com isso que é o não-saber-no-que-vai-dar de todo início. Que é angustiante, e talvez por isso, tem um lirismo forte, pois é um lançamento no abismo do acaso, do sem-chão.
Quanto a personagem ela acha Minority um filme muito bobo, com algumas questões interessantes sobre liberdade e tal e coisa, mas que Hollywood sempre transforma no trio perseguição/carro/tiro, a única forma de agir no mundo. Vide "a Ilha", que tem uma premissa interessante mas é uma merda!!!!