Saturday, March 19, 2005

Pessoas

Um jovem negro está parado. No peito um colete escrito Ouro Compro, mas não é ele quem compra o ouro. Nunca foram eles que compraram ouro. Esse jovem em pé me lembrou um senhor que vi quarteirões atrás vendendo arame. Os dois são não-humanos. O jovem negro tem a mesma função que uma placa, não se vê um João ou Antonio, mas sim que se compra ouro. O velho que vendia arame também não está presente, está ali uma massa corpórea que impede a passagem de outros seres humanos que estão cheios de coisas para fazer no bizarro centro da cidade grande, cidade grande qualquer, pois invariavelmente os centros das cidades grandes são semelhantes. O velho está ali a atrapalhar pessoas. Vejo isso, pois enquanto aquele senhor oferece seu arame aos que passam, ninguém pousa os olhos naqueles já resignados olhos meio-cerrados e diz algo como: “Não muito obrigado meu senhor, hoje não quero arames...” Todos que passam baixam o rosto e passam, nenhum contato visual. Contato visual que talvez seja a derradeira e final esperança de que um dia seremos uma comunidade, de que um dia seremos “irmãos”, pois é no olhar que encara um outro olhar que me faço presente. Quando não olhamos o jovem negro e o velho que vende arames, não dizemos a eles que eles existem, que eles podem vender arame e comprar ouro. Negamos suas existências. É no olhar que sabemos o quanto somos amados e quanto fomos traídos. Enganam-se os que pensam nas palavras. Palavras são trabalhadas demais. O que se diz no olhar é mais cru, sincero, do que a palavra, mesmo aquela que dizemos ser sinceras palavras.
Penso nisso nesse ônibus enquanto vou para casa. Enquanto a vida lá fora enlouquece dois homens de forma gradativa, porém fatal; enquanto o jovem persiste como placa e o velho como barreira física no centro da cidade; enquanto o mundo lá fora é grande e variado, duas meninas feias falam coisas de psicologia, falam de obsessivos, de compulsivos, falam de novos compêndios de psiquiatria; a vida lá fora enlouquece mais um e estas mocinhas ganham um novo “cliente”, fecha-se o ciclo. Uma viagem de ônibus pode ser uma experiência fantástica, mas só quando se está de olhos abertos. “Viver é fácil com os olhos fechados”. Enquanto a vida produz malucos aos montes as faculdades de psicologia estarão sempre cheias, produzindo psicólogos, na mesma proporção. Lei da oferta e da procura.
As meninas estão falando. O trocador também conversa com o motorista. Eu não encontro ninguém para trocar palavras, para trocar sorrisos então fico vendo a vida lá fora. O centro da cidade. Talvez nada me provoca mais arrepios do que esse lugar. As pessoas correm, trombam, vendem ouro, arame, as pessoas vendem seu sexo, o sexo das esposas, vendem o que possuem de belo na vida. As pessoas pagam contas, fogem dos ladrões, e estes fogem da policia. A movimentação do humano, a concentração de pessoas que apesar de juntas estão sempre separadas, sempre distantes. Pessoas que não olham os velhinhos que vendem arame. Não percebem ser o velhinho uma pessoa. Esse centro no qual todos são contra todos, o lugar do desrespeito, do transito sempre caótico e ferindo nossa fama de racionalistas. Contrário a todas as lógicas. Nesse centro onde passa um senhor cambaleando, um senhor que cairá quadras a frente, sem que ninguém o segure, cairá com o rosto virado pro concreto, cairá e se tiver sorte não mais levantará. Eu não estarei lá para lhe ajudar. Esse senhor que quando morrer na rua será notado, mais pelo cheiro fétido, mais pelo caráter biológico da decomposição de sua massa física, do que pelo ser que se foi, do que pelo primeiro beijo que roubou daquela moça que ele nem mais lembra o nome. Um incômodo, é isso que viram as lembranças.
Ao viver nesse presente, no centro dessa cidade lembro-me sempre de buscar minha cidade pequena. Lembro sempre de que onde se reúnem 2 milhões de pessoas faltará sempre alegria, luz, sorrisos, carinho. É isso que são metrópoles, lugares tristes. Lembro do que quero para minha vida. Lembro desse centro, dessas pessoas que se esbarram como se fossem paredes. Lembro que em cidades grandes há sempre muitas pessoas. A pessoa é única, o coletivo ao invés de potencializar virtudes potencializa os defeitos. Quero uma cidade pequena, uma cidade pelo qual eu chame o padeiro pelo nome, uma cidade que eu saiba de quem cobrar pelo barulho na minha rua, uma cidade sem não-pessoas, na qual eu sempre veja atrás de dois olhos um alguém, e que sempre me vejam assim, com a lentidão, necessária e fundamental das pequenas cidades. Que me chamem de romântico, ingênuo o que for.

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