Saturday, March 05, 2005

De Lavoisier a Noel Rosa, quebrando a esquerda em Braga e passando por Freud.

Rafael Prosdocimi

Há algum tempo discutia e comparava as qualidades de escrita de Luis Fernando Veríssimo e de Rubem Braga. Debatia com meu primo e eu defendia que ao caro Veríssimo faltava lastro, faltava dor, faltava melancolia, ingrediente indispensável para um bom cronista. Achava que Veríssimo dominava como poucos a técnica de escrever crônicas, mas que tinha algo de insosso em seus escritos. O Chico achava que falar mal do Veríssimo era sinal de burrice. Na verdade já não sei de nada. Andei lendo coisas lindas de Luis Fernando Veríssimo. O fato é que ele não consegue me colocar em ondas gama como o Braga. Experiências culminantes, nirvana. Coisas assim. Gostei de dizer que em alguns escritores falta lastro, falta peso, densidade. Como nesse que escreve aqui. Falta-me dor, falta algo diferente de tédio.
Noel Rosa morreu. Eu quase chorei. Não sei muito porque quase chorei. Isso ocorreu há 70 anos, mas sempre me fascinou esse sujeito substantivamente feio, que morreu aos 26 anos que pegava muitas senhoritas e que permanecerá eternamente como um nome forte, musical, eterno. Noel Rosa. Mais que um nome, uma entidade. Esses dois nomes juntos soam estranhamente naturais. As quatro letras de cada nome, o improvável sobrenome Rosa, não sei, algo nesse nome sempre me agradou, me mostrou um mistério, um caminho. Já admirava algumas de suas músicas à medida que às conhecia. Mais recentemente, apaixonei-me por Ultimo Desejo e Pra Que Mentir?. Duas músicas que paravam no ar. Pesavam, incomodavam. Hoje ao terminar de ler a biografia do cara, entendi o porquê. Muito chumbo, muito peso envolto nessas canções. Na natureza nada se cria, tudo se transforma. Acho que é isso que diz Lavoisier. O profundo sentimento que algumas músicas me causam, o arrebatamento, a produção de ondas gama em minha mente não podem ser criados do nada. Nada se cria. É impossível criar sentimento. Foi ao ler a biografia de Noel que compreendi o tanto de penar, sofrimento nessa vida.
Essas duas músicas foram compostas pouco antes do poeta morrer. Foram compostas ambas, para a mesma mulher. Um grande amor do compositor. O que eu, na força dessas duas músicas, tomaria a liberdade de dizer seu maior amor. Um amor que se separa dele, um amor que já tem outro. Um sujeito que vai morrer, que perde a mulher amada, ou deixa perder, tanto faz. Um sujeito que tem um pai que se mata recentemente. Quer teve na mãe desse seu pai outra suicida, e também no pai dessa avó. Um sujeito que pergunta a um médico amigo se suicidar seria algo hereditário. Que mais do que o medo de morrer tem o medo de existir sem viver, e que morre aos 26 anos de tuberculose, sem abandonar a boemia. Isso eu chamaria de lastro. O peso da vida. O peso da morte. O peso da lágrima, do gozo. Não tem como medir. E é a música desse sujeito fruto disso tudo. É ela que me deixa meio bobo. “Nosso amor que eu não esqueço/ e que teve seu começo/ numa festa de São João/ morre hoje sem foguete/ sem retrato, sem bilhete/ sem luar e sem violão”.
Bem será o tal lastro o peso da qualidade do poeta? Não sei, diria Vinicius que o poeta só é grande se sofrer. Não há como medir o lastro. Até porque o lastro é subjetivo. É no meu ser que essas duas músicas mexeram. Passaria rapidamente em Freud, com seu conceito de sublimação. A capacidade de dirigir a libido para a produção artística. A capacidade de viver na dor, e a partir dela extrair algo objetivo. Músicos, escritores, artistas. Sofredores natos. Não confiaria em um escritor feliz. É preciso lastro pra entrar em minha mente.
A objetivação de um estado subjetivo de dor. A produção de som e palavra, intrinsecamente ligada ao estado do corpo, ao estado da vida. A beleza na vida não pode ser criada do nada. Acho que é por isso que nunca serei mais do que agradável, técnico, medianamente bonito. No máximo. Falta peso.

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